SaMaNe partilha primeiro estudo sobre racismo obstétrico em Portugal

A maioria das mulheres não recebeu explicações nem pedidos de consentimento para os procedimentos realizados durante a gravidez e o parto. Além disso, apenas pouco mais da metade delas foi informada sobre o plano de parto, teve a oportunidade de escolher um acompanhante durante o trabalho de parto e recebeu explicações e consentimento adequados para as intervenções realizadas. Estas são as descobertas do estudo “Experiências de gravidez, parto e pós-parto de mulheres negras e afrodescendentes em Portugal”, conduzido entre março de 2021 e junho de 2023.

Realizado pela Associação SaMaNe – Saúde das Mães Negras e Racializadas em Portugal, é o primeiro estudo nacional sobre as experiências de gravidez, parto e pós-parto de mulheres negras e afrodescendentes em Portugal, feito devido à “lacuna existente em Portugal no que tange a dados referentes às experiências obstétricas” destas mulheres, pode ler-se no documento. 

Mais de 20% das mulheres negras e afrodescendentes em Portugal relatam ter enfrentado violência obstétrica durante a gravidez, de acordo com o recente relatório. “Apesar de maneira global as mulheres negras e afrodescendentes terem experiências positivas durante a gravidez, parto e pós-parto”, esses casos de violência são associados a “questões de raça/etnia, idade, condição social ou outros fatores”, revelou ainda o estudo. 

A gravidez é uma experiência repleta de emoções positivas para a maioria das 158 mulheres inquiridas. No entanto, uma percentagem considerável relatou sentir falta de respeito (10,7%), humilhação (33,5%), ou negligência (41,1%) por parte dos profissionais de saúde. 

De acordo com o relatório, cerca de 24% das mulheres mencionadas no estudo relataram ter sofrido violência obstétrica durante o parto. Além disso, durante esse período da gravidez, uma percentagem significativa dessas gestantes afirmou sentir-se negligenciada (23,4%), desrespeitada (19,7%) ou humilhada (17%).

A grande maioria das mulheres envolvidas no estudo estava ciente do termo “violência obstétrica” (75,9%), embora muitas delas reconhecessem ter um conhecimento limitado sobre o assunto (18,4%). Apenas oito participantes afirmaram não ter conhecimento do conceito. Entre as mulheres que estavam cientes do problema, aproximadamente 33,5% obtiveram informações sobre o assunto por meio das redes sociais digitais ou dos meios de comunicação social, incluindo 10,1% que o descobriram através da combinação de ambas as fontes.

Uma das participantes no estudo, uma mulher negra de 36 anos, engenheira de telecomunicações e residente em Lisboa, compartilhou sua experiência em que se sentiu negligenciada durante sua gravidez. “O único momento em que senti que fui negligenciada, foi no terceiro trimestre em que já não me sentia bem para trabalhar e a médica se recusou a passar baixa porque eu estava em teletrabalho e ela considerava trabalho leve. Dias depois, veio-se a confirmar tensão alta e risco de pré-eclâmpsia e fiquei em repouso absoluto. Totalmente desnecessário ter chegado a esse ponto e a médica desconsiderou os sintomas que lhe relatava”.

Outras inquiridas relataram não terem sido informadas “de alguns direitos”, ter sido realizado “episiotomia” sem o seu “consentimento” ou ter sido negligenciada durante esperar “quase hora”, sendo que “estava em claro trabalho de parto”. 

Neste inquérito online, foi avaliada uma amostra em que a maioria das pessoas possuía formação superior completa (60,8%), é trabalhadora por conta de outrem (83,5%). Além disso, a maioria dos participantes pertencia a famílias com uma renda média acima de mil euros e residia principalmente em Lisboa (54,4%), seguida por Setúbal (20,9%).

Cerca de metade (50,6%) das mulheres negras e afrodescendentes afirmam ter recebido informações sobre o plano de parto, enquanto 58,3% relatam não ter sido informadas sobre a possibilidade de negociar a tomada de decisões tomadas pelos profissionais de saúde. Apenas metade (50%) foi orientada sobre as diferentes opções de tipos de parto, enquanto uma significativa percentagem de 82,3% recebeu informações sobre os sinais de urgência obstétrica. 

O inquérito, que esteve em curso desde 2020 e integra a tese de doutoramento de Laura Brito, revela que a maioria das mulheres (79,7%) não pôde escolher um acompanhante durante o trabalho de parto. Além disso, 31% das participantes indicaram que não receberam explicações adequadas nem deram o seu consentimento para as intervenções médicas realizadas durante o processo de parto. 

