A Angela tem razão!

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” Estas palavras de Angela Davis, partilhadas num auditório repleto de nós, na Universidade Federal da Bahia (Brasil, 2017), arrepiaram-me e ficaram comigo. Não sabia muito bem o que fazer com elas, mas sabia-as verdadeiras e queria vê-las reconhecidas. Anos mais tarde, em 2022, Trevor Noah, apresentador sul-africano de um dos programas mais respeitados dos Estados Unidos, The Daily Show, dizia ao despedir-se da cadeira que ocupou durante sete anos: “Se quiseres saber o que se passa na América, [e eu acrescentaria no mundo] pergunta às mulheres negras.”  Às mulheres negras que lhe ensinaram a estar e a ser. Às mulheres negras que apesar da adversidade não se podem dar ao luxo de baixar os braços. A essas mesmas mulheres negras e populações racializadas, que sofrem mais em situações de adversidade, algo que a pandemia da Covid 19 veio apenas confirmar, como concluiu o Relatório da Comissão do Conselho da Europa Contra o Racismo e Intolerância, referente a 2021, em que se verifica uma maior marginalização de grupos vulneráveis, reforço do racismo e aumento da pobreza.

Perante esta realidade, ao eco das palavras de Angela Davis junta-se a conclusão de Trevor Noah: “as mulheres negras não se podem dar ao luxo de esperar para ver se a situação melhora.” Elas têm de fazer com que a situação melhore e sabem que têm de ser os motores das transformações estruturais de que precisam por uma questão de sobrevivência. E celebram-se em processos infinitos de reinvenção; seja a reinvenção da sua imagem, através da estética que faz reverência às culturas negras e ecoa o grito de movimentos culturais como o norte-americano, dos anos 1960, “Black is Beautiful”, ao qual sociedades parecem não dar ouvidos; seja ao criarem negócios para responder a demandas económicas, educacionais, de saúde de populações racializadas para as quais o mercado parece não ter visão; seja criando plataformas de informação para a partilha de histórias para as quais o mundo parece não ter sensibilidade.

É aqui que a Afrolis se encaixa enquanto um projeto digital independente liderado por mulheres negras e racializadas. Queremos celebrar-nos sem deixar de olhar para as feridas que ainda procuramos curar.  Queremos ouvir-nos umas às outras sem nos fecharmos para o que nos rodeia, conscientes de que há um momento de fortalecimento das nossas histórias e um momento de entrega e transformação conjunta. Queremos olhar-nos e resgatar a alma sepultada e aterrorizada por tantos séculos de obstrução da luz sobre a nossa humanidade.

Queremos celebrar-nos sem deixar de olhar para as feridas que ainda procuramos curar.  Queremos ouvir-nos umas às outras sem nos fecharmos para o que nos rodeia, conscientes de que há um momento de fortalecimento das nossas histórias e um momento de entrega e transformação conjunta.

Este é um projeto de resgate das nossas histórias, mas também de ocupação do nosso lugar na sociedade. Trata-se de um processo em que vamos trabalhar de forma intencional para que a norma que somos se manifeste. Esse é um trabalho nosso, das mulheres negras e racializadas em qualquer parte do mundo. Mas estamos longe de conseguir resultados se a cooperação, a partilha de conhecimento e a compaixão pelas nossas hesitações não for uma constante. A transformação vem a um custo e neste caso é a incerteza. No entanto, foi na incerteza que eu sempre encontrei o caminho e é nela que me reinvento. Agora reinvento o projeto Afrolis, acompanhada por uma equipa de profissionais com a mesma visão.

