Os crimes contra a liberdade de crença são “uma violação contra a democracia”

A Afrolis esteve presente na Casa do Brasil para entrevistar o pensador Sidnei Nogueira, que participou  de uma conversa sobre ancestralidade e racismo religioso. O babalorixá — sacerdote na religião afro-brasileira candomblé —  é mestre e doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo, e traz à tona um histórico da intolerância religiosa no Brasil, destacando também momentos importantes da história da humanidade caracterizados pela dominação religiosa, como o Império Romano, a Idade Média e o Nazismo. A partir desse panorama, ele explora o conceito de “intolerância religiosa” utilizado atualmente para descrever um conjunto de ideologias e comportamentos ofensivos direcionados a crenças, rituais e práticas religiosas não consideradas hegemônicas. Essas práticas, combinadas com a falta de habilidade ou disposição em reconhecer e respeitar as diferentes crenças dos outros, podem ser classificadas como crimes de ódio que violam a liberdade e a dignidade humanas.

 

Afrolis [AF]: Que caminhos o trouxeram para a Europa?

Sidnei Nogueira [SN]: Fui convidado pela embaixada alemã, pois todos os anos, eles têm um programa de intercâmbio de ideias que este ano teve como tema “Memória e Ancestralidade”, que é um assunto do meu próximo livro; inclusive que é uma coisa que me interessa muito. Ancestralidade, uma coisa que me interessa muito e memória também interessa, porque o Brasil vem passando por esse processo de apagamento, reescrita da história, pós-verdade. Enfim, todos esses movimentos que no Brasil vem corroendo a democracia brasileira. E aí viemos num grupo de oito pessoas e, não preciso dizer, que sou eu [o único] negro, não é?! Porque vieram os diretores do Museu do Holocausto no Brasil, do Museu do Imigrante, do Museus dos Judeus, desses lugares de prestígio e poder. E aí tivemos essas discussões sobre memória e verdade. Eu nunca tinha ido a Berlim. Foi a primeira vez e eu achei interessante, mas puxado para mim. Foi pesado, pois sou uma pessoa muito sensível às coisas do mal, do sofrimento e ali é um lugar que o mal passou muito perto e esteve lá de verdade. Mas me acendeu uma questão que eu levo pro Brasil que é: nós não temos, no Brasil, um museu da escravidão. 

 

AF: Por que Lisboa? 

SN: Sou um consultor ad hoc na UNESCO. E aí depois conseguimos uma agenda na UNESCO para conversar com um departamento específico lá, que é de educação pela cidadania e pela paz que trabalham com os temas antissemitismo, antirracismo. Então, também são assuntos que são da minha área de atuação que me interessam muito. E aí eu falei: “eu preciso ver a cara do colonizador”. Falei: “bom, já estou na Europa”… Mas eu falei de verdade. Eu queria  viver essa experiência em Portugal. Hoje, nós estamos muito nessa discussão do colonialismo, trazida por Grada Kilomba, as colonialidades também trabalhadas por outros autores. É, vamos dar um pulo em Portugal. E falei com o Pai Pedro de Ologun Ede, que teve a ideia de fazer uma conversa por aqui também sobre o meu trabalho e para que eu sentisse um pouco como andam essas discussões por aqui. Aí foi isso que me trouxe a Portugal.

 

AF: Dentro da sua pesquisa de trabalho, Portugal está sempre presente. É importante discutir a ancestralidade em Portugal?

SN: Eu tenho pensado muito na ancestralidade. Eu estou dando uma olhada bem de perto [na ancestralidade] que está muito presente no continente africano, nas diferentes comunidades africanas. Que ela atua na filosofia africana, na cultura africana, como um fio condutor ético. Tem um provérbio que eu repito sempre, que eu adoro, que é: “O mais velho que fizer mal a um mais jovem, será punido 12 vezes. E o mais jovem que ofender um mais velho será punido uma vez.” Essa tradução desse provérbio Iorubá coloca uma responsabilidade muito grande sobre aqueles que vieram antes de nós. E agora, em nós, por aqueles que virão depois de nós. Aquela noção de liquidez tomou conta da nossa sociedade, então ninguém tem compromisso com nada, né? Não tem. Não tem compromisso. Não há como não ter compromisso, inclusive com a idade, com o tempo vivido. Gosto mais da expressão “tempo vivido”. Veja você, no Brasil nós temos cerca de 3 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Aí você pode me perguntar “o que isso tem a ver com a ancestralidade?” Tudo. Com este ato, ele está abrindo mão da autorresponsabilidade e do lugar ocupado. Não é? Nós temos hoje pessoas adultas e, principalmente homens, que se comportam como crianças, eles não assumem o  tempo vivido. E aí, nessa noção de ancestralidade, se você não assume o tempo vivido, você não vai poder ser um ancestral. Você automaticamente está abrindo mão da ancestralidade. Se você abrir mão da ancestralidade, aquele que vem antes não tem a que seguir, ou tem, mas de uma maneira distorcida.

