Estávamos todos em pé a aplaudir uma atuação maravilhosa da parte de toda a equipa, quando um dos atores reparou em mim, com um lenço nos olhos a tentar esconder as lágrimas e não soluçar. Saí discretamente para a casa de banho onde chorei baixinho até que passou angústia, puxei o autoclismo para disfarçar e saí do teatro com a alma lavada.
Eu tenho destas coisas, choro no cinema, no teatro, a ouvir música a ouvir uma criança a gargalhar, um idoso a passar sem esperança… ando assim, com a emoção nos olhos. Quem me conhece não adivinharia esta minha faceta, quando eu pareço sempre tão racional. Tenho os chakras abertos ou sou empática, mas o que isso significa é que eu ou meu coração transborda com a beleza das pequenas maravilhas do mundo, o que me energiza e inspira no dia a dia. O outro lado é a dor que vem de viver de olhos abertos para o que a maioria quer esconder.
A peça chamava-se “Beneatha’s Place” e começou no período pós-colonial com a luta de poder entre os novos governantes, as grandes e pequenas batalhas, grandes e pequenas escolhas, grandes e pequenas interferências no decorrer da história de uma jovem nação. Chorei quando o jovem militante que não aceitou vender a sua nação, foi morto pela CIA. Não só por aquele jovem naquela peça, naquele país, mas pela leveza com que estes assassinatos foram cometidos. Chorei por um passado presente que nos foi roubado por inúmeras jogadas de xadrez onde nós africanos nem fomos considerados como peões, mas como a mesa onde se joga. A narrativa da peça passou para os Estados Unidos, a luta pelos direitos civis da população negra na Terra o Tio Sam e acabou com uma discussão sobre o futuro do curso de Estudos Africanos. Aqui sorri ao recordar aquele momento em que contemplei um mestrado em Estudos Africanos, uma colega sem melanina riu na minha cara, “o que é que vais aprender em estudos africanos?”. Eu assisti algumas aulas e esta pergunta continuou na minha mente prática. O que posso fazer com esse conhecimento? Qual a sua utilidade prática?
“Aqueles que controlam o presente controlam o passado e aqueles que controlam o passado controlam o futuro.” George Orwell, 1984
Eu sorri ao reconhecer na peça este movimento que nos quer manter a dormir, este movimento que reinventa a história, reescreve acontecimentos e reinterpreta significados. Tudo para não acordar e desestabilizar a ordem mundial! A viúva do jovem militante é agora presidente da cadeira de Estudos Africanos, mas tem resistência interna, onde um dos seus docentes quer simplesmente renomear o departamento para estudos “whitness”. O jovem docente argumenta que nós, os negros, não estamos interessados em relembrar o trauma, um facto evidenciado pela composição racial de alunos e professores brancos desses cursos.
Nos Estados Unidos da América, este movimento de renúncia da História está a ganhar momentum porque causa “distress” porque envergonha, porque enraivece, porque justifica e porque, principalmente, prevê o futuro. Se ao manipular o passado podemos envergonhar as vítimas e fazer crer que a escravatura foi benéfica para os povos escravizados, o presente significa que não é preciso reparações, não é preciso ações afirmativas, e o mais importante: não é preciso questionar a ordem natural do mundo.
“Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo” George Santayana
Estou a escrever numa altura em que estamos à beira de uma nova ordem mundial.
Mais uma crise financeira, mais inflação, mais globalização, mais migração, mais pessoas deslocadas do seu lar por conflito armado e desastres ambientais. Mais pobres do que ricos, mas ricos mais ricos que nunca. A Primeira Ministra italiana, que coloca Macron no lugar de questionar a sua legitimidade para questionar as políticas de imigração italiana quando são as ações de França nos países sob a sua influência que criam a pobreza e o desespero na base da crise de migração. Presidentes de países africanos estão a derrubar as barreiras para a cooperação entre as nações africanas, desde entradas sem vistos, facilidade em estabelecer negócio ou simplesmente mudar-se para outro país africano… E o mais interessante são os discursos que falam de laços coloniais que sugam os recursos africanos para alimentar economias do antigo colono, de relações abusivas que mantêm países africanos à mercê de dívidas que se forem revistas à luz de fatos históricos, são moral, ética e socialmente ilegais.
