Olhar, refletir, debater, partilhar, descolonizar, praticar a empatia

Bom dia, boa tarde ou boa noite, jovem leitor (a)!

Espero que estejas bem. 

Uma grande maioria de pessoas que vão estar a ler este artigo, provavelmente vivencia em suas vidas, momentos que consideram como sendo positivos, outros momentos, que não consideram tão positivos quanto isso, mas vão ressignificando-os e vivendo dia após dia com a liberdade de ir e de vir. Como tenho observado que nas nossas vivências quotidianas, pouquíssimas vezes nos colocamos imaginativamente no lugar dxs nossxs semelhantes, independente da noção que temos quanto ao género, proponho-vos que busquemos nos imaginar enquanto uma jovem mulher sul-americana. 

Preparado (a)? Então, vamos lá! Sugiro que possas estar num ambiente calmo, onde não haja distrações. Busque vivenciar este momento do modo que lhe for mais confortável corporalmente. Com os olhos abertos ou com os olhos fechados. Inspire e expire profundamente umas três vezes.

Agora, imagine que és uma mulher sul-americana negra, com menos de trinta anos de idade. Inspire e expire profundamente. Mãe de três filhos, mulher trabalhadora que sustenta a casa trabalhando fora e o teu marido toma conta das crianças. Inspire e expire profundamente. És vítima de violência doméstica. Inspire e expire profundamente. Foste privada de liberdade judicialmente durante vinte e dois anos, pelo facto do pai do teu filho ter assassinado o teu filho pequenino, enquanto estavas a trabalhar. Inspire e expire profundamente. Como te sentes sobre a justiça dos homens na Terra?

Inspire e expire profundamente. Dê um tempo para que os teus pensamentos possam fluir. 

O exercício imaginativo que lhe proponho acima, prende-se com o facto que há algumas semanas atrás, moderei conjuntamente com a investigadora Teresa Mendes Flores, na FCSH-NOVA de Lisboa, uma conversação após a exibição do premiado documentário Olha Pra Elas, na programação da exposição O Impulso Fotográfico (des) Arrumar o Arquivo Colonial, nascida do Projeto Photo Impulse (ICNOVA) e que está patente temporariamente até o dia 31 de Dezembro, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. 

A mulher sul-americana que lhe pedi para se colocar no lugar imaginativamente, dá o seu testemunho de vida, em Olha Pra Elas, obra documental que nos traz o recorte de género, no âmbito do sistema carcerário brasileiro. Um sistema, onde continua e crescentemente mulheres que vivem vulnerabilidades sociais, como a pobreza, o racismo, a violência doméstica, a prostituição, entre outras violências, têm vindo a ser privadas de liberdade judicialmente. Muitas destas mulheres, são presas por não terem comida para si e para os seus filhos, por serem companheiras de homens que traficam estupefacientes e que são seus algozes ou por traficarem também elas, a fim de sustentarem os seus filhos, têm histórias de vida onde a falta de afeto e as violências contra as mulheres sempre estiveram presentes.

Pessoas profissionais que atuam nos âmbitos da justiça e dos estabelecimentos prisionais explanam em Olha Pra Elas sobre como o sistema judicial brasileiro tem um olhar patriarcal, classista e racista no que diz respeito ao recorte de género e sobre como as violações dos direitos fundamentais das mulheres vão ao extremo. Muitas das mulheres que nos relatam fragmentos de suas histórias de vida em Olha Pra Elas, também nos revelam as torturas físicas e psicológicas aquando das suas detenções pelos agentes da polícia brasileira. 

Angela Davis revela em seu mais recente livro As Prisões Estão Obsoletas? (2022), publicado em Portugal pela Editora Antígona, violências contra mulheres que decorrem no sistema carcerário nos EUA, como o abuso sexual pelo Estado, através das revistas às mulheres, aos seus órgãos genitais. No Brasil, os abusos sexuais contra mulheres, também são praticados no sistema carcerário, como revela Raul Nascimento, no artigo O Estupro Carcerário e as Mulheres do Cárcere: Um Estudo Acerca da Prática Junto às Mulheres no Contexto do Sistema Carcerário (Revista Transgressões, v.2, nº 2, p. 20-35, 2014).