 

AF:  Como é que no Brasil se junta a ancestralidade e a religião? 

SN: Fica parecendo sempre que fora da moral cristã, não há ordem, não há organização. Mas quer dizer, e essas noções eurorreferenciadas, colonizadoras, colonizantes se colocam no centro do mundo como únicas possibilidades de organização. Isso acontece muito com as nossas religiões afro diaspóricas em que as pessoas acham que por não seguirmos a moral cristã, não temos organização, tudo pode, é uma anarquia, é uma bagunça. Então eu tenho tentado dizer para as pessoas que me parece que a moral cristã fracassou. Não está parecendo que esse negócio deu certo. Está parecendo que deu errado, o que vocês estão chamando de noção de organização ou de manutenção da ordem. Não deu certo. O que vocês estão chamando de ética, não funcionou. É feminicídio, homofobia, transfobia e racismo que vem primeiro, né? Acima de tudo, é  primeiro racismo, o ódio com as questões de género e identidade de género, o ódio ao feminino, que é um ódio sobrenatural do patriarcado sobre o feminino. Eu costumo dizer, por exemplo, que os homens não gostam de mulher. Eles gostam de homem. O que eles buscam numa mulher, na maioria das vezes, é a mãe que eles querem de volta. Eles não gostam da mulher no corpo da mulher, não gostam da mulher no corpo do homem gay, não gostam da mulher no corpo da mulher trans. Eles não gostam de mulher. Essa é a grande verdade. Então nós temos aí vários atravessamentos antiéticos. Nesse exato momento, eu estou escrevendo um livro sobre o mal. Como em 2016, com o golpe da Dilma e depois a ascensão da extrema-direita no Brasil, eu fiquei pensando como 52 milhões de pessoas aprovaram o mal. Tem um provérbio iorubá que diz que “o mal é um grito estridente e o bem é um grito sutil”. Então mal é verdade, ele tem mais poder, ele é mais sedutor. Porque ele grita para ser ouvido e o bem não. O  bem, ele é sutil. E aí eu comecei a perceber o que o Achile Mbembe falou lá atrás, que a era do humanismo acabou, isso já está definido, mas eu comecei a sentir que a gente entrou na era do ódio, em que odiar é preciso. Você nem sabe o que você está odiando, mas você odeia, você não elaborou aquilo, você nem pensa, mas você odeia e aí eu estou trazendo, no meu próximo livro sobre o mal, justamente essas questões. Eu falo com todas as letras, olha, racismo é manifestação do mal não é opinião, esse é o mal. Transfobia não é opinião, isso é o mal. Homofobia e misoginia são o mal. Porque se produz violência contra o outro, é o mal. 

AF: O racismo religioso também é tópico desenvolvido no novo livro?

SN: Tem um dado que eu gosto e que as pessoas não sabem. É um dado que eu descobri na minha pesquisa de dois anos para escrever o livro Intolerância Religiosa. O dado diz que 52% dos países do mundo não têm liberdade de crença, já são fundamentalistas. E o Brasil está caminhando para engordar esses 52%. E eu falo que prefiro ateísmo de verdade. Eu prefiro os ateus aos fundamentalistas. Os ateus não me incomodam, não dão problema, eles não são violentos contra nós.

 

AF: E essa questão da violência contra as religiões de matriz africana tem aumentado?  Embora o Brasil venha passando por uma transformação em que as pessoas, principalmente pessoas brancas, também passam a assumir as religiões de matriz africana. 

