Relações inter-raciais em contexto familiar

Um dos formatos dos conteúdos da Afrolis é o audiodrama. Este é um formato no qual investimos para aproximar quem nos lê, vê e ouve de temáticas difíceis ou sobre as quais não sabemos como começar a discussão. O tema das relações inter-raciais em contexto familiar é um desses assuntos. Os filhos destas relações deparam-se muitas vezes com um não diálogo sobre o que significa pertencer a dois mundos, mas ser visto como alheio a ambos. Os “mulatos”, os “cabritos”, os “moreninhos”, é assim que sem uma reflexão profunda sobre de onde estes termos vêm e onde eles nos colocam socialmente nos referimos aos filhos de relações inter-raciais. Como falar com/sobre estas pessoas sem pensar o que nos leva a utilizar termos que nos remetem ao mundo animal (mulato, cabrito) ou obrigam a usar supostos eufemismos (moreninho)? Num país como Portugal, que tem um passado colonial tão presente e que se orgulha de ter sido um “bom colonizador” por se ter “misturado” com as pessoas dos territórios que ocupou em África e não só, este tema é bastante pertinente. 

No dia 2 de abril de 2023, lançaremos o primeiro de três episódios da série Ritual de Escuta, que publicaremos ao longo do ano com uma periodicidade trimestral. A Conversa é o título do argumento escrito por Lara Mesquita, vencedora do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina (2021). A direção artística fica a cargo da atriz Carla Gomes e a interpretação é feita pela atriz Manuela Paulo e pelo ator Daniel Moutinho. Cada episódio será também levado a salas de espetáculos para um Ritual de Escuta e Conversa, em que o público poderá ouvir o audiodrama, num ato de escuta coletiva, e seguido de uma troca entre os atores, a diretora artística e a argumentista com moderação da Afrolis. 

O episódio A Conversa  vai ser apresentado pelo TBA (Teatro do Bairro Alto), em Lisboa, no dia 6 de abril, pelas 18:30, na sala Manuela Porto e no seu podcast Dito e Feito.

O racismo que desumaniza e contradiz tudo o que é dito a uma criança negra, em contexto familiar saudável, e obriga a criança a fazer escolhas irracionais e cultivar valores que a diminuem. Como funcionar neste contraditório? 

“Como é que se fala com uma criança negra sobre o que ser negra significa, no contexto do domínio branco?” é a pergunta para a qual o episódio A Conversa procura uma resposta. No ensaio para a conversa “a mãe negra e o pai branco mergulham, nadam e flutuam na complexidade inerente à conversa.”, lê-se na sinopse. 

Em maio de 2022, um artigo da socióloga Cristina Roldão, colunista do jornal Público, também com o título “A Conversa”, falava sobre o carácter latente deste diálogo na infância de crianças negras. O artigo explora a forma como diferentes famílias lidam com o dilema de iniciar e de ter efetivamente esta conversa sobre o racismo com uma criança. O racismo que desumaniza e contradiz tudo o que é dito a uma criança negra em contexto familiar saudável e obriga a criança a fazer escolhas irracionais e cultivar valores que a diminuem. Como funcionar neste contraditório? 

O conceito dissonância cognitiva, uma proposta do psicólogo norte-americano Leon Festinger nos anos 1950, procurava explicar este tipo de situação, ou seja, o desconforto causado por pensamentos, comportamentos e crenças contraditórias, e fala de três estratégias que as pessoas utilizam para reduzir esse desconforto, na tentativa de atingirem o equilíbrio emocional. A primeira estratégia é minimizar a importância do pensamento dissonante, a segunda é sobrevalorizar o pensamento consonante relativamente ao pensamento dissonante, e a terceira é incorporar o pensamento dissonante no nosso sistema de crenças.

E como é que estas estratégias se podem traduzir n’A Conversa? O artigo de Cristina Roldão, acima referido, traz-nos alguns exemplos da prática destas estratégias. Cito apenas um excerto que me parece bastante elucidativo da complexidade e necessidade desta conversa. 

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“Mais macabras ainda são as situações em que se diz à criança que foi vítima de racismo que, “se calhar, o colega chamou-te isso porque és e isso não tem mal nenhum, deves ter orgulho da tua cor” [minimização do pensamento dissonante e sobrevalorização do pensamento consonante ao mesmo tempo]. Culpa-se a vítima por uma pretensa falta de autoestima, legitima-se o racismo, escamoteando-o, reiterando-se o insulto [incorporação do pensamento dissonante]. Há também quem aconselhe a que ,“da próxima vez, diz-lhe: ‘Sim, sou e com muito orgulho!’” [sobrevalorização do pensamento consonante]. É verdade que se reage à agressão e que uma criança orgulhosa das suas origens está mais protegida dos danos psicológicos do racismo. Contudo, pergunto-me se devemos pedir a uma criança que faça um exercício tão difícil de ressignificação e inversão simbólica.

E esta é mais uma das perguntas que também se colocam no primeiro episódio da série Ritual de Escuta, que terá mais dois episódios a serem publicados ao longo de 2023, centrando-se  em vidas de mulheres racializadas.

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