Uma das primeiras palavras que aprendemos em criança é “não”!
À medida que crescemos aprendemos a diferença entre eu e tu, meninos e meninas, miúdos e graúdos e também a regular os nossos limites.
Quando criança aprendemos logo que só é negado o que não faz parte de nós e é assim que reconhecemos os nossos contornos. Como em fronteiras internacionais é preciso regular o movimento no nosso espaço, e desde cedo aprendemos a criar alianças, com a família nuclear que fazem parte da nossa Europa, os tios e a família alargada do espaço Schengen, e aquele tio excêntrico que fez asneira e perdeu o livre acesso, mas pode aparecer sem pedir visto. Amigos e amantes chegam mais tarde e vão pedindo acesso à nossa união e, se formos inteligentes, revemos as candidaturas com muito cuidado e não nos baseamos simplesmente na proximidade geográfica.
Os mesmos tipos de eventos causam a transgressão de fronteiras pessoais e geográficas; um beijo forçado e a profanação física de outro corpo é possível quando nos sentimos superiores ao outro, mais poderosos e com um direito divino a aceder ao seu espaço. Porque sim, porque somos mais e melhor. E como na invasão de um espaço pessoal, quando invadimos um país existe toda uma narrativa que justifica: a minissaia, a bebida e o olhar sedutor, são as armas de destruição massiva do autocontrole do abusador, e mesmo que se provem inexistentes, o mal já está feito.
O toque no cabelo é diferente, são elas e eles que agora são elas que tocam esperando assimilar, como por osmose, o nosso génio que por magia passa pelo cabelo para os dedos alheios que se apropriam de penteados, cozinhados, Semba e Kizomba em Lisboa, Londres e Luanda. Também aqui existe uma narrativa de quem dá mais estilo, mais estrutura e mais aceitabilidade porque uma, podem falar por nós, representar as nossas lutas e dançar por nós… e depois. Vestem a nossa roupa com o nosso cabelo, comem da nossa comida e casam com os nossos homens e chamam-nos “biiiach” porque sim, enquanto tu lhes chamas-te sister.
Num abraço forçado são amigos que te traem, amantes que te traem, violam o laço sagrado e o teu espaço, a tua energia, ou um estranho que ocupa espaço para o qual não foi convidado. O abraço não é bem vindo, não é merecido ou apropriado. Como um país vizinho que vai expandido o seu território para cima do vizinho do lado, a invasão é silenciosa e muitas vezes não é sentida até ser tarde demais.
E abrimos acesso à comparação, o inimigo número um da felicidade. E aquelas vizinhas, tias, colegas que invadem a nossa mente? Com crítica, comparação e dúvidas infundadas que corroem a autoestima e confiança no futuro? E nós alimentamos nas redes sociais comparando-nos com corpo de adolescente, mente de astronauta e espiritualidade de um monge tibetano. Agora já não se sonha em ser médico ou engenheiro. Quem não quer ser milionário? Famoso, influencer…?
É em criança que somos socializados a ceder acesso ao nosso espaço, ao nosso mundo privado, ao nosso corpo, a nossa mente, aos poucos… Os nossos pais, e em nome da boa educação, ensinam-nos a responder quando nos questionam, a partilhar, a participar, a sorrir, a ser principalmente boa menina. Desaprendemos a dizer não! “Vá lá dá dois beijinhos ao tio, dá um abraço ao menino, isso quer dizer que gosta de ti… oh é teu namoradinho?” E toda a vez que engolimos um “não” abrimos uma brecha nas nossas fronteiras, por vezes a brecha vai ao ponto de permitir a entrada sem visto, passaporte ou bilhete de identidade. Correndo o risco de recebermos invasores que vêm disfarçados de conquistadores, refugiados como definidos pela extrema direita, os tais que vêm de zonas de guerra para sugam os nossos recursos, muitas vezes recuperam e emigram para países mais prósperos; outros são turistas que querem tirar fotos para o Insta, comer o prato nacional e seguir em frente.
O mesmo se passa na sociedade em geral, onde nas escolas passam vídeos que mostram “toque bom e o toque mau” para as crianças conseguirem diferenciar o toque que é apropriado e as partes do corpo que não devem ser tocadas por estranhos. Para os mais graúdos, os ingleses criaram um vídeo muito Bbitish que fala de sexo como chá, para explicar que é preciso ter consentimento para servir chá a alguém. Está muito bem conseguido porque só toma chá quem está consciente, quem quer chá aqui e agora, não quem tomou chá da última vez que estiveram juntos… Chá! Só mesmo ingleses para compararem sexo com chá, mas dá para pensar.
No local de trabalho todos temos uma sessão sobre os tipos de assédio, mas todos conhecemos alguém que continua a dizer piadas inapropriadas, alguém que toca com o intuito de aceder ao que não tem direito. Estamos em tempo de acesso fácil. Começou com os programas de “realidade” onde, em nome do entremetimento, esbatemos a definição de privacidade e onde os participantes assinam contratos onde aceitam renunciar o seu direito à privacidade. Outros programas seguiram despindo o corpo de preconceitos e inibições. Muitos de nós víamos com prazer privado a depravação alheia enquanto dizíamos que nunca nos colocaríamos naquele lugar. Mas com o avanço das tecnologias, todos participamos e cedemos um pouco de nós em troca de conveniência, as nossas passwords todas com o Facebook que nos convida a partilhar o nosso local de estudo ou trabalho, estado civil ou relacional, partilhar onde estamos em tempo real… Agora os telefones têm a nossa impressão digital, a nossa face, a nossa conta bancária e as fotos mais ou menos privadas; vidas feitas e desfeitas numa nuvem de informação.
Novos crimes têm de ser inscritos na lei, porque existem novas formas de aceder a espaços e momentos privados, e gente mais ou menos anónima não está livre de perigo. Parece cada vez mais fácil ter acesso a uma pessoa, e qualquer pessoa está à distância de um goolge search, de uma câmara escondida, de e-mails partilhados sem consentimento.
E depois vem o futebol feminino com o beijo da discórdia, o silêncio dela, a defesa dele, as palmas do outros, o tempo que demorou a se resolver, porque “boys will be boys”…. mas os rapazes crescem para serem padres, presidentes da federação de futebol, produtores de filmes, cantores ou atores mais ou menos famosos… desculpamos, entranhamos e depois estranhamos, quando eles se multiplicam.
Num mundo tão livre e sem contornos ou limites estabelecidos, aprender a negar acesso indesejado é um ato de autopreservação, em qualquer fase da nossa existência.
Brindemos ao não!
Um não redondo sem reticências, sem explicações ou remorsos, simplesmente não e ponto final.
Neguemos o acesso à família próxima ou distante que se colocou fora do nosso espaço de livre acesso por palavras e obras menos cristãs.
Acesso negado a frenimies, falsos amigos que se provaram traidores e traiçoeiros, ou simplesmente desleais.
Acesso negado a colegas engraçadinhos que te tocaram no cabelo e roubam ideias ou tempo de antena.
Acesso negado a turistas que permanecem no nosso território sem visto.
Acesso negado à comparação a ideias irreais que nos roubam a paz e a felicidade.
Acesso negado ao diretor de futebol, ao produtor, ao jornalista, ao ator, ao cantor, ao padre, ao amigo da faculdade, ao vizinho do lado…