A sub-representação das mulheres negras no cinema espanhol

Por Rahmata Dem Njie – Rádio África Magazine

Os meios de comunicação espanhóis não hesitaram em fazer eco do movimento #OscarsSoWhite quando este se tornou viral em 2017. Criado pela ativista afro-americana April Reign, denunciava a desigualdade em Hollywood e a falta de representação do POC¹ em comparação com as suas colegas brancas. A comoção que causou ajudou a abrir a conversa e a levantar a necessidade de mudança no mundo do cinema.

Mas, não é necessário viajar sempre aos Estados Unidos para falar de racismo, de falta de oportunidades ou da existência de tetos de vidro. Os meios espanhóis noticiam estes movimentos da periferia, como se fossem algo totalmente alheio à nossa sociedade. Embora seja impossível negar que as realidades sociais entre os Estados Unidos e Espanha são totalmente diferentes, se fizermos a mesma leitura do cinema espanhol, chegaremos às mesmas conclusões. Os padrões que permitem a existência de barreiras e desigualdades que são denunciadas do outro lado do charco repetem-se na Península e seriam suficientes para criar um movimento #GoyasSoWhite².

Principalmente se colocarmos em perspetiva que em 2021, o jovem ator francês, de 18 anos, Adam Nourou se tornou o primeiro ator negro a ganhar um Goya, como ator revelação do filme Adú. Onde interpreta um jovem somali que atravessa o continente africano para tentar chegar à Espanha. Sem esquecer Santiago Zannou, realizador de origem beninense que o conseguiu com El truco del manco (2008), tal como o seu irmão Woulfrank Zannou, pela música original desse filme. Porém, nenhuma atriz negra conseguiu esse prémio até hoje.

 

Crescemos vendo séries espanholas como Los Serrano, Aquí No Hay Quien Viva, Aída, Los Hombres de Paco, Física o Química, El Internado, o catálogo disponível era extenso. Mesmo assim, as séries que mais me chamaram a atenção, as que mais me marcaram e com mais entusiasmo assisti do sofá de casa com os meus irmãos foram outras como Everybody Hates Chris, Family Matters, The Fresh Prince of Bel-Air, todas séries americanas com protagonistas negros.

As realidades mostradas nestas comédias, mesmo à distância, permitiram-me ver-me reconhecida de alguma forma, a minha “eu” de então sentia-se representada ao ver no ecrã pessoas parecidas com ela, algo impensável nas séries espanholas que seguia. E não estavam apenas no ecrã, eram protagonistas com as suas próprias histórias.

Neste momento, não se tem consciência do contexto dessa sub-representação, agradece-se simplesmente o facto de haver essa oferta, em que se pode ser reconhecido, e pensa-se que com o tempo as coisas vão mudar. Mas, à medida que se envelhece, apercebemo-nos de que a maioria dos filmes e séries que consumimos vêm do estrangeiro, dos Estados Unidos, séries e filmes onde é possível ver atrizes em outros papéis que não o de “negra”.

O olhar e o reflexo que temos na produção nacional é essencialmente branco, deixando uma percentagem da população com falta de referentes naquela que é também a sua indústria cultural. Esta falta de representação, ou apenas representação negativa, de grupos minoritários é o que leva à “aniquilação simbólica”³, uma ausência nos média que apaga grupos inteiros da consciência pública, perpetuando assim o sistema de desigualdades sociais. Percebi este termo antes de saber que ele existia, é aquele vazio que sentia em criança quando ligava a televisão, aquela ansiedade de existir que tentava preencher vendo séries americanas importadas.

Fazendo um exercício de retrospetiva começo a pensar e não consigo citar 3 filmes espanhóis onde uma das protagonistas é uma mulher negra, com as séries de televisão é ainda mais difícil para mim fazê-lo. Pode-se argumentar se o problema é a falta de atrizes negras, mas não é o caso, não poderia ser uma leitura mais distante da realidade, não é que não existam atrizes negras na Espanha com talento suficiente para estrelar uma série, são simplesmente delegados a funções marginais.