No que diz respeito ao alívio da dor, quase metade das pessoas (49,3%) indicou que não recorreu a quaisquer métodos alternativos. Entre aquelas que optaram por abordagens diferentes da epidural, a utilização da bola foi a mais comum, escolhida por 8,9% das inquiridas, seguida pela combinação da bola com a banheira, com 7%, e, por último, a utilização exclusiva da banheira, que registou uma percentagem de 3,8%. 

O relatório inclui ainda diversos testemunhos das mulheres que participaram no inquérito. Enquanto algumas partilharam experiências positivas, muitas denunciaram casos de violência obstétrica que foram alvo. 

Uma jurista de 34 anos, natural de Setúbal e de ascendência negra, alega ter sido vítima de violência obstétrica por parte do chefe de serviço, que afirmava que a paciente “tinha bom corpo e tamanho para parir”. Alega ainda que a cesariana lhe foi recusada, apesar das complicações físicas, incluindo tensão alta, e dos enfermeiros terem recomendado essa opção de parto. “Estava completamente em cima da minha barriga, a apertar e a gritar comigo, para eu fazer força e a magoar-me as costelas, enquanto as outras duas tentavam ajudar a tirar o bebé. Parecia um pesadelo”, desabafou. 

Após a alta, a maioria das mulheres (55,1%) recebeu acompanhamento no centro de saúde. A maioria das informações fornecidas durante as consultas estava relacionada com a amamentação e os cuidados com o bebé. No entanto, apenas cerca de metade delas recebeu informações sobre saúde mental (43%), saúde sexual (53,2%), e a alimentação adequada para o período pós-parto (43%), de acordo com o relatório. Além disso, 26,4% das inquiridas relataram ter experienciado violência obstétrica após o parto.

O estudo partilhou ainda 17 entrevistas realizadas entre outubro de 2022 e abril de 2023. Iva (nome fictício) partilhou a sua experiência como uma jovem negra de 18 anos, que na altura da sua primeira gravidez, vivia num bairro social da periferia de Lisboa. A sua primeira gravidez foi “fruto de uma relação ocasional em que o pai não quis assumir a criança”, mas Iva decidiu avançar com a gravidez com o apoio da família. 

“Na altura, o que eu senti, senti por algumas vezes que fui discriminada. Mesmo no início da gravidez, por parte da equipa médica que me assistiu no centro de saúde. Diziam para eu abortar porque era muito jovem. Sim. A primeira vez que fui ao centro de saúde e disse que estava grávida, a enfermeira disse ‘está maluca? Mas aborte!’. E eu ‘não, não quero. Eu vou assumir o bebé. Eu vou continuar’. Foi logo o primeiro impacto. Como eu já era teimosa, e tinha o apoio da minha mãe e da minha família, avancei com a gravidez e correu tudo bem”, partilhou a jovem, com a associação SaMaNe.

Na altura da entrevista, Iva, com agora 31 anos e grávida do quarto filho, lembrava ainda que a pressão continuou após o parto, com assistentes sociais sugerindo a adoção para a sua filha recém-nascida. Determinada, Iva insistiu que iria criar a sua filha, pois era maior de idade, trabalhava e tinha o apoio necessário para assumir essa responsabilidade. “Sugeriram até que eu a desse para adoção. Isto acabadinha de ter a bebé. Continuaram a fazer esse tipo de perguntas e pressão. Logo na maternidade, diziam que não tinha condições, que não, que não, que não. Eu disse “não, vou ter, vou assumir, sou maior de idade, eu trabalho, eu tenho a minha vida e vou assumir a minha filha e vai correr bem.”

Na segunda gravidez, Iva confessa “não ter sentido a mesma pressão por parte dos serviços de ação social e de saúde, porque, nas suas palavras, o seu companheiro tinha um nível de vida muito elevado ao que ela tinha quando teve a primeira filha”. 

Durante as suas três gestações, a jovem mãe diz ter sido pressionada várias vezes pela maternidade que a acompanhava que iriam entrar em contacto com a assistente social da sua área de residência, para auferirem se teria condições para ter “tantas crianças em casa”.  No que diz respeito ao racismo obstétrico que sofreu, Iva afirma: “Eu estava sozinha, era jovem, era negra e era de um bairro social. Ainda tinha esse acrescento. Eu na altura vivia num bairro social e isso não me ajudou para que não sofresse nada.”

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