Numa altura em que Geoffrey Hinton, considerado “o padrinho” da Inteligência Artificial (IA) classifica, numa entrevista à Reuters, este avanço tecnológico como sendo mais perigoso que as alterações climáticas, relembramos a primeira modelo virtual, Shudu. Interessa fazer esta reflexão à luz do que são as continuidades do racismo e de que forma a tecnologia tem contribuído para essa perpetuação.
Shudu é uma modelo virtual negra criada, em 2017, pelo fotógrafo britânico Cameron-James Wilson, um homem branco com poucas preocupações relativamente a questões raciais. Tendo afirmado que a criação de uma modelo virtual negra apenas reflete as coisas de que gosta como tecnologia e ficção científica, segundo a publicação Bol.
Desde a criação de Shudu, foram muitas as marcas de luxo com quem a modelo virtual trabalhou. Essas marcas geraram lucros de milhões de euros, mas terão esses lucros beneficiado criadores, empreendedores, modelos negras? O mais certo é a resposta ser negativa.
O facto de a marcas escolherem trabalhar com modelos virtuais negras e, mais uma vez, o dinheiro não chegar a pessoas negras, mostra que esta realidade está a contribuir para a repetição de práticas históricas do posicionamento “sobre negros, mas sem negros”. Relembrando o blackface, uma prática que tem origem nos EUA e se popularizou no século XIX, em que atores brancos pintavam a cara de preto, para depois, nos chamados minstrel shows, reforçarem estereótipos relativamente a afro-americanos em performances depreciativas. Com a “top model virtual”, Shudu, o que se tem criticado nesta lógica do reforço de ideias pré-concebidas sobre as mulheres negras é o fato de as suas formas sensuais e fotografias em que está nua a colocarem na posição de mulher negra fetiche e consequentemente a sua hiperssexualização.
Modelos negras continuam a ser discriminadas em castings e a criação de uma forma “cómoda” de fazer com que essa discriminação continue e com a “vantagem” de haver uma alternativa economicamente mais lucrativa até, deixa o corpo negro mais uma vez numa posição de alteridade. As modelos virtuais não causam dramas, não se cansam, não precisam dormir. Também a maneira como estas modelos são retratadas parecendo ter vida e opiniões próprias, que na realidade são a dos seus criadores. No caso de Shudu, o seu criador Cameron-James Wilson, consta que escreve os conteúdos da sua modelo com uma mulher racializada.
Mas vejamos uma das descrições da carreira de Shudu feita, em 2022, num artigo do The Outlet, o principal ponto de venda digital da Austrália, que se dedica aos temas estilo de vida e vida de luxo:
“A modelo sul-africana teve uma ascensão astronómica à fama: Nos primeiros dois anos da sua carreira, foi destaque na Vogue, Hypebeast, V Magazine e WWD, foi capa de campanhas para a Balmain e a Ellesse, agraciou a passadeira vermelha dos prémios BAFTA 2019 com um vestido feito à medida pela Swarovski, lançou o seu próprio disco e foi nomeada uma das pessoas mais influentes da Internet pela Time.”
Realmente, e, como concluía o próprio artigo, é difícil saber se se trata de uma pessoa de carne e osso ou não.
Shudu não é a única modelo e influencer virtual, mas foi a primeira e é uma mulher negra.
A preocupação no setor da moda é geral e um exemplo que tem sido citado é a Deep Agency. A empresa, um estúdio de fotografia e agência de modelos, não precisa de câmaras, nem de modelos para satisfazer os seus clientes, que podem co-criar a modelo que pretendem que represente os seus produtos, desde que tenham a autorização para o uso da imagem da pessoa “modelo” para a criação do “modelo” virtual. O criador da plataforma, o holandês Danny Postma, consegue que os seus clientes paguem menos de trinta euros para obterem uma modelo virtual. Um preço irrisório para o que pode vir a representar no futuro.
A prática de utilização de imagens virtuais não é uma novidade e tem sido também utilizada em filmes de Hollywood para a substituição de atores em cenas improváveis, uma finalidade que pode ser considerada razoável. Mas, o que dizer do futuro das modelos que não podem fazer frente às suas concorrentes virtuais que “trabalham” por menos de trinta euros por mês?
Se o universo dos criadores de novas tecnologias está em alvoroço, tendo em abril, o CEO do Twitter, Elon Musk, juntado a sua voz a milhares de signatários que através de uma carta aberta pediam uma pausa de seis meses no desenvolvimento de sistemas mais poderosos do da área da IA, é porque provavelmente existem razões para nos preocuparmos. Apesar das suas motivações serem provavelmente de ordem económica e por uma questão de domínio da própria tecnologia. Mas relativamente, à postura a assumir, ainda não há um consenso. Hilton, que alerta para os perigos da IA, em declarações à Reuters, prefere a intensificação das investigações à paragem durante seis meses dos desenvolvimentos “para descobrir o que fazer a este respeito.” Seja pelo blackface artificial, pelos impactos no futuro da educação, pela substituição da força de trabalho humana que já está a ter impacto em diferentes áreas, esta exortação a um maior investimento na área da Inteligência Artificial, também não é de nos deixar descansados.