Esta privação tem efeitos reais na forma como estes grupos são percecionados pela maioria. A representação negra na indústria cinematográfica espanhola baseia-se na perpetuação de clichés e estereótipos, as mulheres negras aparecem como metáforas da marginalização, como migrantes recém-chegadas, prostitutas, migrantes em situações trágicas de exclusão, delinquência e precariedade, tornando-se personagens simplesmente anedóticas. São caracterizações que se limitam a explorar o conflito racial, onde o facto de ser negro se torna um traço definidor da personagem, criando personagens totalmente vazias, cujo passado desconhecemos, às vezes simplesmente sabemos que são negros e isso nunca deve ser aceito.

Com tudo isto, não estou a dizer que as atrizes negras não devam interpretar mulheres migrantes em situações de exclusão, não é esse o problema. O problema é quando esse é o único traço que as define, sem tentar encontrar uma história além da cor da pele, o que reforça o imaginário coletivo de marginalidade associado às mulheres negras.

Vi recentemente, pela primeira vez, o filme Flores de otro mundo (1999), do realizadora Icíar Bollaín, que mostra a vida de duas mulheres migrantes para além dos estereótipos. Patricia, interpretada pela atriz Lissete Mejía, é uma mulher dominicana que foge de Madrid em busca de um futuro melhor para os seus dois filhos pequenos. Por outro lado, Milady, interpretada pela atriz Marilyn Torres, é uma jovem cubana que chega a Espanha com um homem muito mais velho que conheceu em Cuba. Os dois tentam encontrar a felicidade em uma pequena aldeia castelhana para onde se mudam com os seus namorados. O filme inclui também diferentes subtramas, como a solidão no mundo rural e o clássico cliché do choque cultural entre o urbano e o rural.

Ao longo do filme, Bollaín apresenta as duas protagonistas como personagens circulares e complexas, de modo a compreender as histórias por detrás da migração e as razões das suas ações. Através da imagem de Patricia e Marilyn, é dada voz às histórias das mulheres latinas migrantes em Espanha, algo que era raro nos meios de comunicação social espanhóis na altura da estreia do filme. Flores de otro mundo é um exemplo de como, se houver intenção, é possível ver para além dos estereótipos e mostrar a complexidade das personagens interpretadas por mulheres negras.

O outro lado da moeda, quando as personagens negras aparecem no ecrã, mas como meros figurantes, é o caso da célebre série televisiva catalã Merlí. A história de um professor de filosofia que utiliza métodos pouco convencionais para estimular o livre pensamento dos seus alunos adolescentes. 

Neste cenário, uma sala de aula de jovens num liceu da Catalunha, havia uma oportunidade de refletir no ecrã a diversidade social e as origens da sociedade espanhola, mas não foi o caso. A presença de alunos não brancos na sala de aula é reduzida a um par de figurantes, entre os quais Makena, interpretada pela atriz Fenda Drame, cujo papel é inteiramente ornamental, fazendo simplesmente parte do grupo de alunos na sala de aula. 

 

Foto 5: A atriz Fenda Drame como Makena na série catalã Merlí.

Tendo em conta o enorme número de seguidores da série, perdeu-se a oportunidade de incluir uma jovem personagem negra num papel relevante. Pode ser interpretado como uma tentativa de tornar visível a diversidade das salas de aula espanholas, o facto de Makena aparecer como figurante, mas isso não é suficiente. Estas personagens, cuja participação se limita a meros papéis extra, apenas perpetuam a invisibilidade das mulheres negras.

Estas questões são perfeitamente compreendidas no documentário da atriz e produtora senegalesa-francesa Aïssa Maiga e Isabelle Simeoni Regard Noir, onde exploram as raízes históricas do racismo sistémico e o seu impacto na indústria cinematográfica em França, no Brasil e nos Estados Unidos. Este trabalho é parcialmente inspirado no livro de Maiga de 2018, Noir n’est pas mon métier (A minha profissão não é negra, 2018), onde ela e 15 outras atrizes negras partilham as suas próprias experiências na indústria cinematográfica e televisiva francesa. Nas palavras de Aissa Maiga:

“A nossa presença no cinema ainda se deve, demasiadas vezes, à necessidade inevitável ou anedótica de ter uma personagem negra. Ser negro não é a minha profissão. Nem é o das signatárias deste livro”4 .

