“Se as condições forem criadas, nós não temos de ser heróis”, com Sara Kambinga

Sara Kambinga é jornalista angolana, feminista e ativista social. Trabalha essencialmente com questões sociais há algum tempo. Tendo feito parte da direção do Ondjango Feminista, agora é apenas membro daquele coletivo autónomo de ativismo e educação em prol da realização dos direitos humanos de todas as mulheres e meninas em Angola. Começou a fazer rádio em diferentes projetos há cerca de nove anos, e até ao mês de abril de 2023 trabalhou na Rádio Tocoista. Atualmente, encontra-se num momento de reflexão sobre o futuro. Nesta entrevista, Sara Kambinga fala-nos sobre a profissão de jornalista em Angola enquanto mulher. 

 

Carla Fernandes [CF]: Como começou a sua trajetória no mundo do jornalismo?

Sara Kambinga [SK]: Comecei a trabalhar na Rádio Tocoista há cerca de seis, sete anos e depois recebi a proposta para ir trabalhar para o Mosaiko. O Mosaiko é uma organização de Direitos Humanos que trabalha com questões de género, políticas públicas, justiça social, faz advocacia, trabalhos de investigação sobre direitos humanos, faz acessória a várias comunidades que enfrentam várias violações de direitos humanos. A sede do Mosaiko é aqui em Luanda, entretanto, a sua atuação é mais no interior do país, onde há pessoas muito mais vulneráveis. Dentro do Mosaiko, eu era jornalista e fazia a apresentação do programa de rádio “Construindo Cidadania”. O programa é sobre direitos humanos, principalmente sobre a questão de assistir comunidades mais vulneráveis. Dar voz a essas comunidades que, infelizmente, não têm muitos canais para apresentar as suas questões e principalmente procurar soluções para os problemas que enfrentam enquanto comunidade. Este programa é da organização Mosaiko e é emitido na Rádio Ecclesia. 

CF: Esta é a sua experiência mais recente no jornalismo. O jornalismo foi a tua primeira escolha de formação e de entrada no mundo do trabalho profissional.

SK: Bem eu não fiz propriamente um curso universitário em Jornalismo, sabemos que as questões aqui de acesso à informação, infelizmente, ainda não são tão abrangentes. Nós temos poucas universidades para quilo que é a nossa dimensão populacional, mas na altura, foi essencialmente, por falta de dinheiro. Eu não tinha condições para ingressar numa universidade privada e das tentativas que fiz na universidade pública não conseguia, porque, além do curso de comunicação social ser um curso muito concorrido, nós aqui ainda temos o problema da corrupção que é muito forte. Então, é um curso que facilmente as pessoas pagam para ter acesso. Tentei durante três anos, infelizmente, não entrei, e experimentei psicologia, que sempre foi a minha segunda opção e aí tive sucesso e estou a fazer o curso de Psicologia no ensino superior. 

Como comecei a fazer rádio. Havia um projeto… ainda existe o projeto chamado “Eu e a minha comunidade” pensado para pessoas que não têm recursos financeiros poderem ter acesso a diversos cursos profissionais. Soube que lá tinha o curso de Radiojornalismo e achei a oportunidade neste centro de formação de fazer alguma formação na área de comunicação, que sempre foi o meu sonho. Foi mais ou menos em 2009, 2010. Criámos uma rádio no centro de formação e fizemos o esforço de troná-la uma rádio comunitária. Mas no ponto de vista prática, em Angola, não tem rádios comunitárias. Pelo menos uma rádio que abranja todos os critérios que uma rádio comunitária deve ter, nós não temos. Porque o nosso governo é exigente no ponto de vista financeiro para se criar uma rádio. As pessoas podem ter, no ponto de vista de equipamentos, estrutura para começar a funcionar, mas para cumprir questões administrativas já fica um pouco pesado e quase que ninguém consegue ter rádios… as comunidades não conseguem ter rádios. Então assumir categoricamente que eu trabalhei numa rádio comunitária, não. Era no ponto de vista mais pedagógico, porque aquilo funcionava como a rádio da escola, entretanto conseguíamos cobrir expectativas comunitárias, porque nós tínhamos programas em que dávamos voz aos membros da comunidade. Foi muito bom para agregar experiência. 

CF: Ao fim, fez um trabalho social e jornalístico juntando as suas habilitações na área da Psicologia, terá sido um trabalho bastante gratificante. 

SK: Sim, sempre é gratificante. E sendo ativista temos esse pendor de trabalhar com as pessoas e mostrar que cada um de nós enquanto cidadão, podemos fazer cobranças, mas temos que também colocar a mão na massa, trazer propostas, resultados. Porque se nós só fizermos cobranças e nunca agregarmos soluções também quase que não somos ouvidos, porque depois só somos pessoas que fazem queixas e não conseguem contribuir. Nós não estamos na posição apenas de quem vai apenas ver e ouvir. Nós estamos na posição de quem vai se envolver, vai sentir na pele o que está a acontecer, porque isso também muda muito a forma como vais narrar a história. E para mim, faz parte de mim porque esta também é a minha realidade de viver numa rua de quando chove não tem como circular, na casa entra chuva, eu não tenho carro próprio, se não tem transportes não sabes como vais trabalhar… No fundo é um problema que é nosso. 

