Sempre me interessei pelo tema da identidade, pela questão definir o ser humano. — Quem sou eu?
Cristina Carlos, uma mulher negra, filha de Angola, enteada de Portugal, de empréstimo, atualmente, a Inglaterra. Tenho dois passaportes e recuso-me a pedir um terceiro, simplesmente, porque ainda acredito que o passaporte é mais do que um sistema de pontos e mais valias. Isso faz de mim uma constante i/emigrante, uma cidadã do mundo. E quando me sentei para escrever para a Afrolis, não sabia por onde começar, que linha tomar ou quem seria o meu sujeito. Parei e lembrei-me da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, esta mulher nigeriana que há mais de 10 anos disse ao mundo o que muitos de nós já desconfiávamos. Que já existe muita gente a escrever sobre gente de cabelos loiros que voam com o vento, gente que come maçãs, e vive num inverno rigoroso. Ela falava do perigo em continuar a escrever como se só existisse uma única realidade, uma faceta do mundo, das pessoas, das estórias. E esse é o perigo da generalização, da redução de tudo o que não são maçãs, invernos rigorosos e cabelos loiros que voam ao vento…a nada!
Adoro os livros dela, falam de gente como eu, mulheres que vão à cabeleireira africana e do amor-ódio que é a nossa relação com o cabelo. Fala de mulheres que namoram across the colour line, as dúvidas, as certezas e de quem aprende a amar para além da cor. Mulheres decididas e cheias de dúvidas, contando como se sentem estranhas na terra mãe. E fala da terra com o olhar dos nossos pais que viveram o horror da guerra, a euforia da independência e muito do desencanto que se seguiu. Mas fala com amor e o pudor de quem fala da sua/nossa gente… com amor. Muito amor.
Não porque estudos demonstram que a representação de imagens negras em literatura médica aumenta a empatia e consequentemente, melhora o nível de cuidados de saúde que a população negra recebe, mas porque essa era a sua realidade. Um menino negro saudável a sorrir feliz, para variar. E, assim, se criou outra estória, outra imagem, outra mensagem, sem maçãs, sem inverno, sem cabelos ao vento.
Mas se não vou escrever um livro, mas, sim, uma crónica para a Afrolis, será assim tão relevante falar de mim, de gente como eu?
Vou estacionar a pergunta, — very english — forma de dizer que já volto para responder é questão.
Eu não sou louca por futebol, mas adoro grandes espetáculos e o Cristiano Ronaldo. O Mundial no Qatar foi super interessante, porque ELES decidiram por nós o que era relevante. A BBC simplesmente decidiu que os ingleses que pagam TV License (taxa televisiva), não precisavam de ver a cerimónia de abertura do Mundial, mas, sim, um jogo de futebol feminino. Enquanto isso, no Irão, manifestações e apreensões continuavam a acontecer para marcar a morte de Masha Amini, a 16 de Setembro de 2022, às mãos da polícia da moralidade, por usar o véu da forma errada. Quantas vezes apareceu nas notícias, durante quantos dias e durante quantos minutos no total? — não chegou aos 90 minutos de um jogo de futebol. Não se tratava de invernos rigorosos, cabelos loiros ou maçãs.
Em 2022, um estudante de medicina Malone Mukwende, escreveu o livro Mind the Gap para fechar uma falha que existe no ensino de medicina, onde só se aprende a interpretar sinais de doença na pele branca. Tive de procurar em vários artigos para encontrar as raízes dele, Zimbabué, porque sempre o apresentavam como London based medical student [um estudante de medicina radicado em Londres] e os artigos são sobre ele, escritos por outros. E assim se acabam com omissões sobre o doente negro que durante séculos não existiu. Porque quem tem frio tem lábios azuis, quem tem febre fica com a pele mais rosada. Podíamos escrever capítulos sobre o significado desta omissão, mas eu escrevo sobre o significado desta revelação. Porque só nós podemos perguntar e responder: E nós com lábios escuros e pele negra? Não temos frio? Não temos febre? E a Masha Amini, não é notícia? Teremos de ser gente loira que come maçãs no inverno?
Existe uma imagem que faz parte de um livro de medicina onde a criança negra está sorridente, vestida e saudável. Serve apenas para ilustrar a localização de ossos saudáveis. Chidieberi Ibe, um estudante de medicina nigeriano, decidiu ilustrar imagens para livros de medicina com gente como ele. Não porque estudos demonstram que a representação de imagens negras em literatura médica aumenta a empatia e consequentemente, melhora o nível de cuidados de saúde que a população negra recebe, mas porque essa era a sua realidade. Um menino negro saudável a sorrir feliz, para variar. E, assim, se criou outra estória, outra imagem, outra mensagem, sem maçãs, sem inverno, sem cabelos ao vento.
Conduzindo a minha questão estacionada para a meta final… Sim, é relevante falar de mim e de gente como eu, porque tudo o que me/nos interessa é relevante. Por isso, em 2023, eu vou escrever estórias sobre gente com cabelo crespo, que vive em terras de cacimbo e chuva tropical, onde se come mandioca com ginguba assada ao mata-bicho. Ou não. Talvez escreva um pouco sobre eles! Sobre eles que sempre definiram o que é ou não é notícia, sobre o Brexit e a extrema-direita, os Trumps e os cabelos ao vento do mundo. E como nós, que comemos mangas em terras de eterno verão, vemos as notícias. Mas seja o que for, será sobre NÓS! Nós aqui, ali e além-mar, e sobre a pluralidade das nossas histórias.