Recordações do Dia das Mães de 2020 e algumas reflexões

Bom dia, boa tarde ou boa noite jovem leitor (a).

Durante a pandemia de COVID 19, no ano de 2020, uma vez que estávamos reclusxs em casa, durante dois meses (sem termos as noções exatas sobre como iríamos ultrapassar a crise pandémica/sindémica global que estávamos a enfrentar) em que muitas mulheres/mães estavam a sofrer as “passinhas do Algarve” (expressão popular que metaforicamente quer dizer viver “sofrimentos” e/ou “vicissitudes”), em seus próprios lares, aderi a uma campanha online a celebrar o Dia da Mãe, promovida pelo Centro Cultural de Belém (Lisboa) – #digalaumpoema – e solicitei à minha amiga irmã, Carla Fernandes, que pudéssemos colaborar, paraa fim de que eu partilhasse o seu poema O VentreMulher, num vídeo a ser compartilhado com o público, na rede social Facebook. Fui surpreendida por uma reverberação coletiva através dos comentários, repletos de esperança e solidariedade. Sentir cada palavra reverberada pela existência da minha amiga em O VentreMulher, foi uma vivência muito profunda naqueles dias sombrios. 

Em 2021, solicitei novamente à Carla, uma permissão para que eu pudesse incluir O VentreMulher num dos textos da série de cinco performances radiofónicas, do Projeto EAA, intitulada Um Último Adeus. Obra performativa ficcional, escrita a partir de fragmentos da história de vida de uma mulher/mãe/cidadã portuguesa, que teve o seu filho afrodescendente retirado do seu convívio materno-afetivo, pouco tempo após o seu nascimento. Navegamos sonoramente por entre vozes mensageiras e as suas ancestralidades, que nos convidam a pensar sobre a violência humana e as suas instituições legitimadoras, sobre a fragilidade das mulheres que se tornam mães nestes tempos em que vivemos, sobre a fragilidade das muitas crianças que nascem sem igualdade de direitos. No epílogo, podemos percecionar, ou não, que entre a terra e o céu, avistámos a possibilidade da conquista do espaço! Uma nova era dirigida por mulheres, sem lugar às instituições bélicas! 

Do meu ponto de vista, o poema O Ventre reverbera as Deusas-Mãe cultuadas desde a pré-história, passando pelas antigas civilizações e sobreviventes, até os dias atuais, em religiões não-monoteístas:

Eu sou o ventre da humanidade. 

É de mim que, a todo e qualquer instante, 

Sai a beleza incessante dos seres do planeta, 

Que, de tempos em tempos, se vai como um cometa. 

Sufoco no mesmo sopro com que dou vida. 

Desabrocho preparando o adorno da minha última moradia, 

A terra que me pariu. 

Sou o ventre da humanidade. 

Conjugo em mim toda a humildade e a insanidade, 

Necessárias para garantir a nossa continuidade. 

Sou Mulher, 

Sou o ventre da humanidade.

(Carla Fernandes, 2021) 

Hator, Mut, Wadjet, Nekhbet, Ísis, Astarte, Inana, Istar Ninsumun, Yer Tanri, Maa Durga, Gaia, Atena, Deméter, Afrodite, Hera, Héstia, Ártemis, Cibele, Iemanjá, Oxum, Oyá, Nanã, Obá, Kianda, Matamba, Dandalunda, Gangazumba, Ceuci, Jaci, Pachamama, Toci, Tlazoltéotl, Nüwa, Xi Wang Mu, Virgem Maria (300 d.C., seita cristã Collyridianism), e tantas outras – Deusas-Mãe – estão presentes em O Ventre. Bem como as Mulheres de todos os tempos/templos!

Jovem leitor (a), algumas das Deusas-Mãe, citadas acima, certamente que já conheces, pois integram algumas das mitologias a que temos mais acesso, como a mitologia greco-romana. Mas, podes sempre pesquisar sobre cada uma delas, nos motores de busca na internet. 

Any Lane

Podemos também compreender melhor sobre a celebração do Dia da Mãe que conhecemos atualmente, ao pesquisarmos sobre o Mothering Day (Inglaterra, século XVII) e sobre o Mother’s Day (EUA, século XX). Nos EUA, a data celebrativa ganhou visibilidade e se tornou uma data efetiva, após a morte da idealizadora do Mother’s Friendship Day, Ann Jarvis, em 1905. Uma mulher norte-americana que dedicou a sua vida à assistência social, dando apoio às mulheres/mães a cuidar dos filhos, através dos Mother´s Day Work Clubs, criados com a ajuda de Julia Ward Howe, ativista abolicionista, escritora, poetisa, feminista, que, em 1870, objetivava criar um Congresso Internacional de Mães, para promover a paz no mundo, ao invés da guerra. Howe também fundou a American Woman Suffrage Association, entre outras instituições e foi a primeira mulher eleita para a Academia Americana de Artes e Letras, em 1908. 

