“Também Estão No Mapa?” Esta pergunta foi colocada de 4 de dezembro de 2022 a 12 de março de 2023, a partir do jardim do Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, através de uma exposição concebida e coordenada pelo investigador e dinamizador cultural, António Brito Guterres. Uma pergunta que, muitas vezes, é feita a quem “insiste” em estar no mapa, mas não é legitimado para lá estar. Uma pergunta que é colocada à população negra e imigrante constantemente e à qual essa população nem sempre sabe como responder. “Lisboa é uma cidade que está muito segregada, muito segmentada, muito partida. Então, a exposição tenta dar outras vozes à cidade para a poder reconstruir com um discurso diferente”, afirma António Brito Guterres, revelando um dos propósitos daquele trabalho.
Em painéis que se podiam explorar no jardim do Museu de Lisboa, temas como “Identidades e representação”, “mobilidade leve”, “estigma nos media”, “memória e vida pós-colonial”, os casos de Talaíde/Tagus Park, “Curraleira e Castelo” foram desconstruídos pelas análises de Brito Guterres que, no dia em que a Afrolis lá esteve, se fez acompanhar de Airton Monteiro, morador do bairro de Chelas – “um daqueles territórios”. Ambos esclareciam as abordagens às temáticas apresentadas ao grupo de estudantes da Royal College of Art de Londres, que ouviam com entusiasmo e se atropelavam para analisar de perto os textos, as imagens e os mapas que ali se podiam ver.
“Os diferentes painéis ilustraram narrativas que se criam em torno de territórios específicos, no contexto de Lisboa, para subjugar a população negra. Portanto, temos preconceitos e pressuposições, que são as narrativas gerais que se associam a estes bairros e que numa busca no Google [como esclareceu Brito Guterres] também encontramos. Mas depois quando se move a busca sobre esses bairros para o Youtube ou comentários no Instagram, em que há uma intervenção direta das populações desses bairros, porque são elas que criam os conteúdos, os resultados são outros.”, resume Margarida Waco, arquiteta e professora responsável pela presença dos estudantes da Royal College of Art naquele espaço.
O exemplo da busca que se pode fazer no Google sobre diversos bairros em que os resultados corroboram narrativas negativas sobres esses territórios é revelador de como a intervenção direta das populações pode estimular, através dos afetos, uma maior participação no desenvolvimento de um território seja ele um bairro ou um país. Segundo o investigador e curador da exposição, alguns habitantes de bairros não conhecem ou raramente se referem ao nome oficial dos seus bairros – os nomes que aparecem nos registos – adotam preferencialmente nomes a partir dos quais os seus moradores construíram narrativas com as quais se identificam. Airton Monteiro, por exemplo, é do Bairro do Armador, em Chelas, mas a sua “zona” sempre foi a “Zona M” – nome não oficial daquele bairro de Marvila.
O próprio nome “Bairro do Armador” que evoca o imaginário da expansão, é um paradigma para a reflexão do investigador Brito Guterres, em que considera que “Lisboa é uma cidade pesada a nível do discurso e que tem muito imaginário de uma determinada perspetiva e parece que as outras pessoas não têm direito a esse imaginário. Na exposição quer-se mostrar essa desconstrução a partir de casos concretos de pessoas que trabalharam essa narrativa”.
Quando as pessoas se identificam com a narrativa do território em que vivem, a participação no desenvolvimento do mesmo é natural e voluntária. Daí a reconstrução de narrativas sobre Lisboa, para os que “surpreendentemente” também estão no mapa, ser algo fundamental.
“Porque a partir do momento em que eu tenho uma narrativa específica, isso condiciona quem está a fazer política pública. Isto quer dizer que as pessoas não participam na política pública. Por isso, se as pessoas na comunidade conseguirem construir narrativas sobre os seus territórios podem interferir na maneira como se faz política pública”, acrescenta Brito Guterres.
A restrição de alguns territórios no acesso a serviços de leve mobilidade, como o uso de trotinetes; falsas percepções sobre onde a maioria dos crimes é cometida; ilusões sobre onde e quem produz a música que mais se ouve; a disseminação de histórias que desumanizam nos media, são um cocktail para a não participação política dos grupos a quem essa violência se dirige.
Ao relembrar a inauguração da exposição, Guterres menciona que todos os mapas foram apresentados por pessoas que contribuíram para a sua criação. “Nós temos um olhar específico sobre a cidade, não só a nível histórico, imagético, da política pública. Queríamos saber como é que as pessoas, a partir das suas comunidades conseguem desconstruir essa ideia e darem outras narrativas sobre os seus territórios, e, a partir daí, também pensar a política pública – interferir.”
Enquanto docente, Margarida Waco avança que “gostaria que os meus alunos tivessem vindo mais cedo à exposição, para verem estes diversos exemplos, que poderiam informar as nossas maneiras de fazer pesquisa, de compreender a organização espacial, e também informar novas abordagens que nos permitem intervir nestes locais. Hoje a organização de espaços ainda está fortemente ligada a lógicas coloniais e seus impulsos. Com esta exposição, António Brito Guterres relembra que a cartografia, a arte de fazer mapas, é um posicionamento político, é uma ferramenta política. Mas, o que também entendemos desta exposição é que a cartografia é também um espaço de resistência”.
A exposição “Também Estão no Mapa?” integrava um projeto mais abrangente que Brito Guterres iniciou em janeiro de 2022 com o ciclo “Os mapas também o são”, no Teatro do Bairro Alto (TBA). O segundo momento aconteceu em setembro de 2022, no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, com “Os mapas fazemos nós”, com percursos guiados por moradores de quatro bairros (Curraleira, Charneca e Bairro Quinta Grande, Bairro do Portugal Novo e Bairro da Liberdade).