Defendendo a alegria com Ellen Lima

Ellen Lima é professora, artista, poeta e mestra em Artes. Nasceu no Rio de Janeiro e é indígena de origem Wassu Cocal (Maceió-AL). Atualmente, frequenta o doutoramento em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Braga, onde mora. É o que se pode ler na sua apresentação da editora Urutau pela qual publicou o seu primeiro livro, Ixé Ygará voltando para `y´kûá, e que também publicará a sua segunda obra Ybykuatiara – um livro de terra. Entrevistamos Ellen Lima e após ouvir a sua biografia lida como introdução à entrevista, deu-nos um cheirinho da inspiração e sabedoria ancestrais que nos iria oferecer ao longo de toda a conversa.

Ellen Lima (EL): É engraçado ouvir a nossa biografia, mas também é engraçado falar um pouco de si, porque a gente nunca é alguma coisa. A gente está sempre alguma coisa. Então toda vez que eu leio uma biografia, não sei, do ano passado, eu penso “nossa agora já sou outra”. Mas, basicamente, eu venho das Artes Visuais, da História da Arte, fiz mestrado no campo das Artes Visuais e doutoramento agora no campo da Literatura e dos Estudos Culturais, enfim. Sou poeta, escritora, do que a gente pode dizer, uma linguagem mais múltipla de escrita, de representação visual, de performance. Também sou académica, escrevo, investigo, penso outras questões e estou conectada, pensando junto dos movimentos, sobretudo movimentos indígenas no Brasil, sempre atenta e participando sempre que possível.

Carla Fernandes (CF): Nós, aqui na Afrolis, falamos com mulheres negras e racializadas, e tu consideras-te uma mulher racializada e falas sobre isso, como acabaste de dizer. O que é que este teu posicionamento é que este posicionamento significa para ti enquanto investigadora, escritora e artista também?

EL: Sem dúvida, é uma posição. Sem dúvida, é um outro lugar de enunciação. Sem dúvida, eu estou falando para dois mundos minimamente. Um que é o meu mundo, onde eu pertenço, do meu grupo étnico, do meu povo, da nação a que pertenço dos povos indígenas; e também para um outro mundo que não é o meu, que é forjado nas noções do ocidente, da modernidade. Então saber que sou uma mulher racializada e entender isso a partir do meu trabalho, do meu corpo e da minha escrita, é fundamental para posicionar tudo o que eu faço na vida. Porque, de facto, todas as questões que me trouxeram, que me fazem pensar o trabalho estão diretamente ligadas à minha racialização; estão diretamente ligadas ao meu lugar no mundo, ao meu povo, e é mais por aí.

CF: E esse teu posicionamento traz algum tipo de fricção na aceitação do teu trabalho? Muitas vezes, na academia, por exemplo, pessoas racializadas são acusadas de terem uma abordagem subjetiva, de estarem a falar sempre sobre elas mesmas; de não terem a capacidade de serem objetivas por trabalharem temáticas relacionadas com o seu posicionamento na sociedade. Por isso, queria saber se já vives algum tipo de fricção nesse sentido? 

EL: Não. Eu acho que inclusive esse posicionamento das academias é um posicionamento que se defende de novas epistemologias. Porque se formos pensar, o conhecimento ocidental, o conhecimento branco é forjado a partir da escrita e da fala em primeira pessoa de corpos brancos. Então essas epistemologias são pensadas a partir deles e quando eu coloco o meu corpo – eu já passei por isso algumas vezes nas universidades – de falar na primeira pessoa: “ah, mas aí você está sendo muito pessoal”, “mas aí você está sendo apaixonada”. O que é que é epistemologia branca senão uma ciência que fala só de si e a partir do seu corpo? E no meu caso, eu não estou falando só de mim e do meu corpo, porque eu sou uma pessoa coletiva. Eu não sou sozinha. Eu sou o meu povo. Eu sou a minha nação. E eu estou junto com 305 nações do Brasil. Então, é muito diferente de eu me anunciar enquanto sujeito, como a ciência ocidental se anuncia branca, e pode fazer e pode falar e não há questionamento. E porque é que nós somos questionadas? O mesmo aconteceu com a teoria feminista, por exemplo, até ao entendimento de que a gente pode falar em primeira pessoa e que a gente deve falar em primeira pessoa. Afinal de contas, a ciência começa nos nossos corpos. Então despessoalizar as informações, e despessoalizar o racismo, despessoalizar colonialidade é também tirar a força desse pensamento desse pensamento da gente. Tirar a nossa força argumentativa. Porque o que nós temos de argumento é o nosso corpo, é o que aconteceu com ele no processo colonizatório. Na minha escrita académica não há ficção nenhuma, no sentido de pensar que eu estou falando do meu corpo e das violências que a minha família e o meu povo sofrem, as nações indígenas sofrem. Como também, na minha escrita, queria eu ser um pouco mais ficcional, mas infelizmente a poesia não me permite. Ela me permite, uma linguagem mais leve, mais fluida, mas infelizmente eu ainda não escrevo ficção.