 

CF: Enquanto mulher no jornalismo, nós sabemos que existem diferenças e entraves na prática da profissão e nas estruturas que nos acolhem enquanto profissionais.

SK: Não tenho experiência prática de outros países, mas ouço que em muitos países, a comunicação social é daquelas áreas mais concorridas e, às vezes, os critérios de inserção são um pouco mais exigentes. Mas aqui no nosso contexto, nós não sabemos quais são os critérios, e aqui falaria mais sobre as instituições públicas, que têm maior obrigação, não sabemos quais são os critérios que usam para contratação, por exemplo. Dificilmente existe concurso público para a contratação, por exemplo. Acabamos por fechar caminhos e a forma de entrar para o mundo da comunicação social acaba sendo da forma mais “padrinhos na cozinha”. Não sei se sabe o que significa…

CF: Nós aqui em Portugal, chamamos “ter uma cunha”. Conhecer alguém que que conheça alguém…

SK: Exatamente isso. Temos que ter isso, temos que ter dinheiro, porque se tu não tens influência, no ponto de vista de conhecer pessoas, tu tens que ter dinheiro suficiente para pagar uma vaga no serviço. Depois tens a questão de… se tu és… se tens boa aparência, porque aqui… embora isso já tenha reduzido um pouco, mas antes era muito patente saber se era um pouco mais clara, se és “mulata” se ficas mesmo bem para televisão. A boa imagem aqui significa ser mais clara, ter cabelos bonitos…

CF: Ainda hoje?

SK: Ainda hoje… não se fala abertamente, mas nós percebemos pela forma como as pessoas aparecem na televisão. São as mesmas e têm o mesmo padrão. Tu olhas para a tv, quem está lá? Há rostos, por exemplo, na televisão pública de Angola – tudo bem, fizeram carreira, estão lá há 30 anos e ainda sabem trabalhar – mas nós estamos há 30 anos a assistir à mesma pessoa a apresentar o jornal. Porquê? É só para um grupo de pessoas específicas e funciona sempre assim. Ainda que vejas algum rosto novo esse rosto tem ascendência em algum lado, tem alguma coisa lá atrás que facilitou este acesso. 

CF: Que outras barreiras mais existem?

SK: Nós tivemos aqui há alguns anos, um ano e meio ou mesmo dois anos, um escândalo em que um diretor de uma das televisões públicas se envolveu com uma série de funcionárias. Não é oficial, mas não há fumo sem fogo. Diz-se que era porque “se quiseres alcançar mais níveis, se quiseres entrar, tens que passar por isto que nós já chamamos “teste do sofá”. 

CF: O assédio sexual vocês chamam “teste do sofá”.

SK: Ou seja, tu nunca sabes como as pessoas entraram, mas algumas pessoas entram. Para as mulheres fica um pouco mais difícil, porque, como os homens já são os mais privilegiados… o facto de ser homem já facilita alguma coisa.  Depois outros critérios de avaliação: tem que ver se a mulher vai engravidar, se está gorda se está magra, se não sei o quê. Então quase sempre os homens já favorecem algum padrão para a contratação. E isso acaba por deixar a mulher em desvantagem. Há alguns portais que agora também com a era da internet há cada vez mais portais, que vão dando alguma abertura, para que pessoas novas, sangue novo, como falamos, consigam também entrar para o mundo da comunicação. Mas eu ainda acho que continua a ser um meio muito fechado, muito privilegiado, só para algumas pessoas. Se você nasceu assim só uma pessoa que nasceu num Cazenga e tem a mãe que vendia na praça e não sei o quê, podes conseguir, mas as tuas chances são mesmo muito reduzidas.

CF: Esta é mais ou menos a tua história, não é? 

SK: É exatamente isso.

CF: Mas tu conseguiste. 

SK: Eu consegui, mas eu às vezes fico meio que nós temos que admitir os nossos privilégios, mesmo quando viemos de um sítio muito baixo. Mesmo quando também nos faltou muito para conseguirmos alcançar. Porque eu quando olho para mim, em dez pessoas, na minha situação, provavelmente, duas conseguiram, uma conseguiu. Mais, às vezes, do eu tentar servir como exemplo de superação, eu sempre me questiono porque não poderíamos ser todas. Porque é que… sem essa coisa do muito sacrifício, que temos que lutar, temos que vencer barreiras. Porque é que têm de existir sempre essas barreiras? Ok, é fixe ter um exemplo. É bom saber que a pessoa quase que não tinha nada, não havia nenhum horizonte, mas caminhou, acreditou, conseguiu alcançou e tem hoje alguma visibilidade. Mas, entretanto, quantos de nós não conseguimos isso, porque não é fácil. Então a nossa luta é sobre todos nós podermos alcançar isso. Se as condições forem criadas, nós não temos de ser heróis.

 

 

 

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