Ann Maria Reeves Jarvis foi uma ativista e metodista. A sua filha, Anna Jarvis, prestou-lhe uma grande homenagem, e iniciou uma campanha com outras mulheres, com a intenção de celebrar as mulheres/mães na sociedade, ao reunir mães e filhos numa data específica. Mais tarde veio a arrepender-se da formalização da data, ao ter compreendido que celebrar o Dia da Mãe teria potencializado lucros exacerbados através das vendas de produtos (prendas). 

As datas para a celebração do Dia da Mãe variam consoante as localidades. Nós, por cá, celebramos o Dia da Mãe, no segundo domingo do mês de maio, embora na década de 70 do século XX, celebrássemos no dia 08 de dezembro, Dia da Nossa Senhora da Conceição (Padroeira de Portugal)

Contudo, jovem leitor (a), importa que possamos compreender que as mulheres enquanto mães começaram a ser celebradas desde tempos imemoriais!

Estatuetas de corpos femininos que foram esculpidas na pré-História, vêm sendo encontradas nas escavações arqueológicas, como a Vénus de Willendorf (c.24000 – 20000 a.C.), que foi esculpida em pedra e encontrada na Áustria, em 1908, e a Deusa da Fertilidade, de Cernavoda (c. 5000 a.C.), que foi esculpida em barro cozido e encontrada na Roménia. As imagens destas duas estatuetas citadas acima, podem ser observadas no livro História da Arte, de H.W. Janson (Fundação Calouste Gulbenkian, 2005). Entre muitas outras estatuetas femininas que foram encontradas, verifica-se que, no pensamento humano, a mulher/fêmea, era representada através de características específicas como os seios, o púbis, o útero e as nádegas. O predomínio de representações femininas nos períodos Paleolítico Superior e Neolítico, pode significar que naquelas sociedades, as mulheres desempenhavam papéis sociais relevantes, tanto espiritualmente, como fisicamente. Os seus corpos eram vivenciados enquanto força divina, como corporificação do princípio de continuidade da vida e também como símbolo da imortalidade da matéria terrena. Elas eram responsáveis pela gestação do embrião, pelo nascimento e aleitamento do mesmo. As Deusas-Mãe eram reverenciadas em cultos da fertilidade.Uma referência a ter em consideração: “A protofiguratividade da Deusa Mãe”, de Flávia Regina Marquetti.

Em O Último Adeus, performance radiofónica, a personagem Mulher inicia a sua voz enquanto parturiente e representa diversas Mulheres, em diferentes localidades, que após se tornarem mães, nestes nossos tempos pós-modernos/pós-coloniais, têm as suas vidas ceifadas, após lhes serem retirados xs filhxs que geraram em seus ventres, que sonharam, que pariram e que alimentaram. Mulheres que ficam traumatizadas psicologicamente, para os restos das suas vidas. É mais que “normativo” nos tempos correntes lermos ou visionarmos matérias jornalísticas, nacionalmente ou internacionalmente, sobre casos individuais de mulheres ou de grupos de mulheres que lutam em conjunto para terem o direito a exercer a maternidade sem que nenhum tipo de violência recaia sobre os seus corpos e/ou os corpos dxs filhxs.

William Fortunato

Alguns artigos que importam ser lidos: Brasileira em Portugal perde guarda da filha para pai acusado de abuso; Bebé retirada à nascença volta à mãe congolesa 10 meses depois; China Muslims: Xinjiang schools used to separate children from families; Maurícia, la madre de 64 años a la que le han retirado la custodia de sus mellizos: “Es tan irracional que no tiene nombre”; Mãe a quem foram retiradas três filhas: ”Foram 15 anos de tortura. Simplesmente sou pobre”; Norway’s child protection body takes heavy criticism over decisions on migrant families; Em nome dos pais – Queimadas na Fogueira do Judiciário – Perda de guarda, patrimônio destruído e fama de louca: é isso que acontece quando mães denunciam pais por abuso sexual

Do meu ponto de vista, a privação materna institucional é, sem sombra de dúvida, uma das piores violências de género existentes no planeta Terra, contra as mulheres que se tornam mães. E consequentemente contra as crianças. Nenhuma mulher ou criança, deveriam ser discriminadas e separadas entre si, com a desvinculação materno-afetiva, devido à sua origem étnico-racial, nacionalidade, religiosidade, classe social, etc. etc. etc. 

É do modo, jovem leitor (a), que importa, e muito, celebrar o Dia da Mãe, com consciência de que ainda temos muitos péssimos hábitos enquanto seres humanos, que necessitaremos com a máxima urgência possível reconhecer e transformar! 

 

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