Da autobiografia à reflexão: uma conversa com Gisela Casimiro

Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau, em 1984. É autora de Erosão e Giz (poesia), e do texto e dramaturgia de Casa com Árvores Dentro, espectáculo encenado por Cláudia Semedo e estreado no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço. Participou, entre outras antologias nacionais e internacionais, de Reconstituição Portuguesa (org. Viton Araújo e Diego Tórgo), premiada em Cannes. Os seus textos estão traduzidos para turco, mandarim, alemão, espanhol e inglês. É ainda artista, performer, curadora, tradutora e activista e conversou com a Afrolis sobre a sua trajetória, no podcast.

Afrolis (A): Publicaste este ano, com uma diferença de duas semanas, dois livros autobiográficos: Giz (uma coleção de poemas) e Estendais (livro de crónicas). Porquê agora? 

Gisela Casimiro (GC): Bom, primeiro não tem a ver com uma questão de decisão. Era bom que o processo editorial fosse uma decisão sempre e só do escritor, e não é, como é natural. Eu publiquei o Erosão, no final de 2018. Demorei muito tempo para conseguir publicá-lo. Foi através de uma amiga poeta e romancista, — a Judite Canha Fernandes, que me falou desta editora e de já ter publicado por eles —, que quando abriram uma call, ela alertou-me, eu concorri e assim nasceu o Erosão. E aí o processo foi bastante rápido, ao fim de alguns meses já tinha o livro cá fora. Mas antes disso, tive todo um processo em que mandei o meu manuscrito para várias editoras. Falei com várias pessoas sobre isso, mas em alguns casos fui rejeitada, noutros não obtive resposta. As respostas demoravam muito tempo e depois não eram nem positivas ou negativas. Enfim, foi uma luta, na verdade.

A: E como é que tu lidaste com essa rejeição dos teus livros?

GC: Eu lido bem com a rejeição. Com aquilo que eu não lido bem é com a falta de crítica, a falta de crítica construtiva. Eu vinha de um meio em que não sentia assim tão à vontade para mostrar aquilo o que eu fazia, embora estivesse mais naquela fase… quando vim viver para Lisboa em 2015, encontrei pessoas realmente muito talentosas e com as quais passei muito tempo e foi assim um voltar a uma vida cultural de forma ativa e consistente, regular… mas não era um meio diverso e talvez também por isso eu não me sentisse tão à vontade, porque sentia um bocado aquele síndrome do impostor e ao mesmo tempo, estar ali num meio que era maioritariamente branco, não era um meio propriamente diverso, representativo. Mas até perceber isso, senti-me quase um bocadinho como um satélite, e ia mostrando timidamente uma coisa ou outra, aqui ou ali, no caso da poesia.

Embora fosse escrevendo sempre em redes sociais, como por exemplo no Facebook, que eu sempre usei como ferramenta de escrita. Agora, em relação aos outros dois livros, passou muito tempo, mas também foi um tempo de pandemia, primeiramente, e eu não escrevo ficção, para já. Então é preciso ver que mesmo o Estendais já tinha sido rejeitado por uma editora, que depois me convidou para fazer um outro livro que em princípio sairá também este ano. Portanto, as crónicas não eram o que queriam, mas depois tiveram uma necessidade e fizeram uma proposta.

Eu demorei o meu tempo porque gosto de fazer as coisas de uma forma em que eu me sinta tranquila com elas e confiante. E também é preciso entender — e é otimo estarmos a falar sobre isso — muitas vezes quando somos artistas e sobretudo quando operamos em diferentes áreas, como eu faço, muitas pessoas não compreendem os timings das nossas concretizações ou as nossas criações. Tudo o que seja de artes visuais, no meu caso, as coisas que eu tenho feito tem um processo muito mais curto. No que diz respeito à escrita, a escrita é um processo muito solitário. É um processo que demora anos. É completamente diferente de uma editora nos convidar para escrever um livro, ou seja, fazer-nos uma encomenda, do que estarmos por nós a escrever durante anos, sem saber quando é que aquilo vai ser publicado, ou se vai ser. Mas lutando para que seja.

