Texto de Josina Almeida, originalmente publicado no BUALA
É o mercado estúpido!
A luta anti-racista e o feminismo são luta de classes, deixam ou arriscam a deixar de o ser se instrumentalizadas. À direita, simplificando, quando o sistema captura partes da sua agenda, as reconfigura e assimila (mercadorizando-as) em operações que garantem, no mesmo movimento, a manutenção do sistema e a recomposição dos seus limites. À esquerda a instrumentalização é feita quando esta tenta secundarizar, tutelar, e quando lhes retira autonomia. Não muito diferente do que se passa com as lutas dos trabalhadores.
Na disputa entre trabalho e capital, este necessita de dispor de reservas de mão de obra disponível de forma permanente, para poder determinar em cada momento o seu valor, agora à escala global. Um exemplo prático desta disputa: o PIB nacional apresentou um crescimento no primeiro trimestre do ano, ficou a dever-se ao crescimento das exportações de bens e serviços, fundamentalmente ligadas ao setor do turismo. No entanto, todos ouvimos recentemente o setor empresarial turístico no Algarve dizer que não tinha mão-de-obra para as suas necessidades. Para os valores e condições de trabalho que oferecem não têm, mas isso não foi motivo para não funcionaram. Os emigrantes, mais ou menos temporários, os refugiados, das guerras, do clima, da economia, fazem parte da mesma bolsa dos desempregados, dos estudantes que precisam de ajudar as famílias ou pagar os seus estudos, das pessoas que precisam de acumular empregos. Esta reserva de pessoas disponíveis para aceitar valores mais baixos porque não têm alternativa, faz com que quem contrate imponha não só o valor que entende como faz deste valor uma referência que controla o valor trabalho dos restantes trabalhadores. O PIB subiu mas os benefícios dessa subida não se traduziram na remuneração ou qualidade do emprego/trabalho. Conclui a neoliberal: é o mercado estúpido!
Hierarquizar o valor do trabalho
A divisão sexual e internacional do trabalho tem como resultado hierarquizar o valor do trabalho dentro do conjunto de todos os que dele precisam para viver/subsistir. O sexismo e o racismo, entre muitas coisas que produz (e de que é produzido), tem também como consequência a criação de valores trabalho diferenciados, ao redor do mundo e/ou ao redor do género. Contribui (como serviu para a criação do sistema económico em que vivemos) para armar o capitalismo da sua arma mais poderosa. A luta antirracista e o feminismo afrontam diretamente as estruturas onde se forma, reside e propaga a ideologia que suporta no plano concreto a divisão de trabalhadores, por condições e valores de remuneração.
“One of the other things that Marx gave us, deeply and profoundly, is not a theory with substance in it, but a method of thinking, which he called the dialetic. It is the awareness of the continual contradictoriness of the world, (…) Marx did not see and therefore did not understand, the forms of modern imperialist capitalist relations. He saw the drive which capitalism had toward the construction of a world market, but the idea of a world productive system with a vast new complex international division of labour, which makes the poor of the third world into the proletariat of the first and which binds nation and nation together in a set of the most complicated and deeply implanted social and economic relations, is a world Marx did not confront. Consequently, there is a whole range of things about the relationship between the proletariat, or the working class or productive labour in the advanced world and the forms in which it connects to the poor and the oppressed — indeed too their apparently non-marxist classes like the old peasanty”
Stuart Hall, For a Marxism Without Guarantees, Abril de 1983
Por outro lado, para quem se preocupa ou estuda a constituição de sujeitos políticos, o processo de subjetivação, individual ou coletivo, aquele que se subleva, o momento em que passa do porque é que isto é tão injusto para o de eu não aceito que seja assim, este momento ou processo é indispensável na constituição de movimentos emancipatórios ou de lutas organizadas. Quando Marx distinguiu a classe em si da classe para si (aquela que tomou consciência de si enquanto classe) era deste momento de tomada de consciência ou da emergência do devir sujeito que falava.
“je me sens plus proche de nombre d’auteurs qui, à partir d` une relecture de Spinoza, ont proposé une theorie des affects sans établir aucune relation hiernárchique entre emotions e comprehension, entre sensibilité et rationalité, entre esprits et corps: notre capacité de penser correspond à notre capacité d`agir, les deux vont ensamble; notre capacite à recevoir et élaborer des idées s`articule avec la sensibilité de nos corps qui nos fait interagir avec l`autres corps.
