Nós nos livros – A Cor em Mim: a identidade em reconstrução

a_cor_em_mimCristina Carlos, A Cor em Mim: a identidade em reconstrução, Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2015.

Lido por Djaimilia Pereira de Almeida

Resultante de uma investigação apresentada ao ISPA, em 2005, no contexto da pós-graduação da autora em Reabilitação e Inserção Social, A Cor em Mim, de Cristina Carlos, é construído a partir de uma entrevista a uma única pessoa: José (nome fictício), “um jovem de vinte e quatro anos (…), que habita num dos bairros ‘problema’ da periferia de Lisboa» (p. 64), «escolheu ser cabo-verdiano» (p. 98), embora se declare um «sem terra», «nómada… à procura de um sítio para estar». (p. 138). Como esclarece a autora, esta opção metodológica decorre do objectivo de arriscar a «personalização possível de um grupo que tantas vezes é representado na terceira pessoa» (p. 11). O ponto de vista da autora revela, deste modo, a tentativa de o procedimento adoptado por quem faz as perguntas não incorrer no estigma que pretende questionar, em particular, o de se aproximar de pessoas como José através de categorias impessoais. A conversa de Cristina Carlos com o rapaz, como a reflexão que a mesma suscita, não confia na pergunta «Quem és tu?» como meio para ouvir José sobre si mesmo, antes depende da possibilidade dessa pergunta como condição do reconhecimento a outrem do «direito de ser sujeito». A pergunta «Quem és tu?» surge enquanto o avesso da pergunta «Quem sou eu?», a qual nos recorda que não nos interpelamos uns aos outros, nem nos auto-concebemos, «no vácuo» (p. 11). O estudo de Cristina Carlos tem a virtude de sublinhar a mútua dependência de ambas as questões, iluminando o que é, nas suas palavras, negado a rapazes como José. Parte importante do «direito de ser sujeito» dependerá de José não se ver repetidamente substituído na resposta a essa pergunta. A Cor em Mim aponta, assim, para uma concepção dialógica da identidade: por um lado, definimo-nos enquanto quem responde; por outro lado, é no contexto de uma conversa que nos transcende que questionamos quem somos e para onde vamos. O estudo de Cristina Carlos revela assim a forma como, ao depender da possibilidade de nos questionarmos sobre quem somos, o que dizemos é indissociável da teia de relações que nos liga, uma de cada vez, a outras pessoas, as mesmas que nos podem entender ou estigmatizar. A entrevista a José, transcrita na íntegra no final do estudo, tem por perto a condição de possibilidade do próprio estudo, no sentido em que respeita à relação entre duas pessoas: Cristina e José. «Sei lá dizia que sou um gajo calmo, porque não gosto de muita bagunça». (123), responderá o rapaz, laconicamente, à pergunta «O que dirias de ti?». Para Cristina Carlos, no entanto, é menos importante esta resposta, do que a possibilidade de José responder. «Quem é o José?», questiona a autora, na reflexão final, deixando a pergunta em suspenso entre outras perguntas. Pode ser que a possibilidade de se ser um sujeito diga respeito à de deixarmos esta questão em aberto, quando falamos sobre nós e sobre os outros.
Djaimilia

 

Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda em 1982. É autora do livro ‘Esse Cabelo’ (Teorema, 2015). Vive e trabalha em Lisboa.

Publicado originalmente em 2015

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