Portanto, cada livro tem o seu processo e tem a sua história. Mas lá está, se eu pudesse, eu já teria publicado, mas ao mesmo também fico contente. É preciso ter muita paciência para lidar com estas coisas e entender o que é que é uma rejeição, em alguns casos porque, no caso do Erosão houve uma pessoa que eu conhecia — eu tive pessoas que já estavam estabelecidas, que tentaram fazer essas pontes, e tentaram que as pessoas me lessem e era muito difícil e não tínhamos resposta, mesmo vindo daquela pessoa. Eu ainda tinha sempre de provar o meu mérito. Mas a questão é, as editoras são meios extremamente normativos, geralmente brancos, é verdade. E eu era uma autora negra desconhecida. Não tinha propriamente uma coisa que eles pudessem agarrar, porque eu vinha de um outro meio para ali, eu vinha da escrita.

A: Tu achas que o mercado editorial não está tão aberto à negritude?

 GC: Houve algumas mudanças. Nós temos é de perceber o que é que motivou essas mudanças e de que forma é que ainda continua a haver imperfeição e quanto trabalho ainda há para fazer em relação a isso. Mas eu experienciei alguma transformação, alguma mudança. Agora, às vezes, infelizmente… É sempre tudo uma luta e se calhar não deveria ser. Aquilo que para outros é natural, é normal, é dado adquirido, para as pessoas negras tudo tem que ser uma luta, nada é à primeira, tudo demora muito tempo e temos de andar ali a provar quem somos e o nosso valor constantemente para poderem investir em nós e acreditar em nós e tudo tem que ser muito bem justificado e se calhar com outras pessoas, isso não é assim. É mais simples. As portas já estão abertas. Connosco a tendência não é para aceitação. Primeiro, a tendência é para a rejeição. Mas até nem acho que, não penso que tenha sido só por isso, ou por isso. Porque houve uma outra pessoa que naquela altura foi a única editora mulher que leu de facto tudo o que eu lhe mandei — na verdade mandei-lhe tudo — e ela deu-me a sua opinião. Ela disse que não costumava dar opinião sobre autores que à partida não iria publicar, mas deu-me a sua opinião sobre o livro. E eu acho que isso é muito importante, porque nós temos de perceber isso também. Nós não vamos encaixar em todas as editoras do mundo, em todos os catálogos, em todas as categorias, não é?

 

não era um meio diverso e talvez também por isso eu não me sentisse tão à vontade, porque sentia um bocado aquele síndrome do impostor

 

Na verdade, a luta é para sair disso, para não ser conotado só como, para não ser limitada. Então também não me vou limitar. Mas o facto de uma pessoa que não me conhecia, ter gasto o seu tempo a ler efetivamente e a dizer o que é que pensava isso, isso é uma coisa que me ajuda, porque pode não ser ali, eu vou refletir naquilo que ela me disse e como eu também estou interessada em melhorar, eu vou aceitar aquilo, eu vou olhar para aquela crítica e vou pensar o que faz sentido e o que não faz sentido. E também acho que com estas aprendizagens é que nós vamos também confiando mais em nós, porque já houve coisas que eu quis fazer e que depois não fiz porque alguém achou que era melhor fazer antes aquilo.

E agora, por exemplo, também no Giz eu tenho poemas que são coisas muito antigas, que eu pensei isto é bom, isto faz sentido. Que coisas minhas antigas fazem sentido estar aqui que não estavam no Erosão? Ou o que é que já podia estar no Erosão e não esteve, mas eu continuo a achar que faz sentido? E fiz essas decisões, tomei essas decisões e sinto-me contente. Houve coisas das quais só deixei uma frase ou duas, houve coisas que deixei na íntegra. 

E a vida vai nos mostrando também, “tu escreveste isto naquela altura, escreveste isto desta forma e se calhar isto não pode ser dito de outra forma”. Estás a entender? São questões mesmo humanas, muito profundas. E há coisas que não podem ser ditas, podem estar num livro de poesia, mas não têm de ser ditas com metáforas e analogias veladas, têm que estar mesmo cruas. Têm que ser ditas como são e como aconteceram. 

A: Tu dizes que o livro Giz é um livro cru e doloroso. O processo de escrita também foi difícil?

