O Espírito Vs a Letra da Lei

Eu não tenho Youtube prime, por isso tenho a oportunidade de ouvir algo inesperado enquanto espero pela música que escolhi. Eu tenho ouvido repetidamente a publicidade de uma peça, Prima Facie, um monólogo em que uma advogada diz que o seu papel não é saber, mas não saber. Que o papel de cada advogado é o de contar uma história e rezar para que o júri acredite na sua história. Não sei se a peça foi escrita por um autor americano, mas sempre me intrigou a forma como a lei americana é apresentada na televisão. Como um documento morto, é reencarnado para servir a melhor estória, uma estória criada para reescrever a história das provas e alimentar um ideal de justiça reservado para as pessoas certas, com os advogados certos. 

Todos conhecemos um pouco do sistema judicial americano, um filme aqui, uma notícia ali, parece que só se fala na constituição americana e nas suas emendas e tudo o que isso representa para o resto do mundo. Pois eles estão de parabéns novamente! No mês em que celebra a história negra, uma tradição dos Estados Unidos e de alguns outros países anglofonos, um americano conseguiu argumentar em tribunal que é ilegal criar empresas que estão focadas em encontrar financiamento para empreendedoras negras e latinas. Ilegal com base numa lei aprovada no rescaldo da luta pelos direitos civis dos negros americanos. 

Não sei muito sobre a lei portuguesa, não há Lei & Ordem Lisboa, mas sei que é normalmente um juiz e não um grupo de jurados que decide se o réu é culpado ou não. Mas como na América, é o Ministério Público que decide se uma pessoa é constituída arguida. 

E o que significa ser arguida? “É ser um sujeito contra quem haja sido deduzida uma acusação ou sobre quem recaiam, suspeitas de ter praticado ou comparticipado na prática de um crime.” Num país em que a justiça é uma estória contada por policiais ao Ministério Público, para que um juiz aplique a lei, a história é sempre a do leão. 

Mas eu pergunto-me que estória pode o Ministério Público contar para constituir uma mulher indefesa como arguida?  O Ministério Público suspeita que, enquanto estava a ser espancada por vários agentes policiais, a vítima empurrou, pontapeou, esperneou ou mordeu os seus agressores?! A estória é essa? O que esperavam os polícias? Que a vítima desse a outra face? 

As provas mostram que a vítima foi esmurrada em ambas faces, pontapeada, e degradada por palavras e atos de cariz sexual. Por quem podia ela chamar? Pela Polícia? Deus ou a sua mãe?  Este é o crime público que o Ministério Público decidiu perseguir? Ou temos um polícia ofendido? Com hematomas, os ossos partidos e registos médicos?! Um polícia pago para nos defender e que resolve espancar uma mulher por alegadamente não ter bilhete de autocarro. Peço desculpa, a filha dela, uma menor que teria um passe gratuito, mas que não estava fisicamente consigo. Que estória é essa? E que público é esse que o ministério está a representar?  

Os ingleses e americanos têm um mês no qual festejam a história Negra, Black History Month, um mês em que escolas e organizações celebram pessoas negras, a cultura Negra a comida Negra.  E, a cada ano, o mês tem um tema, em 2023 estamos a celebrar as manas, as mamãs, as tias, as mulheres negras, que podem todas ser denominadas por sisters. E é importante focarmo-nos neste termo de irmãs, um termo carinhoso que nos dá um sentimento de relação, de proximidade e familiaridade. Uma palavra que nos une ao focar-se no que temos em comum e num sentido de família. 

Pois este termo está lentamente a ser substituído por bitch! Cadela, cabra, vaca…? Mais uma palavra a representar um inferno/paraíso para tradução, assim como a palavra nigger, bitch é suposto ter vários significados dependendo do tom e da circunstância em que está a ser utilizada. Não entendo como podemos argumentar que faz sentido usar uma palavra ofensiva para representar o nosso empoderamento.  

A Jill Scott, cantora negra norte americana, concorda comigo, e num monólogo no início de um dos seus concertos, alerta para essa moda de nós mulheres, mas especialmente mulheres negras, nos chamarmos Bitch! Boss bitch,  bad bitch, bitch bitch. E essa moda está a alastrar-se de tal forma que já temos debates em que homens se questionam quando é que lhes é permitido chamar a uma, ou a sua mulher de bitch. “Se elas usam… nós também podemos usar!”, como todas as outras raças gostam de usar o termo nigger ou “preto”.  Se nós usamos, é porque é permitido, dizem todos com um sorriso de escárnio nos lábios. E eu acho particularmente revelador quando nos pedem permissão para usar a palavra!! Quando caímos por ingenuidade ou pressão de grupo acabamos por perceber que não interessa a entoação que se dá à palavra, pois uma vez dita ganha uma vida própria, e sentimos sempre  o escárnio na voz do outro. 

