Dizer que é importante escrever para as nossas crianças, leva inevitavelmente à pergunta “Quem são as nossas crianças?”. Estou a falar de todas as crianças. Todas as crianças merecem ver-se representadas em livros, filmes, desenhos animados etc. E quando falo de representação, falo da sua representação enquanto as crianças que são. Crianças que brincam, choram, riem e fazem perguntas, muitas perguntas.
Escrever livros infantis tendo como personagens centrais crianças negras e em que tematizamos questões raciais é, por um lado, extremamente necessário e, por outro, profundamente delicado. Assim como muitas pessoas negras acabam por se ressentir ao verem que apenas são chamados para palestras, eventos, programas de televisão quando a temática é racismo, os livros infantis também acabam por poder cair nessa armadilha. Gostaria de ler livros infantis com personagens negras em que o facto de elas serem negras não fosse um problema a resolver nem uma bandeira a erguer. A doutrina da “auto-ajuda” com frases de afirmação injetadas nas nossas crianças “O teu cabelo é bonito”; “O teu nariz é uma bolinha fofinha”; “A tua cor é reluzente como uma estrela,” na esperança de que elas aprendam a integrá-las no seu dia a dia para tentarem desfazer a poluição a que estão expostas diariamente nos diversos ambientes que frequentam e através de múltiplos materiais aos quais têm acesso, inclusive os livros, é uma ferramenta amplamente encorajada. Precisam as nossas crianças disso? Precisam. Infelizmente, as nossas crianças ainda precisam de ter vários recursos para conseguirem ficar à superfície deste mar poluído de desinformação, que as inunda cotidianamente e sem piedade. Cada livro, cada filme, cada canção, cada poema escrito com essa intenção importa. Porque as nossas crianças importam. Serão elas a desenhar o futuro que as libertará deste peso carregado por múltiplas gerações, que não tinham espaço para expressar as variadas versões de si, o que é crucial para que elas se desenvolvam de forma saudável e consigam contribuir para o desenvolvimento de outras crianças como elas.
Recentemente, assistia a um programa norte-americano, a referência do costume, em que se discutia o entusiasmo com que se via personagens negras na televisão (não referiam a década). Até mesmo em publicidades em que só se vislumbrava uma pessoa negra a passar rapidamente ao fundo, de bicicleta, e se contava “Ali está uma pessoa negra!”. Continuamos a contar-nos em diversos espaços. Mas chegámos ao ponto de também contar o tipo de representação. Não contamos apenas quantos estão, mas ao que estão. Já não estamos apenas de passagem ou no fundo do cenário. Não estamos apenas como personagens secundárias ou figurantes. Estamos como protagonistas, mas os números ainda são baixos e pouco reveladores da precisão dos retratos que são feitos.
Novamente, recorrendo a dados dos EUA, por continuarmos a não ter estudos que se baseiam em dados étnico-raciais em Portugal, o infográfico da autoria de David Huyck and Sarah Park Dahlen “Diversity in Children’s Books 2018” [Diversidade em Livros Infantis] revelava que apenas 1% de livros infantis retrata crianças ameríndias, as latinas tinham 5% de representação, as asiáticas 7%, as africanas e afro-americanas 10%, os animais 27% e as crianças brancas 50%. O estudo conclui que a literatura infantil continua a representar mal as comunidades sub-representadas, e quis que esta infografia mostrasse não só a baixa quantidade de literatura existente, mas também a inexatidão e a qualidade desigual de alguns desses livros. Ou seja, que tipo de protagonistas queremos ver? A que tipo de livros, enquanto objetos, queremos que as nossas crianças tenham acesso? Que tipo de narrativas queremos ver refletidas nesses livros? Estas perguntas devem ser feitas relativamente a representações em todas as idades, mas para as crianças é preciso pensar com mais profundidade respostas que possam resultar em um impacto mais profundo.
O nível da perceção da realidade a que temos acesso através de produtos culturais não pode ser menosprezado. Muitos dos nossos preconceitos e entendimento do que são normas sociais advêm desses produtos. A música, os filmes, a publicidade e, certamente, a literatura, são ferramentas imprescindíveis para a educação e, por isso, devem estar na ordem do dia quando pensamos nas nossas crianças. Escrever para as nossas crianças importa.