GC: Não sei… Como foi muito dilatado no tempo, e quer dizer, tem uma parte que são… algumas coisas foram dolorosas, claro, obviamente. Falei sobre isso na apresentação, há poemas que tu escreves a chorar porque estás de luto ou o que for. Mas há coisas que tu olhas para elas e sim, as emoções estão associadas a algumas coisas e inevitavelmente trazem a memória desse sofrimento. Vais invocar esses sentimentos, mas escrever também já é ter ultrapassado de alguma forma. 

O Diário de Sonhos foi uma coisa que eu fui colecionando ao longo de anos e ainda vou colecionando e falando sobre isso.  Acho que o que é doloroso é quando tu tens as coisas espalhadas por aí e elas são cartografia das coisas que te aconteceram, das escolhas que tu fizeste, mais ou menos certas, que for… Tu vais vivendo uma coisa de cada vez, vais lidando e depois há aquelas que se interlaçam. Depois quando vês isso tudo condensado e agora fazendo todas as revisões que eu tive de fazer, escolher os nomes das secções e ver o que é que eu vou deixar de fora e o que é que não vou deixar de fora, dar mais um tempo e voltar àquilo, foi duro. Porque estás a ver a tua vida toda outra vez e depois ter lá os sonhos e pensar “estou a expor-me desta forma”… e não é tanto dizer “o que as pessoas vão pensar?”, porque a mim interessa-me primeiramente o que é que penso de mim. 

Mas é duro ver que algumas coisas de facto… é duro, mas também é libertador. Eu sou a favor de me conhecer o melhor possível e acho que olhando para aquilo ali, também é isso. E acho que todos nós ficamos a pensar, ou às vezes podemos pensar, sobretudo na fase da morte e outras situações mais drásticas, põe-nos a pensar no que é que não foi dito e o que é que não foi feito.Eu tenho poucos arrependimentos, felizmente, até agora. E também na verdade, tento não deixar nada por dizer. Acho que isso é bom, mas foi também uma questão de fazer quase uma análise psicológica de mim própria. E ver depois, que de facto é um diário, e depois ao mesmo tempo, é quase como estivesses a falar contigo própria… eu sou daquelas pessoas que fala sozinha. (risos)

muitas vezes quando somos artistas e sobretudo quando operamos em diferentes áreas, como eu faço, muitas pessoas não compreendem os timings das nossas concretizações ou as nossas criações.

A: Então foi também um processo de autoconhecimento escrever este livro?

GC: Sim, também, mas sobretudo ver o que é que em mim… é conseguir identificar uns certos padrões em mim e o que é um padrão de coisas que são realmente importantes para mim e dos quais eu não posso abdicar por ninguém. Isso é que é a coisa que eu tiro dali, assim mais luminosa, para mim. E depois os outros espero que retirem algo também (risos).

A: O que é que tu esperas que as pessoas retirem dos teus textos?

GC: Eu espero que elas sintam algo e que ressoe alguma coisa nelas, espero que os ajude a pensar e sentir. Nas coisas que têm a ver com elas, que consigam fazer dos poemas e daqueles textos coisas suas ou que, sei lá, ao longo dos anos nós vamos partilhando coisas e vamos tendo reações a elas e conversas motivadas por elas. Essa primeira parte, que é assim mais ativista, onde eu digo os seus nomes, obviamente que eu quero chamar a atenção para aquelas situações de injustiça social, e não só. E também quero que aquelas pessoas não sejam esquecidas, que aquelas situações não sejam esquecidas. Não só porque continuam a acontecer outras pessoas com outros nomes, e outras circunstâncias, mas também porque temos muita facilidade em esquecer as coisas. A poesia sempre esteve nas ruas, sempre esteve em muitos lugares, como forma de protesto. Então, no fundo é isso também que eu quero fazer. Mas depois também haver um lugar para o sonho, um lugar para autoanálise, para a contemplação, para o amor, para outras coisas. O livro não é só coisas difíceis.

A: E porque é que escolheste o título Giz?