Este percurso começou em 2014 de forma solitária, apesar de muitas contribuições (obrigada!) ao longo dos anos. Quando criei o audioblogue Rádio Afrolis, que, em 2016, se tornou uma a Afrolis Associação Cultural, não havia a variedade de podcasts que temos atualmente, eu não sabia se o projeto ia “pegar” ou não, mas precisava dele para respirar. Sufocavam-me as não-histórias sobre pessoas negras nos media. Sufocavam-me as edições das nossas histórias em que se nos apresentássemos como portugueses, por exemplo, os entrevistadores colocavam aspas ou pontos de interrogação na nossa afirmação.  Sufocava-me o facto de não me ver na televisão fora de contextos de guerra, fome, doença ou degradação. À data, daria tudo para ver uma família negra na televisão com uma vida normal e corrente, em que o pai se despedisse da mãe ao sair de casa com um beijo. Uma aspiração que para muitos pode ser banal, mas para uma mulher negra que já viveu isso e vê a sua realidade negada sistematicamente é devastador.

Nós procuramos criar uma rede de disseminação de realidades múltiplas de grupos que são colocados à margem, cujas vivências e contributos são omitidos ou desvalorizados. Acreditamos que a forma mais simples, eficaz e construtiva de fazê-lo é convidar pessoas desses grupos a participar da discussão, sim, mas também a escreverem a ordem de trabalhos. Este é, aliás, um movimento global. Exemplos como os filmes Black Panther: Wakanda Para Sempre e Mulher Rei, com grande parte de contributos de profissionais negros desde a escrita dos argumentos, aos atores e figurinistas são prova disso. O fenómeno destes filmes foi o efeito que causaram em populações negras em todo o mundo. A expectativa e o entusiasmo com que as pessoas aguardavam a chegada dos filmes foi reveladora da sede que ainda temos de histórias em que somos os heróis e heroínas, em que somos celebrados. Temos sido nós a investir nessas histórias, mas todos beneficiam desse investimento. Em Portugal, um exemplo recente, é o do projeto teatral Aurora Negra, impulsionado pelas atrizes negras Isabél Zuaa, Nádia Yracema e Cleo Tavares, estreado no teatro D. Maria II, em Lisboa, em 2020. O entusiasmo de ver atrizes negras em palco no Teatro Nacional também foi contagiante. Assim, como em 2018, a entrada de três deputadas negras, Joacine Katar Moreira, Romualda Fernandes e Beatriz Gomes Dias, no parlamento português, abriu novos horizontes para quem achava improvável que algo do género viesse a acontecer e levou muitas pessoas negras a votarem pela primeira vez. Celebramo-nos, sim.

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Nesta nova fase da Afrolis, vamos falar de empoderamento e praticá-lo, trazendo novas vozes para o nosso espaço, levando a nossa voz para outros lugares, criando parcerias e fortalecendo a rede de projetos mediáticos que se mostram cada vez mais diversos aqui em Portugal. Acreditamos que a participação ativa de mulheres negras, ciganas, imigrantes e de outras comunidades racializadas em meios de comunicação como produtoras de conteúdos, jornalistas ou fundadoras de projetos de jornalismo independente é uma estratégia fundamental para a transformação social.

Entre 2017 de abril e 2022, apenas uma em cada 5000 reportagens em todo o mundo se focou em temas relacionados com questões de igualdade de género, segundo o relatório, “From Outrage to Opportunity: How to Include the Missing Perspectives Of Women Of All Colours in News Leadership and Coverage”, que se refere a dados do Reino Unido.  Ainda de acordo com o mesmo estudo, as mulheres não-brancas sofrem de uma cultura de exclusão, que se reflete no facto de raramente serem protagonistas de peças jornalísticas, serem invisibilizadas na indústria mediática e organizações de jornalismo como líderes.  Um outro estudo, de 2018, conduzido pelo Observatório Europeu de Jornalismo, revelou que, em Portugal, 58% dos jornalistas são homens contrastando com 48% de mulheres, que têm uma maior quantidade de artigos publicados em revistas online e jornais. Isto contraria a tendência da maioria dos países referidos no mesmo estudo, que conclui que as redações europeias são maioritariamente compostas por jornalistas do sexo masculino. Embora as mulheres jornalistas pareçam ter algum protagonismo em Portugal, elas não representam a diversidade étnica do país. Perante todos estes dados, é pertinente dizer: “Sim, a Angela tem razão!” A mulher negra e racializada tem de continuar a mover-se para transformar a sociedade.

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