TAFUA – Canções da escravatura entre Angola e São Tomé e Príncipe

Os vestígios de violência do colonialismo e da escravatura estiveram sempre presentes na memória de pessoas outrora escravizadas, na pós memória de seus descendentes e continuam acessíveis até aos dias de hoje. Um dos métodos que utilizo, na minha investigação, para analisar essa presença é a oratura — conceito criado pelo linguista ugandês Pio Zirimu, nos anos 60 – um “vasto campo do conhecimento em que a informação e as mensagens culturais são transmitidas verbalmente de uma geração para a seguinte. Um corpo complexo  de artes orais criado para recordar, honrar, e preservar o passado” (Akínyẹmí,  2015). Analisar esse corpo permite-nos compreender a conjuntura de opressão  a que as pessoas escravizadas estavam sujeitas, mas também nos faculta dados  sobre os seus quotidianos, rituais, e sementes de resistência e organização  coletiva.  

Compreender e refletir sobre o conteúdo textual, performativo e estético da tafua da roça Monte Café em São Tomé e Príncipe, uma manifestação cultural  presente na ilha desde o início do século XIX¹ até ao presente, chegada com  pessoas escravizadas de Angola, e que inclui canções, música instrumental e  dança, faz parte dessa análise. 

Carlota e Luís: Praticantes da tafua na Roça Monte Café em São Tomé e Príncipe (2021)

A tafua é uma manifestação cada vez menos exercida, e considerada, por  alguns praticantes, como em vias de extinção. Para Carlota e Luís, por serem  descendentes de escravizados angolanos e praticarem uma manifestação cultural por eles herdada, são vistos pela sociedade são-tomense como tongas (descendentes dos trabalhadores contratados) e a tafua menos integrada como  parte da identidade nacional do país. E segundo os seus relatos, também não  é bem-vinda nas igrejas pois é considerada um ritual maléfico. 

As tensões em torno da tafua permitem-nos sondar percepções sobre a  estratificação social, na base de “etnias”, classes, religiões, e outras continuidades históricas que prevalecem do colonialismo, e compreender como  a escravatura moldou as sociedades africanas e diaspóricas, mas também como  as comunidades locais continuam a suportar os seus legados. 

As canções da tafua são principalmente sobre trabalho forçado, famílias  fragmentadas, lamentos sobre o sistema de escravatura, saudades, mas se  olharmos mais a fundo, são também sobre esperança, generosidade e cura. 

Navio 

O navio onde vinha a minha mãe 

Eu hoje recebi a notícia que ela partiu 

Os outros que vinham de Angola 

Que foram escolhidos pelas orelhas 

Socorro! 

O navio entrou em sofrimento 

Ai mamã, mamã 

Eu hoje também estou tombada 

O navio onde vinha a minha mãe 

Socorro! 

É um momento de tristeza 

Eu hoje estou triste 

A injustiça dos homens 

Deus é que sabe 

Minha irmã mais nova 

 

Um aspecto que me fascinou em torno do tafua é o facto das canções serem  cantadas numa mistura de várias línguas de Angola, nomeadamente Kimbundu,  Umbundu, Vimbundu, Kikongo, entre outras línguas que eram faladas durante as  rotinas diárias das pessoas na roça. Esse fenómeno comprova que as pessoas  escravizadas foram capazes de criar os seus próprios códigos e línguas, e  que estes eram muitas vezes ferramentas de resistência face às lógicas  coloniais. 

Outras canções, pelo seu ritmo, cadência, repetição e conteúdo, seriam certamente canções de trabalho forçado, para motivar o povo escravizado a  continuar a trabalhar em conjunto, na esperança da chegada de um momento de  “retribuição” e descanso. 

Sacalundu 

Meu Deus 

O sino tocou 

E já vamos receber a comida 

Sentem-se 

Não chorem 

Porque o sino tocou 

E vamos receber a nossa comida 

 

Sino colonial na roça Monte Café (2021)

Continuam a ser poucas as ocasiões em que o tafua é programada em  eventos que remuneram devidamente os/as seus/suas participantes, de maneira  que acaba por ser apresentada de forma mais precária, em funerais, que é um  dos contextos a que se associa. Em Monte Café, são cerca de vinte as pessoas praticantes ativas desta modalidade modalidade cultural, sendo que as gerações mais  jovens não participam dos rituais nem falam as línguas cantadas, o que  constitui “um passo significativo para o desaparecimento progressivo da nossa  identidade cultural.” (Salvaterra, 2009) 

Face a este cenário, como podemos elaborar outras concepções de  património, mais humanizadas? Como podemos valorizar os recursos culturais  como humanos e não apenas como económicos? Que caminhos podemos imaginar  para a preservação dos direitos humanos destas bibliotecas vivas?  

 


Raquel Lima, poeta e artista transdisciplinar, licenciada em Estudos Artísticos – Artes Performativas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2008) e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A sua investigação centra-se em oratura, escravatura e movimentos afro diaspóricos, tendo coorganizado a Conferência Afroeuropeans: Black In/Visibilities Contested (2019). Tem apresentado o seu trabalho académico em diversas conferências internacionais, com destaque para a Conferência Authoring Human Rights in West Africa and beyond: Expressions of slaveries in Literature (texts) and the Arts (visuals) na Universidade de Cape Coast no Ghana (2023), e a Conferência Decolonial Remains: Scrutinizing African Studies in Africa and the Unfinished Business of Decolonization, na Universidade de Ibadan na Nigéria (2022). Em 2022, foi palestrante na Bienal de Veneza no evento Loophole of Retreat e keynote speaker da sessão de abertura do Congresso Mundo de Mulheres em Moçambique. Em 2023 é uma das artistas presentes na 35.ª Bienal de São Paulo. Publicou o livro e áudio-livro de poesia Ingenuidade Inocência Ignorância, e co-fundou a UNA – União Negra das Artes. O seu trabalho está na encruzilhada entre arte, ativismo e academia.

 


¹Apesar de ter sido difícil datar a entrada da tafua na ilha, esta data refere-se  à introdução da cultura do cacau e do café nas ilhas, à fundação da Roça Monte Café  (1858) e consequente “contratação” de mão-de-obra de Angola.

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