GC: Bom, porque me chamo Gisela (risos). Mas acho que isto é o mais básico, essa semelhança com o meu nome. Agora, é isso, é uma continuação. Este livro  vem em  continuação do outro, do anterior [o Erosão]. Portanto, se há uma erosão… naquele caso de mim própria e de coisas que me compõem. Mas também entender que o Giz é uma ferramenta de escrita, uma ferramenta de desenho que é usada em todo o mundo. É uma coisa absolutamente universal, é uma coisa fácil de obter. É uma coisa que tem muitas cores e é isso, é uma coisa que se apaga facilmente por um lado, mas também pode permanecer se assim quisermos, também tem a sua permanência. É uma coisa pequena, que vem de uma coisa enorme, que é a pedra. Então voltamos outra vez a todas essas imagens e depois do facto de ter entrado num sonho ou outro,de algumas coisas de que eu falo no livro… vem daí.

A: Para a capa do livro, tu escolheste a foto de duas raparigas a escalar uma parede. Há algum significado por detrás desta escolha?

GC: Bem, não são duas meninas quaisquer, são meninas que eu conheço há já vários anos. São filhas de um amigo casal, do Ricardo Falcão, que é meu amigo há mais de 20 anos, não sei muito bem… já perdi a conta. Nesta foto estão as duas filhas mais velhas, a Fátima e a Mariama, a fazer uma escalada e pronto, achei aquilo muito simbólico, achei muito bonito. Pensei nas nossas lutas e nos nossos sonhos. E o facto de poder tê-las ali é algo que é tão importante para mim. Pensar que um dia mais tarde, elas vão pensar “eu estive na capa de um livro”, que é algo que nós não estamos muito habituados a ver enquanto meninas, mulheres negras, e ter meninos e homens negros e outras pessoas não binárias. Nós não estamos habituados a ver-nos e a celebrar-nos. E não é só a questão da imagem, obviamente a imagem é importante para mim, a fotografia é importante para mim.  Mas poder escolher e poder ter essa escolha. Tal como na capa da segunda edição do Erosão, há um autorretrato meu. Isso é importante para mim. Mas não é só isso, é uma forma de celebrar essa amizade, essa ligação. Simboliza muitas coisas. Também simboliza o que é uma relação inter-racial, o que é que é viver nessas dualidades quando uma pessoa nasceu num país em África e outra, que a irmã nasceu num país, na Europa. Como é que são estas diferenças? Como é que são as mesmas pessoas da mesma família são vistas pela sociedade e até mesmo por pessoas da mesma família de formas diferentes por causa do tom da pele. E todos estes questionamentos sobre identidades, coisas que eu também falo no livro, a condição de ser mulher e a infância. Aquela foto já me inspirou também para muitas coisas. Já inspirou um trabalho de artes plásticas. Portanto, acho que é isso, trazer pessoas da nossa vida para ali e entender como é que nós podemos criar aquilo que nós não vimos enquanto estávamos a crescer. 

A: Sempre quiseste ser escritora?

GC: Sempre.

A:Quem é que te inspirava ou quem é que ainda te inspira?

GC: Nesse aspecto, foram os livros que me inspiraram. Obviamente aprender a ler cedo e oferecerem-me livros desde cedo e perceber isso: Sim, isto é o que eu quero fazer, contar histórias. Eu nunca sou aquela pessoa que quer a versão reduzida das coisas. Eu quero sempre saber tudo, quero saber os pormenores, tudo. E ainda hoje pergunto muito às pessoas como é que se conheceram, a todas elas. Pessoas que vou encontrando, isso interessa-me muito, acho muito engraçado, porque depois como uma pessoa conta e como outra conta, é sempre diferente e depois complementas aquela história. A minha inspiração vem desde a televisão a muitas outras coisas. Eu passava muito tempo na biblioteca, também vi muita televisão e essas duas coisas conjugadas… 

A: Tudo te inspirou! (risos)

GC: Tudo me inspira! Desde a Alice Walker à Sailor Moon, as minhas referências são assim.

A: Sailor Moon?! (risos)

GC: (risos) É assim, eu nasci nos anos 1980, gosto muito de televisão, sempre gostei e sempre quis fazer coisas em televisão. Sempre gostei de uma série de artes e por isso é que fui fazendo, e é por isso que faço o máximo de coisas que eu posso agora, que não consegui fazer mais cedo. Mas não tenho pudor nenhum, acho que que a intelectualidade passa por muitas coisas, muitos espectros. E no outro dia estava… um dos álbuns que eu mais ouvi este ano foi o álbum da SZA e estava a ler sobre como a capa foi dela, que é ela sentada numa prancha e é uma capa icónica muito simples, mas foi inspirada por uma fotografia da princesa Diana e achei aquilo muito engraçado. Quer dizer, são duas mulheres que moldam a nossa cultura, em que uma está connosco, a outra já não está, e claro impactos diferentes, mas é muito engraçado como é que as nossas referências podem ser tudo.