O sistema carcerário brasileiro é um dos piores do mundo. Segundo Fernandes, Faria e Pereira (2018): “réus primários e autores de delitos de menor gravidade vivem amontoados em celas muito lotadas, com uma alimentação de baixa qualidade, instalações sanitárias defeituosas e, além das condições subumanas no cárcere, constata-se também que eles são encarcerados com criminosos altamente perigosos, que muitas vezes influenciam para que os detidos se tornem ainda mais perigosos e violentos, fazendo os presídios serem na realidade algo não reabilitador, mas o desenvolvimento para que indivíduos presos por crimes menores se tornem piores, havendo também uma demora para conceder os benefícios de progressão de regime do encarceramento mais gravosa para o menos gravoso ou liberdade condicional”, em A Inconstitucionalidade do Sistema Carcerário Brasileiro e a Violação dos Direitos Fundamentais (RJLB, Ano 4, 2018, n. 2, p. 468).

80% das mulheres que são privadas de liberdade no Brasil, são mães e sofrem com a separação dos filhos, uma vez que por lei, elas só podem ficar com os filhos até que as crianças completem seis meses (80% das mulheres presas no Brasil são mães, Redação O Sul, 26 de Setembro de 2019). 

Em Olha Pra Elas, vemos constantemente as mulheres a salientar a dor da separação de seus filhos, a dor de não saberem onde estão e observamos também as dores das crianças e jovens que esperam ansiosamente pelo regresso das suas mães aos seus lares. 

Nós, por cá, podemos visionar uma reportagem da jornalista Patrícia Lucas que com a sua equipa, deram-nos a conhecer a existência de mulheres presas em Portugal, devido ao tráfico de estupefacientes, através da série Linha da Frente, na RTP, Programa Presas em Portugal (2019). Na reportagem é muito evidente que mulheres sul-americanas são vítimas de uma das maiores violações de direitos humanos contra as pessoas: a pobreza. Segundo a pesquisa de Karla Tayuna Ishiy, Estatísticas Prisionais Portuguesas (UC, 2020) em 2020, estavam privados de liberdade, 70,1% homens de nacionalidade portuguesa, 5,5% mulheres de nacionalidade portuguesa, 13,9% homens estrangeiros e 1,5% mulheres estrangeiras. Desconhecemos por completo os dados sobre as origens étnico-raciais das pessoas devido à lacuna da recolha de dados étnicos-raciais em Portugal. 

No Brasil, devido à existência de uma recolha de dados censitária condigna com a realidade social brasileira que é demarcada por desigualdades sociais e raciais, através do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conseguimos compreender que a maioria das pessoas privadas de liberdade no sistema carcerário brasileiro, não são pessoas brancas e ricas. 

O documentário Olha Pra Elas, foi realizado por Tatiana Sager e co-escrito por Renato Dornelles e Luca Alverdi, profissionais da comunicação social e do cinema que têm desenvolvido um excelente trabalho no Brasil, trazendo ao de cima o ativismo em prol da salvaguarda dos direitos humanos de pessoas privadas de liberdade. Têm na sua trajetória um anterior documentário, Central – O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil, que teve a sua estreia nacional no Brasil, em 2017. A obra impulsionou reflexões institucionais significativas sobre os modus operandi do sistema carcerário brasileiro, bem como, transformações práticas.

O sistema carcerário brasileiro, entre outros, são dispositivos herdeiros do sistema esclavagista e como tal, importa que possamos tentar compreender como reproduzimos enquanto sociedades, violências contra os corpos de pessoas que integram grupos sociais que foram racializados historicamente e contra os corpos de pessoas que não sendo interpretadas socialmente enquanto racializadas, são discriminadas por viverem em situações de pobreza. 

O trabalho desenvolvido por Sager, Dornelles e Alverdi, me inspira profundamente. A linguagem cinematográfica, jovem leitor (a), pode trazer-nos luz coletivamente, localmente e globalmente, sobre temáticas que são de suma importância nos tempos em que vivemos.  

 

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