Uma cadela, cabra, vaca, não é uma mulher, não pode ser a tua mulher, não é a tua colega, a tua irmã, a tua amiga ou amante. Da mesma forma que um preto, um cigano, um judeu são seres abstratos que representam tudo menos o teu vizinho, o teu colega, o teu amante, o teu parceiro. “Mas são só palavras” – Dizem eles! “Não significam nada!”  – Dizemos nós.

Eu faço o teste e pergunto a cada um de vós. Se a palavra é só uma palavra, deixa que um estranho te chame isso na presença dos teus pais, filhos e netos.

As palavras têm o poder de vida e de morte, o poder de criação e de destruição.  Palavras como irmã/ irmão, nós e comunidade, têm o poder de criar pontes e de aproximar pessoas, enquanto palavras como nigger e bitch servem para nos separar uns dos outros.  Uma cabra não merece que se invista na sua ideia, uma cabra merece ser pontapeada, esmurrada, um nigger não merece entrar na faculdade, não merece ser meu vizinho. E essas são as palavras deles, dos tais que precisam que sejamos um outro e não gente desta terra que tem irmãos e irmãs. 

A Justiça é representada por uma mulher de olhos vendados que segura uma espada e uma balança nas mãos. É cega porque criamos leis estéreis e estanques, mas permeáveis á retorica de demagogos que usam palavras em vão, que driblam conceitos como justiça, igualdade para perpetuar anos de discriminação que impedem homens e mulheres negras de alcançarem todo o seu potencial 

A justiça é cega e em Portugal usa o direito à privacidade para justificar a obstrução da justiça ao não permitir que se recolha informação étnica ou racial, porque isso seria…? Uma forma de se dar a conhecer a realidade do país com a colonização mais “bondosa”, cujo um dos maiores orgulhos nacionais foi a invenção da “mulata”, naquele contexto. 

A justiça é cega, mas tem todos os outros sentidos bem apurados, principalmente a audição. E voltando à peça do Youtube, a justiça presta atenção à H/estória que lhe é apresentada. E temos milhares de exemplos de dois pesos e duas medidas para a justiça aqui e além-mar. Uma crise com crack é um caso de polícia, mas uma crise com opioides é um caso de saúde pública. Um ladrão que rouba um banco tem uma pena mais pesada do que um banco que rouba pensionistas. E um jovem negro que brinca com uma arma de plástico merece morrer, enquanto um jovem branco que viola uma colega na faculdade não merece ser preso, porque esse erro pode-lhe arruinar o futuro. 

Que lei é essa que acredita que uma criança pode ser uma ameaça para um polícia armado? Que lei é essa que permite que homens graúdos que a representam espanquem uma mulher, e se volta para acusar a mulher de agressão?  É uma lei cega. 

Foi este ano, 2023, que um senhor definido como estrategista americano “matou Affirmative Action”. Conseguiu que um tribunal norte-americano considerasse ilegal que a universidade de Harvard usasse cotas para admitir alunos negros e latinos. E o mais interessante foi o fato de ele se ter baseado numa lei criada para apoiar a integração da população Negra nas universidades depois de anos de luta por direitos civis para acabar com a segregação com base na raça.  Ele assume estar determinado a acabar com “Ação Afirmativa” e a última vitória foi contra uma organização Fearless Fund, uma organização destemida que apoia mulheres negras a montarem os seus negócios. No mês em que saudamos as mulheres negras, ele entrega este presente. 

Quando vi a notícia pensei para mim mesma, aqui está mais um exemplo claro de como a letra da lei pode trair o espírito da lei.  Não sei que retórica usou nem que argumentos conseguiriam apresentar uma realidade paralela, onde é injusto que mulheres negras e latinas tivessem apoio para receber empréstimos, não doações, mas empréstimos para abrir um negócio. E isto num país com registos e estatísticas em que tudo o que acontece pode ser relacionado com a cor da pele. Imaginem em Portugal onde não há registo de cor? Quantas pessoas negras recebem empréstimos para começar um negócio? Qual a taxa de juros? 

A injustiça pode tomar várias formas, desde a obstrução de informação, permitir práticas discriminatórias, ou abater práticas que visam a equidade. Vale tudo para manterem as cabras no lugar delas. A justiça diz-se cega, mas conta a estória de um sistema que se representa e reinventa, usando   a letra da lei para violar o espírito da lei, negando às suas vítimas o direito universal à justiça.  

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