Isto para dizer que podemos chegar ao mesmo lugar, tendo feito caminhos completamente diferente e tendo encontrado pessoas diferentes. Basta algo que alguém nos mostrou, que alguém nos disse ou um livro que nos deu ou uma música que ouvimos. Tudo isso nos pode inspirar, portanto, não, não tenho nenhum… Não sou pretensioso nesse aspecto. 

Foto: Gustavo Felman

A: Então fala nos também do teu livro Estendais. Como é que tu  o defines?

GC: Estendais é um livro de crónicas, é um livro que eu pessoalmente acho que é um livro muito bonito. Gosto muito daquele livro e claro, gosto muito de todos os meus livros, mas tenho um amor muito especial por este livro e por um outro que há de sair aí este ano (risos)… Portanto por todos, por todos, mas acontece como aquelas pessoas que têm em filhos e não dá para escolher e cada um vai sendo o preferido de cada vez.

Mas os estendais… eu adoro escrever crónicas e adoro ler crónicas e ensaios. Sempre gostei muito e acho que é um género que deveria ser muito mais apreciado do que é, pelo menos em Portugal. É diferente, não é a mesma coisa com um artigo de opinião e também as pessoas que acham que escrevem crónicas e não, não escrevem (risos).

Mas não sei… é um livro muito especial porque é um livro que eu fui escrevendo por mim, porque queria. Já nem sei dizer qual é que eu escrevi primeiro, das que estão ali, sei dizer qual é a última, mas houve um momento em que comecei a escrever crónicas para um jornal em Macau, que é o Hoje Macau, que existe em forma online, digital e impressa, também a pensar que tinha pessoas do outro lado do mundo a receberem as minhas palavras na sua caixa de correio, ou o que fosse, era muito especial. E depois fui lá a um festival de poesia em 2019 e depois o Erosão foi traduzido na íntegra por mandarim, com o apoio do Instituto Camões e com o interesse e o apoio de uma editora de lá. Então eu já tinha tido também uma crónica quando estive na Turquia no meu primeiro festival literário. Eles fizeram uma antologia de poemas dos autores que estavam no festival e depois as pessoas da organização que me convidaram para ter um texto, também uma crónica, publicada em turco num outro livro. 

Então assim, é um livro que me acompanha há muito tempo e este título tem muito significado para mim, porque é uma coisa de todos os dias, muito comum e que não, que talvez não se pense, que as pessoas não pensem muito, mas que visualmente, para mim sempre foi uma coisa muito apelativa. As fachadas das casas, ver a roupa estendida e pensar, mas isso começou com observações na minha própria casa, quando eu ainda vivia na casa dos meus pais. Mas se pensar como é que algo tão íntimo está exposto a toda a gente, e porque é que uns põem de uma maneira e uns põem de outra, e quem é que tem crianças, quem não tem, quem está de luto. Há muitas coisas… ou quem é que faz exercício, quem é que estava e já não está… e era assim uma forma de estar em casa com as pessoas ,sem estar. E este livro tem muitas pessoas dentro, pessoas com quem eu já vivi, pessoas com quem eu trabalhei, estranhos, pessoas que eu conheço muito bem, há pessoas que parecem mais do que numa crónica e acho isso muito interessante. 

Depois também há pessoas que infelizmente já faleceram, também há duas crónicas que também me ajudaram na base do que inspiraram Casas com Árvores Dentro, a peça de teatro. Tem tem muita importância para mim, porque é quase como poder estar à vontade porque a poesia tem esse lado também… Na minha vida, por questões profissionais passei muito tempo com pessoas presencialmente e acho que este livro faz-me lembrar isso, voltar a isso. Faz-me sentir essa proximidade com as pessoas e do que é que veio daí. 

A: E a foto da capa da lavandaria relaciona se, de certa forma, com o conteúdo do livro?