CF: Mas com o teu primeiro livro que é um livro de poesia, podes dizer tu o título?

EL: Ixé Ygará voltando para `y´kûá. É uma mistura da língua portuguesa e do Tupi antigo que é a minha língua ancestral e foi silenciada pelo processo colonizatório.

CF: Já aí vamos. Eu só queria fazer a ponte com o que tu acabaste de dizer, que a tua história, o teu posicionamento não são singulares; falar também de outras mulheres e de outros homens. E sobre o teu livro, essa também é uma história que se desdobra a partir de uma história pessoal, de mulheres, mas também fala de homens e de outras pessoas indígenas. Podes falar um pouco mais sobre o teu livro?

EL: Ixé Ygará eu escrevi aqui em Portugal. Eu já tinha me mudado. Já estava começando o doutoramento. Eu sou nascida e criada no Rio de Janeiro. O meu povo é o Wassu Cocal, que se localiza na zona da mata de Alagoas, que é de onde o meu pai, a minha mãe e toda a minha família vieram, onde eu morei um tempo também na primeira infância. Só que, no Brasil a criminalização e eu acho que, sobretudo, o preconceito, o racismo contra povos indígenas é tão grande que a primeira coisa que acontece com você quando você cresce em contexto urbano, sabendo quem você é… Porque o meu pai é nascido e criado dentro do território, a minha família indígena sempre indo na minha casa… sempre sabendo de onde eu vinha, mas com muita vergonha de admitir aqui e de dizer publicamente o que eu era. Porque era muito mais fácil querer me parecer com a minha mãe, por exemplo, que é uma mulher branca que com o meu pai. Então, para mim, isso sempre foi um conflito muito grande, porque eu soube o que eu era, mas eu nunca tive coragem, porque o processo que se vê no Brasil, como se fala de povos indígenas no Brasil, é de um jeito muito violento. E eu olhava os livros de história, eu olhava as coisas e eu pensava: “Eu não quero ser isso. O meu pai não é isso. Eu não sou isso.” Eu não sou o que essa narrativa ficcional da história brasileira cria. Eu sou esse corpo que está aqui falando. Eu sou Ixé Ygará voltando para `y´kûá. Eu sou uma canoa voltando para a enseada do rio. Que é olhar para a minha terra, para o meu pertencimento, sentir muito orgulho do que eu sou, sentir muito orgulho da minha história de onde eu venho, da história dos meus pais. Então, Ixé Ygará é um livro que… eu vou dizer que celebra, porque hoje eu celebro, mas ele foi um livro que me doeu muito. Foi um livro que de facto me fez trazer questões muito importantes sobre o meu pertencimento, sobre quem eu sou, sobre a minha língua silenciada, sobre o entender fisicamente o que é que o processo colonizatório fez comigo, com o meu corpo, com a minha família, com o meu povo. Esse livro, ele trata disso, desse caminho entre esses dois lugares, na época, esse pertencimento e esse lugar que eu não tinha tanto orgulho de pertencer. E hoje eu olho para ele com muito carinho. Foi um processo importante. Mas é isso, é mais uma retomada de uma identidade que foi apagada, que foi silenciada e que me foi apresentada uma vida inteira como uma coisa ruim. É tão lindo, tão bonito ser o que eu sou.  

CF: Tu praticamente já respondeste à pergunta que eu ia fazer que era qual o papel das Artes e da Literatura no resgate das identidades consideradas periféricas? Mas se quiseres fazer mais uma observação… 

EL: Eu acho que Literatura… eu também sou muito partidária de que Literatura é um direito e ela não tem que ser circunscrita a um grupo ou… de novo, como toda a história da epistemologia ocidental é sempre escrita a partir do ponto de vista branco, a Literatura universal… O que é universal é muito questionado, porque foram os brancos que decidiram o que é universal e não nós. Então, para mim, o que nós escrevemos, o que os parentes escrevem de dentro da aldeia, o que os povos escrevem cada um no seu canto é universal. Eu acredito que toda a aldeia é universal. Eu acredito que todo o processo identitário é universal, porque todos nós precisamos, em algum momento da vida, entender quem a gente é e honrar de onde a gente veio. E a Literatura, sem dúvida, é o caminho mais bonito, eu diria, não menos doloroso, mas é o caminho bonito desse entendimento.

