Não serei eu uma mulher?

Ainda hoje vi um vídeo onde uma mulher apontava todos os males que o feminismo tinha causado à mulher e à sociedade. Diziam que muitas mulheres se sentem forçadas a trabalhar fora de casa por pressão social e deixar crianças pequenas ao cuidado de estranhos desde tenra idade. Citava fatos e estatísticas que demonstram que, não só há igualdade entre os sexos, como as mulheres agora estariam muito melhor que os homens, porque: 1) vivem em média mais anos que os homens; 2) têm menor probabilidade de cometer suicídio; 3) quando cometem o mesmo crime, recebem sentenças mais leves; 4) no mercado de trabalho têm empregos menos perigosos ou fisicamente exigentes; 5) se contarmos as horas que as mulheres estão no local de trabalho, elas ganha mais do que um homem porque eles passam mais tempo no escritório, entre outros argumentos.

E que palavrão é este? “Feminismo é um movimento político, filosófico e social que defende a igualdade de direitos entre mulheres e homens.” Fui ao Google, porque é no verbo googlar que encontramos as nossas verdades. E eu sorrio num brinde sóbrio e consciente ao poder da retórica desta utilização artística de palavras e fatos para alimentar uma inverdade. Não usei a palavra mentira, de propósito, porque, em princípio, os fatos são verdadeiros, mas a conclusão é errónea. Eu realmente acredito que esta senhora, como muitos que dizem de boca cheia que não há desigualdade entre os sexos, fazem-no por ignorância, não tanto com o plano deliberado de espalhar desinformação. O que há de errado em querer igualdade?

As mulheres são diferentes dos homens porque a experiência de vida, como seres que habitam diferentes corpos biológicos nos torna diferentes. A nossa transformação é visível, de crianças sem formas, a objeto de desejo com curvas, ciclos lunares, a capacidade de conceber uma criança, e traços físicos e de personalidade que provocam reações visíveis no sexo forte. Essas diferenças têm justificado um lugar precário na história. Um lugar que fala de estados e religiões que tentam regular a nossa existência, por temor e fascínio pela nossa natureza. E em ciclos históricos, passamos de tempos em que a saúde da família era da responsabilidade daquela avó sábia, até que se inventou a medicina moderna, onde as nossas ervas e mezinhas transformam-nos em feiticeiras. O parto era coisa de mulher, em casa, entre mulheres, até que eles entrarem em cena, agora fazemos força deitadas porque a gravidade é uma lei que ajuda o parto, mas dificulta a visibilidade do obstetra. Nada contra os avanços científicos, mas é preciso registar que assim que uma disciplina se transformava em profissão, as mulheres eram automaticamente excluídas. E estes são só dois exemplos que representam um registo histórico de como a nossa vivência é condicionada por circunstâncias fora do nosso controlo. E forçam-nos a adaptar, transformar e reinventar-nos como mulheres.

Eu sei que a mulher no vídeo não era portuguesa, mas eu preocupo-me com a fragilidade da memória coletiva feminina. Talvez porque nós mulheres temos a tendência para esquecer o nosso verdadeiro ano de nascimento, mas quantas de nós nascidas antes da despenalização do aborto, em Portugal (2007), conseguimos imaginar o risco de ser mulher com vida sexual ativa, a quem o governo retira este direito sobre o nosso corpo? O mesmo com o crime de maus-tratos domésticos, até aos anos oitenta reinava a lei de “entre marido e mulher não se mete a colher” e quem come é sempre a mulher. E quantas mulheres sofreram durante anos antes de sucumbirem? Sem que fosse crime, sem que fosse sequer moralmente errado, porque o homem tinha direito sobre o corpo e os bens da mulher. E a mulher nem se podia divorciar, só depois do 25 de Abril, sem se colocar numa posição social ainda mais precária. E, depois, imagino a primeira mulher a fazer o que fosse, a trabalhar só depois de receber a autorização do marido sem direitos a igualdade no local de trabalho, a ter de contar com métodos artesanais para controlar a natalidade, a pedir autorização do marido para ter o passaporte, e voltar a casa correndo o risco de morrer nas mãos de um marido ciumento.

Não estamos assim tão longe de um tempo de dependência ou de autonomia limitada pelo estado e a lei dos bons costumes, tudo isto nos meados do século passado! E se olharmos para as nossas vizinhas, noutros lugares do mundo, conseguimos encontrar uma linha de contínua entre total dependência e vários degraus de autonomia formal. Eu digo formal porque temos mulheres do Afeganistão que nos últimos 20 anos de vida gozaram de total autonomia, para se encontrarem agora despidas do direito à vida em qualquer esfera pública. Ao mesmo tempo que mulheres norte-americanas têm uma vice-presidente do género feminino, mas perdem o direito ao aborto, e têm homens e mulheres a discutirem o que é apropriado para uma mulher usar no congresso do país que se diz o mais livre do ocidente. Eu acredito que só pode ser devido ao desconhecimento da história recente e longínqua, que uma mulher pode dizer que não existe espaço para feminismo, no mais puro sentido da palavra, como “um movimento (…) que defende a igualdade de direitos entre mulheres e homens.” O feminismo não pode morrer porque os direitos das mulheres não têm sido permanentes, nem universais e definitivamente não são garantidos.