Lés emotions et leus manifestations corporelles demandent aussi à être analyses et interpretées à l aide de la raison, comme nous a appris, entre autres, l´anthropologie culturelle d’Ernesto De Martino. Cette dialectique est essentielle pour une histoire culturelle des révoltes et des revolutions.
Enzo Traverso, AOC, Les images et l`histoire Culturell, 2022
Momentos de subjetivação
Quando uma mulher decide não se conformar a um sistema a que tem de se adaptar de determinada maneira por ser mulher, quando uma mulher negra entende que não tem de aceitar a violência de um motorista de autocarro por ser negra, quando um jovem decide não aceitar o que fazem os governantes em relação aos compromissos que estabeleceram nas inúteis COP’s, tudo isto são momentos de subjetivação, de politização, espaços abertos potenciais de luta onde, como diz Enzo Traverso, os corpos se encontram com outros corpos, descobrem aquilo que os une, e o que poderão ter em comum. Não há momento de subjetivação que não se realize através da(s) identidade (s) do sujeito. Quando os estudantes liceais e universitários acorrem a acudir as vítimas das cheias e dão conta da miséria em que viviam milhares de pessoas, principalmente na periferia de Lisboa, e esse enfrentamento com a realidade faz aumentar a indignação que já vinham sentindo contra a ditadura, esse momento de politização não deixa de ser feito através da sua identidade, enquanto filhos das classes médias e altas, e é a partir desse ângulo, da sua posição, que fazem o movimento de reconhecimento do outro, do que está privado dos mesmos privilégios e, por isso, morreu no meio das enxurradas de 1967.
“Sente-se sujeito apenas aquele ou aquela que se sente responsável pela humanidade de um outro ser humano” (Alain Touraine, 2006). As identidades atravessam indivíduos, classes e comunidades, são constituintes e não separáveis ou descartáveis ou colocadas em segundo plano, fazem parte da equação onde se constituem sujeitos políticos. A subjetivação é uma saída do indivíduo para o corpo social. Aqui, no corpo social, para além de regimes distintos de opressão, ela pode encontrar também um regime comum de exploração. Estão longe de significarem individualismo, como diz Nuno Ramos de Almeida e têm sugerido outros, à esquerda e à direita (“Não construam monumentos que não possam derrubar”, Setenta e Quatro, 11 maio 23).
“Nem é preciso dizer que a própria unidade de uma coalizão não está dada de antemão, ela mesma está em jogo nesse processo de subjetivação (…) Estou convencido de que tal compreensão do capitalismo é profundamente falha e que uma maneira diferente de olhar para a história e o funcionamento contemporâneo do capitalismo poderia nos fornecer uma maneira eficaz de abordar a questão da “simultaneidade” dos sistemas de opressão levantada por teorias da interseccionalidade.
A fabricação diferenciada de corpos hierarquizados, onde sistemas de opressão como o sexismo e o racismo figuram com destaque, surge como um momento crucial na produção da força de trabalho mercantil, que segundo Marx é a pedra angular sobre a qual ela se baseia, não menos que a existência do capitalismo.”
INTERSEZIONALITÀ, IDENTITÀ E L’ENIGMA DELLA CLASSE Di SANDRO MEZZADRA, Inserito da Redazione |Out 9, 2021|Comune&Metropoli, EuroNomade
Em terceiro lugar, como escreveu Cristina Roldão (Ainda sobre o debate em torno da linguagem inclusiva, Público, 21 julho de 2022) “se o texto pretende recordar à esquerda que o “verdadeiro” marxismo dá preponderância à dimensão socioeconómica, poderia discutir também as perspetivas marxistas que, desde cedo, procuraram articular anticapitalismo, antirracismo e anticolonialismo. Longe de ser apelidada de “identitarista”, a III Internacional Comunista (IC) dos anos 1920s e 1930s reconhecia aquela que ficou conhecida como a “Questão Negra”, onde se destacaram marxistas negros como George Padmore. Entre outras coisas, defendia-se que a luta contra o racismo e colonialismo era central para a derrota do capitalismo e que os negros deveriam ter formas de organização própria dentro da IC. Esse património haveria de ter o seu papel, mais tarde, nos movimentos de libertação africanos e no movimento negro na diáspora”.