CF: Passando agora para a experiência de uma mulher indígena no Brasil e em Portugal, que é, certamente, diferente, mas a ligação que o colonialismo forçou aos dois territórios pode trazer um sentimento de familiaridade nas vivências. Qual a tua opinião sobre esta observação?

 EL: Sim, sem dúvida. É muita familiaridade, sobretudo nas estruturas de pensamento. Porque aqui ainda se pensa muito sob a lógica lusotropicalista; da boa colonização e um completo desconhecimento acerca de povos indígenas do Brasil. Eu me lembro do meu primeiro ano do país, dos primeiros períodos da universidade, me lembro de professores, de pessoas dizendo assim “Mas eles não estão extintos?” Mas os índios não estão extintos?” Quer dizer a continuidade branca, ela não é questionada. Ela nunca é questionada. Porque a estrutura colonial é essa; ela nos escamoteia, ela nos coloca nas periferias; ela não reconhece as nossas existências, mas, ao mesmo tempo, ela fica fazendo esse jogo de forças. Para não reconhecer a minha existência, eles precisam dizer que eu morri. Então tanto lá como aqui, essa noção de “Ah, mas não tão indígena assim. É descendente. Não é tão…” Porque a ideia do que é indígena é de zero letramento étnico racial tanto no Brasil como aqui. Acho que no Brasil ainda caminha um pouco mais nessa direção, porque existe um movimento muito forte, enfim. Mas eu sinto que falta muito letramento, muito entendimento. E isso é obviamente puxado pela narrativa historiográfica aqui, pelo que a gente vê nos livros, e… enfim, é bem complicado. Tem muita familiaridade no processo até porque a nossa matriz é essa. A matriz colonial é essa. A que está lá é servida aqui com a agravante da xenofobia, que já é uma outra questão. Mas está tudo dentro dessas questões que são de desconhecimento, não letramento, de racismo de uma forma geral.

CF: Tu aqui, em Portugal, és lida como indígena? Pergunto por causa desta falta de conhecimento mesmo. “Nós” à partida não consideramos a possibilidade da tua existência enquanto indígena ou descendente de indígena, como dizias “eles têm de me matar para que a realidade que inventaram faça sentido. Nessa lógica, aqui em Portugal coloca-se a hipótese de seres indígena?

EL: De novo a questão da continuidade. Eu imagino que aqui em Portugal hoje eu tenho espaço um pouco mais… um pouquinho mais. Mas eu sinto que o questionamento aqui é uma coisa muito delicada. Questionar as estruturas, os círculos de poder, as hegemonias epistémicas inclusive, não é muito fácil. Então, se sentir questionado por um corpo indígena fora de todos aqueles padrões que são pregados nos livros de história – de que o indígena está apenas na mata, dentro da aldeia, sem acesso à internet, sem coisa nenhuma – quando eles veem uma pessoa aqui fazendo doutoramento, “Peraí!”. Ainda mais pensando simbolicamente, o meu povo é um povo do Nordeste. Na historiografia do Brasil que os povos do Nordeste, a gente tem 523 anos de contacto, de história resistindo à colonização. A gente fala muito em Amazónia e tem que falar mesmo. Temos a que proteger. Mas no Brasil não existe só o bioma amazónico. Tem cerrado, tem catinga, tem… e as pessoas sequer sabem o bioma que eu venho. As pessoas sequer imaginam que no Nordeste existe resistência também. E existem mais de 500 anos de resistência e nós nos afirmámos há muitos e muitos anos porque existe essa resistência. Então para algumas pessoas é difícil ter um corpo questionando. Ter um corpo dizendo “Eu estou viva. E eu estou aqui!”. Então talvez seja um pouco por aí.

CF: O trânsito, a viagem sãoe ferramentas ricas para ampliar a nossa forma de ver e de viver o mundo. De que maneira é que estes deslocamentos informam o teu trabalho também?  