SN: Nós tivemos, a despeito da lei 10.639, apesar de não ter sido implementado, pois 20 anos depois as escolas não cumprem ainda [o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira].  Mas em alguma medida, nós estamos colhendo um trabalho árduo do movimento negro. Com aquela noção do Aimé Césaire de negritude, a gente começa a conquistar, então aumentou o número de autodeclarados negros, pretos e pardos, também aumentou o número de negros que começaram a retornar aos terreiros. E a gente tem a Internet, né? Não adianta que a Internet acaba dando publicidade, mostrando e de alguma maneira, acirrando os ânimos dos fundamentalistas. Eu também não quero generalizar. Mas você tem um protestantismo progressista? Sim, você tem. Você tem um cristianismo progressista? Sim, você tem. Mas ele é insípido e também não dá conta. Eu só estou pontuando para não parecer aquela pessoa que generaliza e que eu odeio todo mundo não, não se trata disso. Existe, só que esse movimento é pequeno.

 

AF:  Nós precisamos usar muitos dados e informações para dar provas?

SN: Eu gosto dos dados de verdade. Quando eu fui fazer pesquisa do livro “Intolerância Religiosa”, que tem esse nome porque a gente sabe que o racista não vai comprar um livro que se chama “racismo religioso”, porque ele não acredita no racismo. Mas o que nós temos no Brasil é racismo religioso e eu digo, porquê. Quando eu comecei a analisar os dados do Disque 100 [O Disque Direitos Humanos é um serviço disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos], que foram os dados que usei e até a primeira metade de 2019 ainda funcionava esse canal de denúncia, depois acabou tudo. Acabou o Ministério, acabou tudo e depois de não ter mais nada, não tinha mais dados para trabalhar. Até hoje, você não tem mais dados para trabalhar. Vamos ver agora o resultado do último censo do IBGE, que voltou, né, ficou sem recenseamento. E aí quando eu fiz a pesquisa,  90% das denúncias eram voltadas para a perseguição de comunidades de terreiro, umbanda, quimbanda, candomblé. Também protestantes contra católicos, entre cristãos têm também, perseguição contra ateus também, mas esse bloco soma os 10%. 

As pessoas sempre perguntam para mim qual que é a diferença de intolerância e racismo religioso, então é assim:  intolerância é uma chave maior que pega tudo. Dentro da intolerância você tem uma categoria semântica, que é o racismo religioso, porquê? Porque aí você tem a racialização da religião. Você tem o dado racial. Quando eu fui olhar as denúncias, sempre tinha lá uma manifestação discursiva do tipo: “aquela preta feiticeira”, “aquela bruxa preta”, “ah, eles são sujos”, “trabalha com magia negra”, “assassinam animais”. Sempre tinham dados da racialização. Então, é isso que coloca o Brasil nesse lugar de racista e nesse lugar do racismo religioso. É tão sério racismo religioso que nós aparecemos apenas como 4% das religiões do Brasil e nós sabemos que isso não é real, que esse número está subestimado. 

 

AF: Normalmente as pessoas se  autodeclaram católicas, mas que praticam uma segunda religião, que na maior parte das vezes, está ligada a religiões de matriz Africana…

SN: O que acontece na religião católica é que você se batizou, você já é católico, mesmo que você não pratique. Tem muito o católico não-praticante. E isso também acontece muito com as pessoas nas religiões de matriz africana. Ela vai para uma consulta de búzios, vai pedir uma orientação, que ela vai pedir uma limpeza espiritual, entendeu? Por isso que o que você está trazendo faz muito sentido que muitas vezes é a segunda religião dela. Ela está vinculada oficialmente, ela é católica, porque o mundo precisa aceitar. Mas no fim das contas, ela é mesmo macumbeira. Isso está na cultura brasileira, está muito na cultura brasileira. 

AF: Antes o termo macumbeira tinha um viés negativo, mas com a internet agora as pessoas passam a ressignificar a palavra e assumem-se como macumbeiros.

