Descontinuidades Familiares das Mães Pretas — Continuidades Coloniais

Mãe Preta 

 

(Composição de Caco Velho e Piratini, gravada pelo Grupo Tocantins no ano de 1943, Brasil)

“Pele encarquilhada carapinha branca

Gandola de renda caindo na anca

Embalando o berço do filho do sinhô

Que há pouco tempo a sinhá ganhou

Era assim que mãe preta fazia

Criava todos brancos com muita alegria

Porém na senzala Pai João apanhava

Mãe preta mais uma lágrima enxugava

Mãe preta, mãe preta

Enquanto a chibata batia em seu amor

Mãe preta embalava o filho branco do sinhô”.

 

Salve jovem leitor (a). 

“Mãe Preta” se trata de um batuque brasileiro, gravado em 1943, pelo Grupo Tocantins, com autoria de Caco Velho (Mateus Nunes) e Piratini (António Amábile), ambos músicos naturais de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. São muitas as histórias à volta de “Mãe Preta”. Uma música que fez muito sucesso no Brasil e no exterior, no decorrer do século XX. A sua letra foi modificada em Portugal, devido à censura de Oliveira Salazar. Duas importantes fadistas portuguesas gravaram “Mãe Preta” inicialmente: Maria da Conceição, que desconhecia a sua autoria e mais tarde, Amália Rodrigues que aportuguesou “Mãe Preta”, a partir do poema “Barco Negro”, de David Mourão-Ferreira. Em França, “Mãe Preta” passou a ser “Madona”, foi gravada e cantada pela cantora francesa Dalida, incorporando no seu ADN a versão original brasileira e a versão portuguesa, trazendo ao de cima uma “Madona”; Nossa Senhora Negra (correlacionando à Nossa Senhora Aparecida). Em Inglaterra, George Melachrino, gravou “Mãe Preta”, sem atribuir a autoria ao verdadeiro compositor. Caco Velho (Mateus Nunes), músico afro-brasileiro, em 1959, era considerado um grande sambista nos círculos musicais brasileiros e já era bastante reconhecido internacionalmente, devido a temporadas musicais em Paris e em Las Vegas, mas mesmo assim teve que denunciar publicamente no Brasil a sua indignação e recorrer com os seus empresários às gravadoras, para reaver os seus direitos autorais de “Mãe Preta”. Importante referir que Caco Velho era contemporâneo de Vinícius de Moraes, Lupicínio Rodrigues, Túlio Piva, entre outros nomes sonantes da cultura musical brasileira. 

O facto de que pessoas negras sempre foram desrespeitadas por estruturas dominadas por pessoas brancas socialmente é inegável: uma herança da cultura educacional violenta que foi forjada sistematicamente durante os mais de quatrocentos anos de regime esclavagista europeu contra os corpos de pessoas negras e indígenas, em diferentes territórios. Ora, “Mãe Preta” traz-nos na sua poética o facto inegável da perversão branca, colonialista e machista, contra o corpo da mulher negra escravizada, obrigada a ser “Mãe” de filhos que não pariu e a ser violentada em sua psique. Compreende-se que devido às circunstâncias políticas vividas em Portugal, esta mesma poética tenha sido apagada, cuja denúncia política feita por Caco Velho e Piratini, passou a não importar: o corpo da mulher negra escravizada a sofrer. 

 

Este corpo da mulher negra escravizada a sofrer, é algo a que todxs, jovem leitor/a, deveríamos ter em consideração nas nossas observações quotidianas, estudantis e profissionais. Justamente porque fomos acostumados durante séculos a não nos importar com os sentimentos das Mulheres Negras, acostumados a demonizar as Mulheres Negras, como se de seres humanos não se tratassem, como se apenas viessem ao mundo para ser violentadas por outrem. E é mesmo por isto que socialmente quando algo grave se passa com uma Mulher Negra, toda a sociedade parece se mover contra esta Mulher. Não temos memória histórica. Não compreendemos que Mulheres Negras foram alicerces para as nossas sociedades, cuidando afetivamente de todos os nossos ancestrais, do desenvolvimento intelectual e espiritual dos mesmos, da manutenção da riqueza e do bem-estar alheio. É de modo que toda Mãe Preta a quem lhe é retirado um filho institucionalmente, a culpa de tal ato é atribuída à vítima da prática de racismo estrutural. Pode-se dizer que a vítima é uma “mãe maltratadora”, um “monstro”, que “não tem higiene”, etc. 