GC: Totalmente. Essa foto é minha, fui eu que a tirei, é da minha autoria e foi tirada no serviço da esquina da rua onde eu moro agora. E quando fui à loja… eu fotografo muita coisa, e anoto tudo. Passava por lá todos os dias, mas houve um dia que precisava de ir lá deixar coisas a arranjar e depois quando a senhora foi lá dentro e voltou, tirei algumas fotos no meio. Na altura tirei porque achei bonito. Não pensei que iria ser capa, mas quando comecei a pensar, quando eu falei com o meu editor, Zeferino Coelho, da Caminho, sobre isso, sobre a capa, perguntei se poderia eu prôpor uma capa e ele disse que sim. Depois fui ver o meu grande acervo (risos) de estendais. Também falei com um amigo meu, também estive a ver fotos de um amigo meu, o Enric Vives-Rubio, mas depois veio me esta. Eu pensei “porque não esta?”, não é um estendal puro e duro, mas tem coisas estendidas e tem lá um bocado de caos, um bocado como a minha cabeça, como estão às vezes as nossas casas.

Depois também é outro lugar em que se cruzam muitas coisas, muitas roupas, muitas vidas de pessoas que não se conhecem ou que se conhecem, não é, e aquela senhora que está ali a arranjar tudo — uma senhora imigrante chinesa —, que está ali a cuidar de nós, de certa forma, e que um elemento da loja dela é o elemento comum, onde estas vidas todas se cruzam. Então achei que era um bom conceito e achei que tinha ali elementos e pormenores muito deliciosos, que tem muito a ver com o que está escrito. Também tenho uma crónica chamada Lavar a Dignidade à Mão, que é uma dessas que tem pessoas que aparecem mais do que uma crónica no livro. E é interessante toda essa ligação, porque eu escrevo sobre o quotidiano, então acho que a capa não podia ser melhor e até agora toda a gente adora as capas de ambos os livros. (risos)

A: Falavas há pouco que também vai lançar outro livro. O que é que nós podemos esperar?

GC: Bom, eu vou lançar vários outros livros, provavelmente só vai ser no próximo semestre. Eu estou a fazer uma tradução para o Órfeu Negro. E tenho mais outros dois livros para a Sistema Solar que me convidaram a escrever, e um outro que é uma encomenda da Penguin [Random House]. Dois livros são mais aproximados em temáticas, tem mais a ver com questões de antirracismo, e o outro é uma coisa sem um género definido, mas que vai ser acessível, mais divertido. (risos)

A: Em Portugal nós vemos poucas mulheres negras no mundo literário e eu queria saber o que é que tu pensas sobre

Foto: Gustavo Felman

 isto? Qual é a tua opinião?

GC: Penso que é uma pena que ainda sejamos tão poucas. Acho que temos pessoas muito boas a escrever em Portugal e que felizmente estão a ser traduzidas, como a Djaimilia Pereira de Almeida, a Yara Monteiro também já foi traduzida para algumas línguas nos últimos tempos, ambas já ganharam prémios. Eu acho que é importante continuar, porque temos outras pessoas com a Carla Fernandes ou a Ariana Furtado que também fazem traduções, ou como a Carla, que também escreverem livros em nome próprio. E é bom que depois, também, vamos todas estando nesses lugares de tradução, do livro infanto-juvenil… a Paula Cardoso também é autora de dois livros de Infância e Juventude, a Djaimilia é o romance e também algum ensaio, a Yara tem  poesia e romance. A Djaimilia também escreve para teatro, a Yara também já fez algumas colaborações com a Marta de Miranda, tal como eu, que também escrevi textos de curadoria, curatoriais, e para livros e exposições. Portanto, acho que é importante que haja mais. E claro, nós temos mulheres que também produzem conhecimento, que também produzem livros e que são pensadores. E depois temos outras pessoas, como a Raquel Lima, académica que é poeta. E a Cristina Roldão que também tem livros, mas que normalmente são coisas mais académicas e com outras pessoas, temos a Luísa Semedo… Nós temos várias pessoas!

