Nós Nos Livros: Quando os livros já não servem para ensinar

Por Sónia Vaz Borges

São oito horas da manhã, chove torrencialmente mas Kambo Safiya já está preparada para mais uma longa caminhada até à escola.

São dez minutos de casa até à paragem de camioneta, mais vinte minutos de percurso e mais dez minutos a pé da última paragem até ao portão da escola. Se tudo correr bem, ainda tem cerca de quinze minutos para brincar com as colegas antes da campainha tocar.

Antes costumava viver perto da escola que os seus pais tinham construído quando vieram para este país estrangeiro procurar um novo futuro para eles e para as suas duas filhas.

Hoje, uma nova casa concedida pelo Estado estrangeiro, acabou por trocar completamente os horários à família, e o percurso de casa-escola-trabalho tornou-se mais longo, e mais longe ficaram os antigos amigos e vizinhos.

Kambo Safiya, um nome que ainda causa alguma estranheza na sala de aula, está a estudar o nono ano de escolaridade e hoje, quarta-feira, vai ter as disciplinas de português, geografia e história.

Na mochila para além dos cadernos, lápis, canetas e borrachas, tem os livros escolares, comprados a muito custo pelos pais com a ajuda da madrinha e do padrinho.

Bem tratados, como se tivessem saído da livraria, os livros que carrega todos os dias para a escola pouco ou nada dizem sobre si, sobre os seus pais ou sobre o seu país.

O nome que os seus pais lhe deram à nascença, quase não é reconhecido na aula. A professora tem mesmo dificuldade em pronunciá-lo e engana-se sempre quando tem de escrever.

A matéria de hoje é sobre um poeta importante deste país estrangeiro, mas que também esteve no país de Kambo Safiya. Ele fala à sua maneira sobre os antepassados e sobre a terra de Safiya. Mas ela não se revê nessa escrita, nesses retratos e prefere lembrar-se dos seus avós e das suas histórias. Prefere lembrar-se desses livros ambulantes que conheceu em casa.

A campainha toca e depois do recreio vem a aula de geografia. Como já estamos próximos do final do ano, a matéria escolar é sobre os países subdesenvolvidos, entre os quais está incluído o país de Kambo Safiya. O trabalho é de grupo e o objetivo é recolher imagens sobre esses ditos países subdesenvolvidos na Internet. As imagens não são muito diferentes, famílias esfomeadas, guerras, corrupção, poluição e atraso, muito atraso em comparação com o país estrangeiro onde Kambo Safiya agora vive.

Os colegas dizem, que o último país para onde queriam ir viver seria o de Kambo Safiya. Talvez pudessem ir passar umas férias ou, na melhor das hipóteses, fazer algum trabalho voluntário para ajudar aquela pobre gente.

No intervalo de vinte minutos, Kambo Safiya conversa, dança e faz uns arranjos no cabelo negro carapinha. Durante o convívio, cantam algumas músicas da terra, mas são rapidamente interrompidas por uma funcionária dizendo que a escola não é lugar para esses comportamentos.

Segue-se a aula de história, e a professora prefere fazer um resumo dos Des-en-cobrimentos na no país de Kambo Safiya. Descoberta como se fosse uma batata enterrada, forçadamente transformada em matéria para dar algum lucro, colonizada, assimilada, terrorista rebelde e descolonizada, é tudo o que Kambo Safiya descobre sobre si. Kambo Safiya não entende por que é que ninguém fala da grande família real da qual descende, da produção do ouro, ferro, das especiarias, dos grandes construtores e das cidades de que os seus avós falavam nas histórias à noite em volta da fogueira.

A aula termina, e Kambo Safiya regressa a casa com alguns colegas. Pelo caminho trocam algumas ideias de uma notícia do jornal sobre a violência nas escolas – esse bullying. Alunos ofendem e batem nos professores, funcionários e colegas, trazem armas para escola, pesquisam na Internet como fabricar bombas e destroem o material escolar.

Mas Kambo Safiya, só pensa nos livros, caros, pesados, bem tratados, cheios de (des)conhecimentos, que carrega todos os dias para a escola e que pouco dizem sobre ela e que quando a ela se referem, só a humilham e ofendem. Lembra-se dos intervalos na escola onde sequer pode falar a sua língua que também não é reconhecida e que a professora proíbe de falar na sala de aula e até mesmo no recreio. Ela diz que é para seu bem e que mais tarde ela irá perceber. Não será esta também uma forma de violência contra si, contra a sua personalidade, contra a sua família? Não será também um desprezo a todos os ensinamentos que herdou dos seus antepassados? Não é este comportamento uma forma de violência, um bullying declarado e aberto, do qual ninguém fala e recusam (re)conhecer?

A violência dentro do espaço escolar assume várias caras. Kambo Safiya não nega a violência de que se fala nos jornais e televisão, mas não deixa de pensar na violência que lhe é atirada à cara todos os dias, nos livros que já deixaram de lhe ensinar alguma coisa, mas que é obrigada a carregar todos os dias para a escola, um espaço que sequer a reconhece como pessoa individual, herdeira de outra cultura, mas recusada pelo país estrangeiro.

 

Publicado originalmente em 2014

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