Os vestígios de violência do colonialismo e da escravatura estiveram sempre presentes na memória de pessoas outrora escravizadas, na pós memória de seus descendentes e continuam acessíveis até aos dias de hoje. Um dos métodos que utilizo, na minha investigação, para analisar essa presença é a oratura — conceito criado pelo linguista ugandês Pio Zirimu, nos anos 60 – um “vasto campo do conhecimento em que a informação e as mensagens culturais são transmitidas verbalmente de uma geração para a seguinte. Um corpo complexo de artes orais criado para recordar, honrar, e preservar o passado” (Akínyẹmí, 2015). Analisar esse corpo permite-nos compreender a conjuntura de opressão a que as pessoas escravizadas estavam sujeitas, mas também nos faculta dados sobre os seus quotidianos, rituais, e sementes de resistência e organização coletiva.
Compreender e refletir sobre o conteúdo textual, performativo e estético da tafua da roça Monte Café em São Tomé e Príncipe, uma manifestação cultural presente na ilha desde o início do século XIX¹ até ao presente, chegada com pessoas escravizadas de Angola, e que inclui canções, música instrumental e dança, faz parte dessa análise.
A tafua é uma manifestação cada vez menos exercida, e considerada, por alguns praticantes, como em vias de extinção. Para Carlota e Luís, por serem descendentes de escravizados angolanos e praticarem uma manifestação cultural por eles herdada, são vistos pela sociedade são-tomense como tongas (descendentes dos trabalhadores contratados) e a tafua menos integrada como parte da identidade nacional do país. E segundo os seus relatos, também não é bem-vinda nas igrejas pois é considerada um ritual maléfico.
As tensões em torno da tafua permitem-nos sondar percepções sobre a estratificação social, na base de “etnias”, classes, religiões, e outras continuidades históricas que prevalecem do colonialismo, e compreender como a escravatura moldou as sociedades africanas e diaspóricas, mas também como as comunidades locais continuam a suportar os seus legados.
As canções da tafua são principalmente sobre trabalho forçado, famílias fragmentadas, lamentos sobre o sistema de escravatura, saudades, mas se olharmos mais a fundo, são também sobre esperança, generosidade e cura.
Navio
O navio onde vinha a minha mãe
Eu hoje recebi a notícia que ela partiu
Os outros que vinham de Angola
Que foram escolhidos pelas orelhas
Socorro!
O navio entrou em sofrimento
Ai mamã, mamã
Eu hoje também estou tombada
O navio onde vinha a minha mãe
Socorro!
É um momento de tristeza
Eu hoje estou triste
A injustiça dos homens
Deus é que sabe
Minha irmã mais nova
Um aspecto que me fascinou em torno do tafua é o facto das canções serem cantadas numa mistura de várias línguas de Angola, nomeadamente Kimbundu, Umbundu, Vimbundu, Kikongo, entre outras línguas que eram faladas durante as rotinas diárias das pessoas na roça. Esse fenómeno comprova que as pessoas escravizadas foram capazes de criar os seus próprios códigos e línguas, e que estes eram muitas vezes ferramentas de resistência face às lógicas coloniais.
Outras canções, pelo seu ritmo, cadência, repetição e conteúdo, seriam certamente canções de trabalho forçado, para motivar o povo escravizado a continuar a trabalhar em conjunto, na esperança da chegada de um momento de “retribuição” e descanso.
Sacalundu
Meu Deus
O sino tocou
E já vamos receber a comida
Sentem-se
Não chorem
Porque o sino tocou
E vamos receber a nossa comida
Continuam a ser poucas as ocasiões em que o tafua é programada em eventos que remuneram devidamente os/as seus/suas participantes, de maneira que acaba por ser apresentada de forma mais precária, em funerais, que é um dos contextos a que se associa. Em Monte Café, são cerca de vinte as pessoas praticantes ativas desta modalidade modalidade cultural, sendo que as gerações mais jovens não participam dos rituais nem falam as línguas cantadas, o que constitui “um passo significativo para o desaparecimento progressivo da nossa identidade cultural.” (Salvaterra, 2009)
Face a este cenário, como podemos elaborar outras concepções de património, mais humanizadas? Como podemos valorizar os recursos culturais como humanos e não apenas como económicos? Que caminhos podemos imaginar para a preservação dos direitos humanos destas bibliotecas vivas?
Raquel Lima, poeta e artista transdisciplinar, licenciada em Estudos Artísticos – Artes Performativas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2008) e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A sua investigação centra-se em oratura, escravatura e movimentos afro diaspóricos, tendo coorganizado a Conferência Afroeuropeans: Black In/Visibilities Contested (2019). Tem apresentado o seu trabalho académico em diversas conferências internacionais, com destaque para a Conferência Authoring Human Rights in West Africa and beyond: Expressions of slaveries in Literature (texts) and the Arts (visuals) na Universidade de Cape Coast no Ghana (2023), e a Conferência Decolonial Remains: Scrutinizing African Studies in Africa and the Unfinished Business of Decolonization, na Universidade de Ibadan na Nigéria (2022). Em 2022, foi palestrante na Bienal de Veneza no evento Loophole of Retreat e keynote speaker da sessão de abertura do Congresso Mundo de Mulheres em Moçambique. Em 2023 é uma das artistas presentes na 35.ª Bienal de São Paulo. Publicou o livro e áudio-livro de poesia Ingenuidade Inocência Ignorância, e co-fundou a UNA – União Negra das Artes. O seu trabalho está na encruzilhada entre arte, ativismo e academia.
¹Apesar de ter sido difícil datar a entrada da tafua na ilha, esta data refere-se à introdução da cultura do cacau e do café nas ilhas, à fundação da Roça Monte Café (1858) e consequente “contratação” de mão-de-obra de Angola.