O Dia Internacional da Mulher só foi oficializado em 1977, pela ONU, para marcar as nossas lutas e vitórias no processo de assegurar direitos que nos têm sido negados. E, para quem ainda acha que estamos longe dos tempos de desigualdade, “googlem” alguns marcos na história das mulheres portuguesas e verão o quão próximo estamos do passado! Direito ao voto? Direito a herdar e gerir o seu dinheiro? Direito à custódia dos filhos? E falando de passado, uma das memórias mais antigas da história da humanidade é uma ossada feminina Lucy com mais de 3 milhões de anos, e foi encontrada em Adis Abeba, Etiópia. Mas como foram antropólogos ocidentais a “descobrir” a ossada, eles batizaram-na Lucy, porque, em 1974, a música dos Beatles, “Lucy in the sky with diamonds”, estava a tocar na rádio. Sim, a ossada mantém-se num museu em Adis Abeba, Etiópia, formalizando a posição de África como o berço da humanidade.

A história da humanidade demonstra uma ambivalência para com a mulher. Eva, a primeira mulher, passa de parceira a fonte de perdição da humanidade. E durante toda a bíblia a mulher aparece ou como fonte de virtude na persona da Maria, virgem, mãe de Jesus, ou a razão para um homem perder literalmente a cabeça como Dalila fez com Sansão. A nossa posição na sociedade tem estado intimamente ligada à visão que os homens têm da mulher. Como os filósofos gregos, Platão e Aristóteles, não eram nossos fãs, e acreditavam que nós poderíamos trazer desordem e malícia para a esfera pública, a mulher grega não tinha cidadania e fazia parte da Oikos (casa do senhor).

Mohammad recitou os versos do Alcorão que lhe chegaram por revelação divina, mas com o apoio da sua esposa Fátima. Segundo o livro sagrado dos muçulmanos, a viúva pode administrar a herança do marido, ao contrário do que acontecia em sociedades árabes em que a herança iria para a família. Outras sociedades muçulmanas interpretam o Alcorão de forma diferente. Mas porquê?

E é dessa ambivalência que da linhagem de guerreiras de africanas, nascem mulheres que praticam a circuncisão feminina, com o objetivo de manter a mulher pura para o seu homem; e mulheres ocidentais que advogam a necessidade de voltar para o papel tradicional na família, esquecem que vêm de uma linha de mulheres que lutaram pelo direito ao voto, direito a gerirem o seu dinheiro e de mulheres que foram queimadas vivas porque usavam o conhecimento das ervas, raízes e da natureza para curar, porque pensavam, porque usaram a sua voz para mais do que fofoca, ou simplesmente, porque amavam o homem errado.

Muitos dos nossos avanços e retrocessos como o sexo mais ou menos fraco, são pontuados por marcos históricos onde, para além de sofrermos os horrores da guerra em forma de violação e privação, a nossa aparente fraqueza se transforma na força motora de uma nação. Quando os homens partem para guerras sem sentido, deixando o país sem defesa ou mão de obra, nós somos chamadas a contribuir e mostramos que somos capazes, só para mais tarde nos pedirem para voltar para a cozinha. Sem uma “obrigada pelo vosso serviço”, sem nos perguntarem se é realmente isso o que queremos. Tudo para proteger a sociedade, a economia, o orgulho masculino, o lugar do homem como a cabeça da família, a igreja e os bons costumes. E quem nos protege a nós em tempo de paz?

Ser feminista não significa ser contra ninguém, porque lutamos por direitos iguais e não superiores a ninguém.

Voltando aos argumentos da senhora do vídeo, não é tão relevante entender se as mulheres são naturalmente mais empáticas e carinhosas, como a entender porque é que uma mulher que cozinha bem é uma cozinheira e um homem é um chef, com tudo o que essa distinção carrega em termos de prestígio e salário. Nós somos biologicamente diferentes e somos, ainda, socializados de forma diferente, e essa diferença pode justificar certos ajustes, e certas tendências comportamentais como o suicídio e a escolha de emprego, mas nunca para desculpar, dois pesos e duas medidas, duas tabelas salariais, dois sistemas de justiça ou de saúde.

O facto de serem mulheres a argumentar que a igualdade não só existe, como infringe direitos alheios, é um sinal dos tempos. Nós falamos do direito à educação, à liberdade para casar de livre vontade, direito ao voto e à liberdade de movimentos, direito à integridade do seu corpo, direito ao planeamento familiar incluindo aborto, direito a vestir o que quiser, à proteção contra violência dentro e fora de casa, direito a trabalhar e a gerir o nosso próprio dinheiro, direito a segurança no trabalho durante e depois da gravidez, direito aos nossos filhos e aos nossos bens. Nada nos direitos das mulheres infringe as liberdades alheias, o que queremos, digo antes, o que exigimos é o direito a existir em toda a plenitude como seres humanos.

Devemos reconhecer os ciclos da história, e trabalhar ativamente para que esta não se repita. Nos tempos em que vivemos, de inverdades e novas realidades, temos de estar munidas de conhecimento da nossa história, sob o risco de sermos promotoras da sua replicação. E entre palavras, palavrinhas e palavrões, perdemos de vista do que realmente estamos a falar, sempre que falamos de direitos iguais.

A Chimamanda diz que todos devemos ser feministas e a Beyoncé claramente faz depilação e é apontada como o exemplo do feminismo moderno. Como elas, eu acredito piamente na possibilidade de uma nova realidade, longe da dicotomia de ELES contra ELAS, onde o poder e influância de cada grupo na sociedade possa ser usado para o bem comum. Mas teremos de ser nós a visualizar e contruir para essa realidade.

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