EL: Sempre. Informam o tempo inteiro. O deslocamento. Eu sou fruto de uma diáspora. O meu povo é um povo da zona da mata. O meu tio é uma liderança importante dentro do movimento, por conta das questões territoriais que a gente está vivendo hoje no Brasil, que a gente está discutindo. Por conta dessa briga pelo território, o meu tio é assassinado e a história da minha família muda completamente. A história do meu pai… Então, assim, o deslocamento já é um deslocamento inicial da minha história; de crescer no Rio de janeiro fora desse estado, de fora da aldeia; e aí eu me desloco para a Europa, que é olhar o continente de frente – eu me desloco nesse que é corpo ancestral – eu me desloco sabendo quem eu sou, sabendo quem é o meu corpo. É óbvio que isso tudo mexe com o meu espírito, mexe com o meu corpo, mexe com  a minha produção de forma gigantesca. Porque é justamente nesses deslocamentos, onde o meu corpo está e como o meu corpo responde a onde ele está. Eu sei o que eu sou; sou um corpo terra; sou um corpo de terra; sou um corpo da terra. Mas onde esse corpo está, vai respondendo de acordo com os estímulos.

Quando eu estou em Portugal, o meu corpo tem outra dimensão. O meu espírito tem outra resposta. E isso se reflete obviamente na minha produção literária, na minha produção artística, porque quanto mais distante eu estou da terra, mais eu penso com raiva a colonialidade e tudo isso. E quanto mais eu estou na terra, mais eu olho para ela com amor. Então esse segundo livro que vem aí agora é muito isso. Então, a primeira parte do livro sou eu falando com a terra, com amor, com esse pertencimento; e a segunda parte sou eu falando aqui com Portugal, com esse solo, com essa História. O deslocamento é fundamental para qualquer coisa na poética é a base diria.

CF: Tu tens agora um segundo livro que nasce do primeiro?

EL: Não sei se nasce do primeiro. É uma segunda publicação e é uma linguagem outra. É um outro deslocamento, continuo a fazer em Tupi antigo, que é a língua ancestral. Eu misturo, eu trago algumas dessas palavras para cá, porque eu acho que é importante pensar nelas e pensar sobre elas. Mas este segundo livro

CF: Podes dizer tu o título do livro? 

EL: Ybykuatiara – um livro de terra. E pronto ele fica nesse limiar desses dois… justamente, desses deslocamentos que você falou e eu achei muito interessante, porque é bem assim é esse deslocamento terra. Quando eu estou lá onde o meu corpo e o meu espírito ancestral se sentem felizes; quando eu estou aqui e o que é que o meu corpo responde nesse lugar. Eu estou nesse trânsito, que é esse segundo livro que deve sair agora nesse segundo semestre pela editora Urutau também. 

CF: Aguardamos com entusiasmo. Também participaste na antologia Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal. Uma publicação de 2021. Como foi essa experiência?

EL: Foi enorme. Foi grandioso. Foi belíssimo. Primeiro por conta dessa junção de vozes, da quantidade de pessoas, vozes que estavam ali publicando junto com a gente. As pessoas que eu conheci a partir dessa antologia, a própria Gisela Casimiro, o Luca Argel… uma série de pessoas que pensam a imigração e a gente percebe que não está sozinho enquanto voz. Então, é difícil fazer a leitura desse livro, porque você percebe o que sente cada, mas, ao mesmo tempo foi um processo muito importante mesmo para a gente ver que não está sozinho; e que esse título “volta para a tua terra”, ele é um pesadelo de quase todo o migrante, não é?! E sobretudo pessoas racializadas, diria. Ou minorias, que não são minorias, corpos não hegemónicos, pessoas trans, enfim.

CF: Quais são os teus planos futuros na literatura – já sabemos que vem aí um novo livro – mas também na academia e nas artes? 

EL: Eu tenho um parente, acho que se chama Daniel Munduruku, que ele diz uma frase que eu gosto muito “Só o presente nos compromete”. Para nós, para muitos de nós na minha língua ancestral, por exemplo, o verbo não é uma coisa que se conjuga, nem no passado nem no futuro, porque para nós o único tempo que existe é o futuro. Então, enquanto eu puder, no presente, semear tudo o que eu quero semear de luta, de amor, de alegria – isso também é importante, “organizar a raiva e defender a alegria”. Então o que eu pretendo é organizar a raiva e defender a minha alegria – muito importante.  O que eu pretendo é continuar a organizando a minha raiva de um jeito que eu possa defender a minha alegria sempre, para que o meu espírito fique feliz para continuar empreendendo essa luta, e fazer isso através da arte – às vezes é a poesia, às vezes são as artes visuais, às vezes é a performance. Mas, mais do que fazer planos, eu vou sentindo o que é que o tempo me pede.  Estou num momento em que estou pintando muito. Estou num momento em que estou escrevendo muito. O momento, para mim, é o presente. E é ele que está aqui agora. Então o futuro, provavelmente, ser os frutos do que está acontecendo agora.

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