 

Foto 6: Capa do livro Noir n’est pas mon métier, (2018).

Muitas vezes, as próprias atrizes não têm espaço de ação, encontram-se numa encruzilhada entre serem estigmatizadas ou permanecerem desempregadas, quando as oportunidades a que podem aceder, para além de não serem papéis principais, seguem um padrão estereotipado. As experiências expressas pelas atrizes francesas neste livro são as mesmas que as partilhadas pelas espanholas que fazem parte da The Black View, uma associação fundada em 2016 pelo ator Armando Buika. Um espaço a partir do qual as atrizes negras podem aumentar a sua visibilidade e reivindicar a importância da diversidade na ficção. A organização trabalha em estreita colaboração com a Associação Profissional de Diretores de Casting de Espanha (APDICE), bem como com o Sindicato de Guionistas, produtores e diretores de casting, entre outros, para promover e incentivar as mudanças necessárias na indústria.

Projetos como este são encorajadores, refletem o surgimento de uma nova geração de criadores dispostos a deixar para trás os clichés do passado, artistas empenhados na missão de promover uma representação inclusiva e sem estereótipos na indústria audiovisual e cultural espanhola.

Citando as palavras de Viola Davis ao receber o Emmy de Melhor Atriz Dramática em 2015: “The only thing that separates women of color from everyone else is opportunity.” (A única coisa que separa as mulheres “de cor” de todas as outras pessoas é a oportunidade). Por esta razão, é importante que escrevamos para nós, a fim de promover uma mudança positiva. Quem, senão nós, pode contar as nossas histórias de uma forma digna e, da mesma forma, como podem as jovens negras, construir-se a si próprias se não se veem em lado nenhum? Disto depende a possibilidade de descondicionar o imaginário coletivo e de o adaptar à nova realidade da sociedade espanhola. É necessária uma mudança na indústria para aumentar as possibilidades e quebrar o teto de vidro que exclui, menospreza e ignora toda uma parte da população.
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¹ POC: People Of Color, um termo usado principalmente nos Estados Unidos e no Canadá para descrever qualquer pessoa que não seja branca. Não se refere apenas aos afro-americanos; em vez disso, abrange todos os grupos não brancos e enfatiza experiências comuns de racismo sistémico.
² Os Prémios Goya são os prémios atribuídos anualmente pela Academia Espanhola de Artes e Ciências Cinematográficas.
³ Aniquilação simbólica é um termo usado pela primeira vez por George Gerbner em 1976 para descrever a falta de representação, ou sub-representação, de algum grupo de pessoas na mídia (muitas vezes com base em sua raça, gênero, orientação sexual, status socioeconômico, etc.), entendida nas ciências sociais como meio de manter a desigualdade social. Fonte: Gerbner, G., & Gross, L. (1976). Convivendo com a televisão: O perfil da violência. Jornal de Comunicação, 26, 172-199.
4 Aïssa Maïga (dir.) et Nadège Beausson-Diagne, Mata Gabin, Maïmouna Gueye, Eye Haïdara, Rachel Khan, Sara Martins, Marie-Philomène Nga, Sabine Pakora, Firmine Richard, Sonia Rolland, Magaajyia Silberfeld, Shirley Souagnon, Assa Sylla, Karidja Touré et France Zobda, Noire n’est pas mon métier, Paris, Éditions du Seuil, 3 mai 2018. (ISBN 978-2021401196).


Rahmata Dem Njie. Jornalista e colaborador da Revista Radio Africa desde 2020. Amante da literatura e da música. Entre os meus interesses estão as questões socioculturais e a comunicação digital, assim como o continente africano pela sua grande riqueza cultural e porque é onde estão as minhas raízes.

 

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