SN: Tem acontecido um fenómeno interessante, no Brasil, que é um fenómeno de subversão linguística. Sabe de subverter o sentido dado pelo colonizador. Então, você deu esse sentido, não? Mas nós vamos assumir um sentido original no sentido anterior a esse que você colocou na palavra.  A palavra não nasceu desse jeito, foi você quem colocou o sentido ruim sobre a palavra. Não é? E aí a gente tem se autodeclarado, até parar para tentar gratinar, que como são várias denominações: Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Jurema, Batuque, Nagô Egba, enfim, o Brasil é muito grande. Quer dizer, São Paulo também é muito grande. A gente se autodeclara macumbeiro, sim. E nós somos macumbeires. Somos muitos e diferentes. Não somos católicos, embora muitas vezes existam tradições de terreno que até está muito associada à cultura cristã e está tudo bem para mim. Não é um problema para mim. O problema é a perseguição, esse é que é o problema. O sincretismo também não é um problema para mim e não são questões  que eu quero transformar num problema. Eu quero transformar num problema o que é um problema, que é o racismo. Você não pode impedir a minha existência, não é? A religiosidade forma a nossa subjetividade. Tem um sentimento religioso que precisa ser protegido. Então nós não podemos permitir que as pessoas percam o emprego. Veja bem, eu tenho um terreiro no Brasil e eu tive que colocar três tanques coletivos porque os filhos (de Santo) não podem lavar as roupas brancas na casa da mãe evangélica porque a mãe encontrou a roupa branca na gaveta do filho e  queimou a roupa. Às vezes esse meu filho, ele é jovem e ainda não tem uma autonomia financeira e eu não posso dizer “sai de casa” porque isso requer dinheiro. Também não posso colocá-lo com outra família. Então, eu criei um armário para ele deixar as roupas e as insígnias, os fios de contas, os símbolos do terreiro e eu falo “você lava, seca e deixa a roupa aqui para não ter problema com a família”.  Porque se ele insistir, ela vai expulsá-lo e isso é muito sério. Como expulsa o gay, a mãe que tem um filho solo. Isso é muito sério, então as proporções do ódio religioso têm sido devastadoras no Brasil porque a política está se associando ao discurso religioso. E a um só tempo eles fazem conversão religiosa e conversão política junto. 

 

AF: Quais as estratégias de enfrentamento ao racismo religioso?

SN: Eu estou muito interessado na formação de jovens e de lideranças negras. Você sabe que nós não estamos no poder, no lugar de decisão. Eu sou um senhor de 54 anos e falo com orgulho e eu me preocupo muito com a com a com a juventude. É, então, nós temos a Coalizão Negra , nós temos outros espaços como o Instituto Ileara, que estou à frente e nós temos essa preocupação de formação. Nem todo mundo tem que ser de terreiro, as pessoas podem ser da religião que elas quiserem, mas é importante que nós tenhamos uma negritude capaz de reivindicar o que lhe é de direito. Se você não está representado no Poder Judiciário, no Congresso Nacional, não adianta pois eles não vão fazer política para nós. Eles nem sabem o que nós passamos. Eles falam até hoje no Brasil que se “vocês pararem de falar de racismo, o racismo acaba”. Eles ainda acreditam nisso, não é? Então é uma luta que nós temos que travar.  Temos que travar lá, temos que nos unir aqui na Europa também, que passa pelos mesmos problemas. E uma estratégia que tem sido essa estratégia de formação de jovens, que não necessariamente são de terreno, mas que entendem a sua ancestralidade, que entendem a história do terreiro no Brasil e que estão preparados para disputar a vereança, vagas de deputado, o Conselho Tutelar. Na última eleição do Conselho Tutelar, a Igreja Universal do Reino de Deus colocou 70% dos conselheiros e quando uma jovem engravidava, eles diziam que a pomba gira era culpada pela gravidez. A Igreja Universal trabalha com esse discurso do bem contra o mal, e o mal nós sabemos quem que eles colocam nesse lugar. Então esse foi um movimento que eu comecei a fazer de que nós precisamos de jovens negros de terreiro para poder fazer frente, nos Conselhos Tutelares.  Nós temos tido essa estratégia de formação de jovens lideranças negras para assumir esses territórios.

 

AF:  Na área da pedagogia, como é esse trabalho entre educação e religião nesses espaços escolares?

