Linguagem e identidades negras

Os Estados Unidos tiveram ao longo da história diversas palavras para se referirem a pessoas negras. A maioria invariavelmente baseadas no racismo. I am not your negro, filme dirigido por Raoul Peck (2016), baseado no manuscrito inacabado de James Baldwin, Remember This House, mostra-nos que esse termo em particular, assim, como a “N-Word”, são termos que foram impressos sobre a população negra para servir propósitos brancos e que em nada beneficiam a definição das populações negras. Atualmente, fala-se de African-American ou Black [seria o equivalente a negro na variante do protuguês europeu]. No Brasil, o termo “negro” foi resignificado. Segundo o autor do livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo, Gabriel Nascimento, “Ele é um termo originalmente racista. Os africanos não eram negros, não são negros. Eles não tinham essa visão. Originalmente, raça é um conceito [cultural] do Ocidente. [No Brasil] diferentemente do inglês, houve uma ressignificação da palavra negro. (…) A tradição da língua vai dizer muito sobre o sentido que a gente vai dar à palavra. Negro pode ser ofensivo, mas é uma palavra que foi reconstruída.”

Esta declaração, feita à publicação DW Brasil, pode suscitar várias discussões e uma delas é se a resignificação deste termo surtiu realmente os efeitos desejados em todas as esferas em que é utilizado. Porque apesar de, para muitos negros norte-americanos também ter havido uma resignificação da “N-Word” [palavra prejorativa para se referir a pessoas negras em inglês], continuamos a ver variadas celibridades brancas a serem “canceladas” ou demitidas por fazerem uso dela. Como o próprio autor refere o termo negro ainda “pode” ser ofensivo, ou seja, a resignificação não é plena.

A sociolinguista Lauren Hall-Lew da Universidade de Edimburgo argumenta, na publicação NPR, que “se uma palavra que se refere a algo aparece sempre em frases onde esse algo é representado de forma negativa, então esse termo vai assumir negatividade.”

No entanto, apesar de o termo negro ter nascido racista, conseguiu resignificar-se e dar nome ao movimento que combate o racismo. O uso do termo nem sempre é consensual, mas tem sido largamente utilizado e também aqui em Portugal assumimos o termo recentemente de forma mais abrangente, e os muitos grupos anti-racistas negros assumem-se, igualmente, como pertencentes ao movimento negro.

A falta de consenso relativamente à adoção deste termo para a autoidentificação de pessoas descendentes de africanos é algo que se verifica em outros territórios em que existe uma diáspora africana. Mas a sua apropriação é vista como a superação de uma tentativa de reduzir a experiência de pessoas com origem no continente africano, ao uni-las à luz das lutas e conquistas que foram sendo feitas em África e na sua diáspora. Ainda hoje muitos africanos apenas se descobrem negros fora do continente. Antes de se confrontarem com culturas e sociedades racistas, o seu sentido de pertença é pautado pelas interações dos grupos sociais dos seus países e não pelas experiências de opressão e seu combate.

Por outro lado, a reapropriação do termo negro por parte dos movimentos negros em todo mundo coloca em prática o fenómeno de que a sociolinguista Lauren Hall-Lew fala, mas assumindo uma lógica que serve os povos negros, colocando a tónica na positividade “se uma palavra que se refere a algo aparece sempre onde esse algo é representado de forma positiva, então esse termo vai assumir positividade”. Daí ser natural o surgimento de movimentos como “Black is Beautiful”, “Black Girl Magic” ou o seu termo neutro “Black Excellence”, nascidos nos EUA, mas que encontram em vários partes do mundo.

Aqui em Portugal também temos o movimento Black Excellence, que agrega criadores e empreendedores negros de todo mundo. Existem igualmente iniciativas mais locais como o Chá de Beleza Afro, que coloca a tónica no belo associado ao afro, que se subentende ser negro. Desde 2017, Neusa Sousa, a impulsionadora deste projeto, junta anualmente mulheres negras de diversas áreas, como a política, as artes, a educação, o empreendedorismo para se celebrarem e partilharem experiências inspiradoras.

Mas resignificar não é tão simples quanto associar palavras ou expressões com carga negativa a contextos positivos. Gabriel Nascimento identifica três dimensões do racismo linguístico, que define como sendo “toda forma de racialização que ocorre através da língua, na língua e pela língua”. A primeira dimensão é a das metáforas racistas, como chamar alguém de macaco. A segunda são expressões como “ovelha negra” ou “vida negra” que estão conexas à negatividade e é raro lê-las de outra forma. E a última dimensão é o próprio ato de fala em que, por exemplo, hierarquizamos sotaques e/ou dialetos, em que uns são vistos como superiores, interessantes – um sotaque americano, por exemplo – ou inferiores, pouco inteligentes – um sotaque de pessoas vindas de diferentes países africanos.

O contexto em que expressões nascidas racistas são proferidas também importa. Se a palavra é dita por uma pessoa negra como acontece com a “N-Word” nos EUA, pode ser dita em espaços públicos dependendo também da audiência, mas pode ser dita. Se for dita por uma pessoa branca não pode ser dita, e se o for é racismo.

Os termos para nos referenciarmos aos grupos vão mudando à medida que esses grupos vão tendo acesso a mais espaços na sociedade. Desse modo, nas diferentes esferas são esses grupos que ditam a forma como as pessoas se devem referir a eles e não ficam à mercê das denominações que lhes são atribuídas. A mobilidade social também é um fator relevante para a alteração de como se referem a nós. Se temos cada vez mais escritores negros a publicarem livros sobre a experiência negra em Portugal, ou pessoas a ocupar posições na política, ou comentadores a escreverem em jornais, ou professores a darem aulas em universidades o discurso sobre nós, nesses espaços de produção de conhecimento e de definição de políticas, é inevitável que o discurso sobre nós se altere. É também espectável que as pessoas brancas, que ao usarem expressões racistas consciente ou inconscientemente, reflitam sobre as formas de  referenciarem pessoas negras. A linguagem é um elemento-chave para a manutenção do racismo e é por ser vista como apenas como um grupo de “palavras” que muitas vezes não se atenta ao papel fundamental que tem no combate ao racismo. É crucial que se criem mais oportunidades de se colocar a tónica na importância também da linguagem na busca de sociedades mais equitativas.

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