Eu não fiz o mestrado em Estudos Africanos, só me lembro de uma professora de Literatura Africana e de sentir que o currículo era limitado. Agostinho Neto, Luandino Vieira, escritores que escreveram em português, no espaço e tempo da África portuguesa. Continuei a ler literatura lusófona porque estava interessada, e não pude deixar de pausar e sorrir sempre que encontrei escritores que chamam a Rainha Nzinga por tu e reservam uma vénia literária ao governador português, num movimento sutil que perpetua a história do caçador. São essas as leituras que nos mantém longe dos cursos, dos livros e das conferências, que nos fazem sentir parte dum jogo viciado, no qual o nosso papel é sempre o mesmo, o de espetador de mesa sobre a qual os jogadores colocam as peças de xadrez.
Eu estou feliz com este movimento, com o despertar de interesse no passado africano, no relembrar dos nossos heróis, das nossas batalhas e resistência, deste orgulho baseado no que fomos no passado e o que podemos voltar a ser. Mas se não aprendermos a nossa história podemos colocar-nos noutra posição, mas continuar a ser a mesa…
E Níger, um golpe de estado, bandeiras francesas a serem queimadas e bandeiras russas a serem içadas. Será que África é o peão que levará a Rússia declarar checkmate ao mundo ocidental? Estaremos a revisitar uma guerra entre a Rússia e os Estados Unidos em solo africano? Sem acesso ao mercado económico por lobby dos americanos, os russos decidem colocar o dólar em questão, e onde testar esta arma económica?
O que podemos aprender em estudos africanos?
Eu começaria por livros como The West de Naoise Mac Sweeney. Um livro de história que descreve a História não como uma simples disciplina mas como instrumento político e social, capaz de criar guerras, forjar paz e parcerias inconcebíveis para quem reconhece a utilidade e flexibilidade da história. A autora apresenta a rainha Nzinga em toda a sua complexidade, como uma mulher inteligente que soube usar a religião e permeabilidade de conceitos de pagã e cristã para benefício do seu povo e recusou-se a pagar tributo com pessoas escravizadas. E depois usaria os media para partilhar uma imagem positiva dos nossos antepassados, da nossa resistência e do nosso génio apesar de tudo e de todos.
A China e a Rússia reconhecem o papel estratégico de África e dos seus recursos, todos os países do mundo reconhecem o mesmo, cabe aos líderes africanos reconhecerem e cultivarem o papel estratégico da história para criar uma população engajada em melhorar a sua posição no mundo. Todos os recursos do mundo não valem nada se a nossa criança continua a morrer por falta de água potável, vacinas e profissionais de saúde. Se os nossos jovens não encontram fóruns para desenvolverem o seu potencial criativo, técnico e científico. Se os muito profissionais motivados e competentes migram por falta de oportunidade para contribuírem com os seus talentos e continuamos a alimentar despotismo e incompetência, deixando governos e postos estratégicos na mão de amigos e familiares incompetentes. E de que servem novos acordos e novas parcerias se a língua oficial de África passa de inglês, português e francês para chinês e russo? Se os nossos recursos simplesmente mudam de rota e continuam a sair em estado bruto para serem importados em depois da transformação fora do continente? Estamos dispostos a mudar mais do que moscas? Estaremos prontos para reclamar o nosso devido lugar nesta nova ordem mundial?
E isto tudo passou pela minha mente em menos de cinco minutos, entre as palmas por uma peça muito bem escrita e representada e a corrida para a casa-de-banho eu chorei por frustração e esperança. Na peça, a diretora do curso de Estudos Africanos, conseguiu vencer a resistência interna e manter o currículo. Talvez tenha de ser revisitado, não tanto para aplacar a culpa alheia, mas para inspirar novas versões de futuro.
Parece tudo tão simples quando descrito num texto, mas vejo a legislação americana a mudar para retirar os poucos progressos de direitos civis africanos, vejo os ingleses a construírem prisões-barco para albergar imigrantes, os franceses a sugarem África de seus recursos enquanto sufocam os seus filhos privando-os de oportunidade. Eu vejo africanos a negarem oportunidades à diáspora para acolherem o filho do colono como sócio. E tudo isso com base em retórica e uma versão da história, que justifica, explica, racionaliza as suas ações.
Daí a importância de conhecer a nossa história. Se nos debruçarmos no passado encontraremos casos incontáveis de jovens como o militante da peça, que se recusaram a vender a nação, jovens que não se traíram nem traíram outros, jovens e graúdos que trabalharam em comunidade, que criaram e transformaram o seu/nosso mundo. Não temos de inventar Wakanda, é sobre os ombros de gente da nossa terra que poderemos criar uma nação de jovens guerreiros com orgulho de serem africanos.