A: Nós estamos aí! (risos)

GC: Nós estamos aí, mas em termos de proporcionalidade, claro que parece que ainda é pouco. Mas o pouco que nós temos é bastante forte e bastante consistente na sua qualidade. Agora, acho que é isso, é continuar a abrir mais caminhos, a escrever em mais lugares. Depois há outras plataformas, como o Buala, que é onde também fomos lendo ao longo dos anos muitos textos escritos por muitas pessoas negras,  homens, mulheres e não só. Portanto, acho que mesmo que não seja através de um livro… Claro que um livro é outra coisa, é muito forte. Mas é importante também termos outras pessoas. A Zia Soares, no teatro Griot, que faz as adaptações, tudo isso… as Aurora Negra. Temos muita gente. 

Eu agora também vou ajudar o Marco Mendonça numa criação dele, que vai estrear este ano no Alkantara. Portanto, vou voltar ao teatro. É uma dramaturgia do Marco, eu vou estar a dar apoio a dramaturgia, o Bruno Huca vai estar no apoio à criação. Quando começamos a ver… eu lembro-me há tantos anos, do Mauro Armínio, de nos cruzarmos por aí, aqui em Lisboa, e ele estar a  escrever as suas criações, ou o Carlos Pereira, que escreve séries e tem tantas boas ideias para programas de televisão… não são assim tão poucas pessoas. Quando nós pensamos nisso, se quisermos, não são assim tão poucas pessoas. Nós sempre fizemos isso, sempre estivemos aí. Agora as pessoas se calhar é que não repararam, não queriam reparar, não eram as suas pessoas, não tínhamos acesso a essas plataformas. 

A: Nós tinhamos tanta visibilidade…

GC: Exatamente. São várias pessoas. (risos) Se eu continuasse agora aqui, podia, sei lá… Outras pessoas que publicaram coisas, escreveram coisas, criaram coisas, muitas pessoas! Estou a falar nestas, porque depois temos outras pessoas que já tinham um grande, grande impacto, como o Kalaf, por exemplo, que quando começou a escrever ele já era o Kalaf (risos). Mas Kalaf sempre foi Kalaf. Mas temos tanta gente aí com as suas criações… A Cláudia Semedo também escreve alguma das suas criações. Então eu acho que pensar nisso, não é… o que é que é de facto a escrita. A escrita não se esgota só num livro publicado, nós vamos fazendo mesmo, mesmo, mesmo, mesmo muitas coisas, portanto também têm de ser valorizados. 

E também há aqui uma coisa que eu tenho estado a tentar lutar que é perceber que nós produzimos conhecimento e acho que é importante nós falarmos, contarmos as nossas histórias — nós enquanto negritude —, mas também fazermos isto como vocês estão a fazer aqui [a Afrolis]. Nós escutarmos e projetarmos, ampliarmos a voz uns dos outros. Não “dar voz”… não consigo jamais lidar com isso. É amplificar a voz uns dos outros, uma das outras e conversarmos sobre o que é que nós fazemos, como é que fazemos, porque é que fazemos, em que condições é que fizemos, partilhar esse nosso conhecimento, essas nossas ferramentas de concretização. Acho que é super importante. E por isso é que é importante plataformas como a Afrolis, Afrolink, Bantumen e outras que possam surgir, porque somos nós. 

Mas também é importante que as outras pessoas que se dizem aliadas e que têm plataformas, não é só nós estarmos lá a escrever também, mas é… voltando ao início da conversa, um pouco à questão da crítica, de ir ver espetáculos feitos por pessoas negras e escrever uma crítica sobre isso. “Eu fui ver o espetáculo e eu pensei isto e isto, e havia estas referências” e criar — nós criamos o nosso conteúdo, obviamente intelectual, o nosso conhecimento, estamos a produzi-lo — mas também outras pessoas que não são pessoas racializadas e que consomem cultura e fazem cultura e têm acesso a todos os privilégios e mais alguns. Se vão lá, não é só “Ah, eu estou aqui com esta pessoa negra e vejam como eu sou woke“. É: foste lá? Então fala também. Porque há pessoas que se tu não falares — tu, pessoa branca —, sobre isso, ninguém vai querer saber o que é que eles [pessoas racializadas] fizeram. Há pessoas brancas que só ouvem pessoas brancas. Ainda há muito trabalho por fazer. 

Traduzir
Scroll to Top