Língua que floresce por vingança: o tupi em Portugal

Há uma pitangueira no quintal de minha amiga Marta. Aqui pelo Minho, quando entra outubro, é tempo de araçá. No início do verão, é floração das jacarandá. Além de ter sempre gente por perto falando e comendo ananás, pipoca, caju, abacaxi, maracujá, tapioca entre outras palavras.

Essas palavras são gentes da minha gente. São indígenas, palavras primeiras, palavras antigas. Acho até bonito ver português parando a língua para dizer que come mandioca. Acho bonito que palavras do tupi tenham atravessado o atlântico e enraizado por aqui. 

Tupi é um tronco na constelação de línguas ancestrais, mas foi a primeira a ser física e judicialmente perseguida em Pindorama (Brasil) por uma das mais celebradas figuras na memória portuguesa: Marquês de Pombal. Quem visita ou mora em Portugal se acostuma a ouvir entusiasmados guias, moradores, motoristas e vendedores de souvenir contando orgulhosos da importância do estadista, sobretudo depois do terremoto de 1755. Percebo um discurso sempre apaixonado, fruto de um projeto tão antigo quanto as navegações e invasões: inventar epopeias e heróis. A mim, entretanto, nenhum desses discursos parece dar conta ou — ao menos — indicar a ambiguidade da figura do Marquês. Sua imagem, sempre irretocável nos discursos de populares, parece-me tão artificial e fantasiosa quanto as esculturas das crianças indígenas “protegidas” pelo padre Anchieta no Largo da Misericórdia em Lisboa.  

Ensaio dizer a motoristas de aplicativo, que passam a maior parte das viagens elogiando o Marquês, que o homem foi um déspota, um ditador, um etnocida. As palavras não saem. Respiro fundo e silencio. O silêncio de uma voz historicamente silenciada, sempre faz algum eco, mesmo que apenas para si, na angustiante repetição solitária dela própria. No meu caso, desconfio que o silêncio também me protege de desenvolver qualquer doença no fígado, onde se aloja toda minha raiva. Uma raiva ancestral de não ter crescido ouvindo e falando a minha língua por causa das políticas de dominação e submissão da colônia empreendidas, principalmente, pelo aclamado Marquês de Pombal.

A situação colonial, muito resumidamente, era a seguinte: Portugal dependia, quase exclusivamente, da exploração do Brasil para manter os luxos de sua corte. Até o final do século XVIII, a língua portuguesa não era utilizada para a comunicação, mas sim a língua geral: o nheengatu, que juntava o tronco tupi com muitas outras famílias linguísticas. O nheengatu nasceu do paradoxo existente entre os interesses coloniais e a própria resistência indígena. Considerações sobre esse paradoxo merecem ser desenvolvidas, mas para poupar um pouco mais meu fígado, deixemos para um outro texto.

A língua é um modo de perceber o mundo, de organizar sentidos, valores e lutas, obviamente num processo de dominação colonial; por isso, é a primeira a ser perseguida por meio do que ficou conhecido como “Diretório dos índios”. Por meio dele, o Marquês implementou políticas que promoveram o enfraquecimento de nossas línguas e culturas, começando pela expulsão dos jesuítas (grupo que também disputava interesses de dominação, mas por meio do ensino em língua tupi) até o incentivo de casamentos interraciais com claros interesses de assimilação e etnocídio. A ideia de que Pombal “libertou” povos indígenas da escravização baseado na ideia de civilização é uma falácia tão absurda quanto a de descobrimento. Civilização é o antônimo de liberdade. “Civilizar” é impor, adestrar. No colonialismo, nenhuma palavra que fala de liberdade expressa o sentido dela, é apenas uma palavra, como muitas outras em português, vazia e sem espírito. 

Nossas palavras têm espírito, cantam, dançam, oferecem alegria e abençoam. Talvez, por isso, sejam tão perseguidas. Krenak diz que “a vontade do capital é empobrecer a existência” para que operemos como robôs; nesse sentido, perseguir a autenticidade de nossa língua é nos empobrecer e, assim, tentar nos comprimir nesse modelo pré-fabricado de existência. Por aqui, gosto de saudar as pessoas na minha língua ancestral. Sei que os espíritos dessas palavras acordam e se animam. Gosto de pensar que o vocabulário alimentar e a floração das jacarandá são uma prova de que somos raízes e resistência. Eu acho que as jacarandá também florescem por vingança. Sua beleza é impossível de ignorar e todo mundo diz seu nome. Além disso, elas têm sua própria língua e suas raízes não são assimiláveis por esse solo, não coincidem sua floração com as plantas europeias. Decidem florir no seu próprio tempo, ninguém as domina.

Considerada por muitos morta, mas enraizada e viva, minha língua ancestral segue cantando e alegrando aqueles que sabem reverenciar toda a grandeza de um tronco velho.

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