Nas notícias e nos almoços de sábado em Angola fala-se em “fuga de cérebros” e em “debandada geral”. Em cima da mesa, uma complicada mistura de sentimentos regada a óleo de palma e Cuca. Uns sentem-se abandonados pelos amigos, colegas de trabalho e familiares que partiram. Outros perdem noites tentando traçar um plano de fuga semelhante, que permita dar melhores condições à família. Outros ainda, encolhem os ombros e seguem com o dia, entre a indiferença, a apatia ou a simples necessidade de continuar.
A diáspora angolana não é nem deve ser vista como um bloco único e uniforme. Ela tem motivações múltiplas e vive em condições diversas. Acima de tudo, a noção de “escolha” que a atravessa é condicionada pelos privilégios a que cada indivíduo tem acesso, primeiro em Angola, depois no estrangeiro. A diáspora angolana reflete a disparidade e a complexidade da sociedade que a produz, a história e a atual conjuntura do país. Posto isto, é importante refletir sobre este movimento migratório que se acentuou de forma dramática nos últimos dois anos. Qual o seu impacto nos que ficam, nos que vão e nas sociedades que os recebem?
Desde a reeleição de João Lourenço que, em Luanda, as filas para os pedidos de visto, de refúgio e de asilo em certas embaixadas foram crescendo dolorosamente. Em Portugal, angolanos e angolanas representam pela primeira vez a maior comunidade imigrante proveniente dos PALOP, superando Cabo Verde. No Brasil, só o estado de São Paulo recebeu mais de 3 mil pedidos de refúgio de pessoas provenientes de Angola no ano de 2022, algumas a viver em situação de rua. O desemprego, a pobreza, a inflação, a insegurança, a busca por tratamento médico, a falta de confiança nas instituições do Estado e no Governo mas sobretudo o avassalador esvaziar de perspectivas em relação ao futuro do país depois das últimas eleições, precipitaram o êxodo.
É evidente que os números referentes a essa saída em massa são muito graves e preocupantes. Se Angola fosse um país normal, as autoridades estariam a assumir a sua quota parte de responsabilidade política pela triste desistência de tantos compatriotas. Certo é que este cenário aumenta a inquietação nos que ficam. Em alguns casos, surge uma espécie de ressentimento em relação aos que partiram. Faz sentido pensar que para que o país mude é preciso haver um mutirão de braços para empurrar. Se formos menos, esse objetivo fica cada vez mais distante. Soma-se a isso a fratura causada por ondas migracionais deste tipo, com familiares separados por milhares de quilómetros de distância.
Contudo, acredito que não se pode relativizar o direito que toda a gente tem de circular e recomeçar a vida noutras latitudes. Por outro lado, devemos evitar romantizar a emigração, pois nunca é uma decisão fácil. Na maior parte dos casos, emigrar implica abdicar de uma comunidade e de um sentimento de pertença que são fundamentais para qualquer pessoa. Integrar-se numa cultura diferente, enfrentar tensões raciais e xenófobas, aprender uma língua nova, novos códigos, nova meteorologia, novas geografias ou simplesmente, no plano psicológico, lidar com as saudades de casa, são provações vividas tantas vezes em solidão, outras vezes coletivamente na plateia de um show do Paulo Flores em Lisboa. O lugar da diáspora sempre foi um lugar de conflitos identitários muito profundos, um lugar que se torna às vezes num “não-lugar”.
Hoje, numa Europa cada vez mais fechada sobre si própria, as agitações sociais anti-imigração aumentam a grande velocidade, nublando os já rasos caminhos nesta margem do mundo. A polarização social e a radicalização à direita é um tsunami de dimensões planetárias. Angola não está imune, não somos um caso especial. É previsível que certos sectores ligados à chamada “situação” adotem como estratégia propagandística um resgate dos sempre tão eficazes ideais nacionalistas exacerbados, como forma de compensação moral e emocional para os que ali resistem, cujo esforço precisa ser reconhecido. Contudo, espero que consigamos evitar cair em mais uma rasteira do regime, que busca desviar a atenção do que é realmente importante alimentando a já antiga animosidade com a diáspora, como se viver fora retirasse direitos (ao voto, à nacionalidade, à liberdade de opinião, etc.). Desde a Independência que a diáspora angolana insiste em manifestar a sua voz, dissidente ou conivente, tendo desfrutado muitas vezes de mais liberdade de expressão do que os que estavam dentro de Angola. Em certos momentos isso revelou-se decisivo. Só que quanto mais dissidente, mais se tende a classificar de anti-patriota, numa chantagem emocional que funciona. Ora, talvez não haja nada de mais patriótico, ou internacionalista, do que resistir às investidas organizadas que promovem o silenciamento, dentro e fora de Angola.
O nacionalismo exacerbado, em especial aquele que recupera os slogans fascistas de “deus, pátria e família”, é um rotundo retrocesso. Em Angola, é uma cortina de fumaça para permitir a perpetuação do desgoverno, da desresponsabilização política, do autoritarismo, do status quo das elites dominantes e da gravíssima desproteção social da população, em especial daquela enorme facção para quem emigrar não é sequer uma opção. Na Europa, trata-se de um passe livre para o racismo sem máscaras e para um cenário de violência política e social que poderá abalar drasticamente a auto-imagem dos europeus.
Devemos nos perguntar sobre o sentido desses muros, o que é que eles querem esconder, que humanidade eles pretendem subtrair em nós. Quem é que os ergue, consciente ou inconscientemente, e a quem é que eles servem afinal?