Dificuldades da esquerda na luta
O artigo de Nuno Ramos de Almeida dá corpo a uma posição que tem vindo a ser sugerida ou veiculada por alguma esquerda, posição que denuncia a um tempo um desalento e, a outro, a incapacidade de enfrentar criticamente as dificuldades e erros na esquerda em constituir espaços de luta e resistência à investida do capitalismo e neoliberalismo nas últimas décadas. Esta posição prefere olhar com angústia para aquilo que mexe para concluir que o identitarismo, baseado em demandas individuais é neo-liberal. Como se esta esquerda institucional não tenha construído também as suas identidades. A identidade do trabalhador branco com contrato efetivo no estado ou no privado, identidade que deixou desde os anos 80 de corresponder a parte da massa trabalhadora, para a qual os sindicatos não procuraram ou não conseguiram entender as múltiplas e novas formas de trabalho e fazê-las corresponder a formas de lutas.
Quando comecei a trabalhar nos anos 2000 e me organizei no sindicato, este, tirando uma ou duas exceções na sua direção, não tinha nenhum programa de luta para os contratados no ensino, que eram já aos milhares, e, além disso, fazia questão de boicotar através de elementos sem qualquer papel de luta nas suas escolas ou no sindicato, assembleias e decisões de iniciativas dos contratados (sem vínculo efetivo). Era sobre identidades cristalizadas que em nada correspondiam já à realidade do conjunto dos trabalhadores que se tecia então a “luta de classes”. E isto verificava-se em todos os setores, trabalhadores de empresas de outsourcing, etc., enquanto assistíamos nas décadas precedentes ao fim de grande parte da indústria e da atividade transformadora e a consequente chegada ao desemprego de centenas de milhares de pessoas, excluídas do processo da integração na UE ou então integradas nas escolas de formação para as requalificações, que os fundos europeus fizeram florir junto ao grande alcatroamento nacional.
Quando digo trabalhador branco é porque também ficaram de fora as centenas de milhares de trabalhadores imigrantes que vieram principalmente dos recém países africanos de língua portuguesa. Alcatroar o país e construir as novas cidades dormitórios da periferia onde ia habitar a crédito a maioria da classe média. Entre os bairros J.Pimenta e a Expo98 esta enorme força de trabalho também ficou de fora das dinâmicas institucionais da luta de classes, enredada na sua cristalização “identitarista” do trabalhador. E podia acrescentar à construção desta identidade o trabalhador Homem, porque para além da demanda do “trabalho igual salário igual”, da luta pela existência da rede pública de creches e infantários, e da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, a questão do trabalho não remunerado em casa, aquele que permite que todos possam levantar-se a cada dia para cumprir a sua jornada de trabalho, feito ainda hoje maioritariamente por mulheres, este trabalho também ficou de fora das agendas sindicais.
“the apparent unity of the working class given by its economic position, are not going to be resolved and locked up by the end of a single and homogenous and predictable process. That law of inevitability has done serious damage to marxism. It has done serious damage to the marxist movement, because it has created a policy of inevitability. And it has created institutions which depend on the politics of inevitability. It has disarmed us, in relation to the complex new forms and arenas in which modern forms of social struggle, including the class struggle, has to be or have to be preserved, we have to discover what the class struggle is in the 1980s and 1990s”
Stuart Hall, For a Marxism Without Guarantees, abril de 1983
Não há uma folha num caderno de notas, como diz também Stuart Hall, a dar-nos as respostas ao que fazer. Ramos de Almeida de alguma forma também o diz ao citar Marx quando este escreve que uma coisa é uma ferramenta para analisar e compreender o mundo, outra são as condições concretas ou conjunturais em que ele se nos apresenta.
Proponho que se olhe atentamente então para os rios que correm (o movimento LGBTQIA+, o movimento antirracista, o movimento feminista, os movimentos pelo clima, os movimentos de indígenas que impedem a construção de um oleoduto). Eles já materializam a luta. Não se trata, portanto, de olhar para além destas agendas, trata-se de olhar com e através delas.