SN: A escola pública no Brasil fracassou e é um problema sério. Eu acho que a escola, de uma maneira geral, fracassou no Brasil. Até quando eu cheguei aqui eu perguntei como é a educação, porque estou sempre interessado em saber como é a educação, porque sou professor e é alguma coisa que me interessa muito. Mas a “deseducação” realmente é um projeto no Brasil e não tem a ver com a escola pública ou privada, porque na escola privada a única coisa que ela vai te oferecer a mais é conteúdo para você memorizar. Com apostilas bem elaboradas, mas ela não está desenvolvendo o senso crítico. Você aprende inglês, você aprende francês, aí você consegue se colocar numa grande corporação, consegue fazer um intercâmbio, mas também não está desenvolvendo senso crítico, e [essa é uma] questão. Atualmente, nós temos uma juventude conservadora, no Brasil. Que o mais velho seja conservador com 60 ou 70 anos os tempos em que viveu… Mas os jovens estão assumindo uma ideia conservadora. Então a escola não tem desenvolvido a consciência crítica, e eu não quero dizer com isso que todo mundo tem que pensar do mesmo jeito, mas todo mundo tem que ter acesso à possibilidade de escolha. E se a escola está oferecendo só uma ideia conservadora, o aluno vai seguir essa ideia. Nós tivemos, no Brasil, nestes últimos anos, o movimento “escola sem partido”, essas fake news que tomaram conta do mundo. Mesmo assim, eu acredito muito na educação. Eu acredito na educação com uma outra estrutura. Acredito no professor de verdade. Hoje o nosso problema na escola pública do Brasil são os diretores e a forma como eles tratam a escola, como um puxadinho da casa deles. Eu fui chamado antes, um pouco antes da viagem para cá, para fazer uma intervenção numa escola onde o diretor estava permitindo que as células evangélicas fizessem o culto durante o intervalo. E eles matavam a aula de filosofia porque o professor estava tratando de Nietzsche, para fazer culto. Esse 52% que eu falei, voltamos lá pelo começo da nossa conversa, de países fundamentalistas, não são democráticos, porque é sobre isso, é sobre democracia. Um país fundamentalista não é um país democrático. Então essa violação da liberdade de crença, não é uma violação só contra o terreiro, contra uma determinada religião, é uma violação contra a democracia. Claro que temos guerreiros e guerreiras  que fazem frente, graças aos orixás e a Exu, mas uma parcela substancial da escola também está tomada por essa onda de extrema direita, no Brasil. 

 

AF: O próximo livro já tem título?

SN:  “O mal da perspetiva iorubá”, o mal no pensamento africano, numa perspetiva iorubá. Nele, eu faço análise do mal numa epistemologia iorubá utilizando pensadores, filósofos, antropólogos e sociólogos depois de uma pesquisa dura. Eu pego esses pensadores que trabalharam o mal e faço uma ponte para ver como isso se dá no Brasil e começo por  identificar as lacunas que permitiram isso. Uma delas é porque a nossa matriz sociológica, civilizatória ocidental é a matriz do esquecimento. A nossa sociedade ama esquecer. Se morre uma pessoa, eles já querem dar roupa e acabar com tudo porque é um fantasma. Então a nossa sociedade é uma sociedade de esquecimento, ela quer esquecer. Por isso, começo a trazer essas questões e uma parte importante do livro é quando eu digo isso: “transfobia, isso é manifestação do mal”. Tem outro provérbio iorubá que diz “O Rei ignorou o mal. O mal cresceu e devorou toda a cidade” e no Brasil, estamos até hoje num processo de romanização do mal. Romantiza-se o escravismo, o feminicídio e os crimes. Tudo é romantizado. “Não, não, isso é coisa do passado”; “não, não, isso é um caso isolado”. Dessa perspetiva iorubá não dá para fazer isso. Você tem que apontar o dedo e dizer “não, isso é o mal”. 

 

AF: Estas três palavras estão sempre juntas: memória, história e ancestralidade.

SN: Isso é fundamental. Sim, porque é verdade, a história se repete, sim. É por isso que nós precisamos da memória, para que a gente não repita os erros do passado e para que a gente tenha o suporte da ancestralidade. Porque os ancestrais pavimentaram o caminho para nós. Para os iorubás você tem os antepassados que são mortos comuns. Esses não pavimentaram o caminho para nós, que são mortos do mal, são antepassados. O ancestral é um rei ou uma rainha, ele fez um bem coletivo, ele teve uma caminhada relevante. Essa categoria ancestral  não é qualquer categoria, não basta morrer que vira ancestral. Na África é muito mais comum porque as pessoas se esforçam para serem ancestrais, então isso já está marcado. Mas na nossa sociedade, não. Na nossa sociedade de esquecimento, as pessoas não se importam, é cada um por si, “eu faço o que eu quero”, “eu me basto”, “eu não estou nem aí” e isso não vai cair na categoria da ancestralidade, vai para a categoria dos antepassados, os mortos comuns. Eles morreram, eles vieram antes de nós, eles são nossos antepassados, mas não são nossos ancestrais. 

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