Uma maioria de pessoas magistradas não verificarão factos descritos em relatórios sociais e afins, a considerar os modos pelos quais mulheres negras ou outras mulheres racializadas, são interpretadas historicamente/pejorativamente por parte de profissionais da assistência social e/ou da psicologia. O que permite com que haja a reprodução de violências coloniais, patriarcais e/ou machistas, sobre os corpos de mulheres negras e crianças.”

Sempre que souberem que retiraram um filho a uma Mãe Preta, lembrem-se dos factos históricos. Busquem apoiar a Mãe e a criança. Criminalizar Mulheres pelo facto de serem negras e pobres, negras e vítimas de violência doméstica, e ainda vítimas interseccionais com outras violências, separando as suas famílias, não faz jus aos tempos em que vivemos.  

Como no caso da jovem mãe congolesa que foi separada da sua criança, logo após o parto, porque supostamente iria “vender” a criança (Jornal de Notícias, 2018). Ou ainda no caso da jovem mãe cabo-verdiana que se viu aflita quando, após lhe retirarem uma criança que veio tratar dos rins em Portugal, também queriam lhe retirar a sua filha recém-nascida (Correio da Manhã, 2017). Ou ainda no caso paradigmático da mãe cabo-verdiana que processou Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, dado que queriam obrigá-la a fazer uma ligação de trompas de Falópio (Expresso, 2016), entre vários outros casos, onde mulheres racializadas do Brasil e mulheres portuguesas brancas ou afrodescendentes têm vindo a ser revitimizadas institucionalmente…

As famílias de Mulheres Negras, que desconhecendo os seus direitos enquanto seres humanos a viver em sociedades onde vigora o Estado de Direito Democrático, continuarão a ser destroçadas ad aeternum? E ninguém institucionalmente parará um único momento para refletir sobre como o racismo estrutural existente na sociedade portuguesa pode impedir que famílias formadas por pessoas negras, principalmente por Mães Pretas, singrem? Sobre o quanto colonialistas ainda somos? 

A prática de privação materna jovem leitor/a, é hedionda, principalmente nos tempos que correm, em que são redigidas leis e implementadas diversas ações no âmbito da “igualdade de género” e do “combate ao racismo”, a nível europeu e a nível nacional. 

Costumo dizer sempre que o breve futuro depende da capacidade reflexiva de pessoas jovens de sonhar este breve futuro. Importa que compreendam que desde muito cedo têm de obrigatoriamente conhecer sobre leis, sobre direitos e sobre deveres em sociedade. Tendo como princípio orientador apoiar as pessoas que estiverem ao vosso redor, independente de suas origens étnico-raciais, nacionalidades, género, classe social, opção religiosa, etc. etc. etc. Nenhum ser humano pode ser violentado na sua dignidade. Sempre que souberem que retiraram um filho a uma Mãe Preta, lembrem-se dos factos históricos. Busquem apoiar a Mãe e a criança. Criminalizar Mulheres pelo facto de serem negras e pobres, negras e vítimas de violência doméstica, e ainda vítimas interseccionais com outras violências, separando as suas famílias, não faz jus aos tempos em que vivemos.  

Busquemos, pois, ser seres humanos conscientes, afetuosos e cocriadores de saúde coletiva.

 

*A colunista utiliza linguagem inclusiva.

Traduzir
Scroll to Top