Trancistas em Lisboa: histórias de empoderamento e autoestima

As tranças não são apenas um estilo, são uma forma de arte e sempre foram muito populares entre as mulheres e homens. No Egito, por exemplo, os homens usavam tranças nas barbas como sinal de divindade e as mulheres, como indicativo do seu estatuto social. Mas as origens das tranças encontram-se na região da Namíbia, em África, por volta de 3.500 a.c.. Em muitas comunidades africanas, as tranças eram uma forma de identificação de cada grupo étnico. Os padrões das tranças eram também uma indicação da idade, estado civil, classe económica, classe social e religião. Essa função foi mantida por gerações e espalhou-se pelo mundo com a diáspora africana.

Trançar foi e é também uma forma de socializar,  já que, por ser um penteado que leva horas a fazer, as conversas e as trocas de conhecimento são muito comuns. Assim, os pais passavam o seu conhecimento aos filhos, e também é comum, as crianças, nas suas brincadeiras, trançarem-se umas às outras, aprendendo a fazer penteados básicos desde muito cedo. E foi assim que me tornei trancista. Aos 13 anos comecei a trançar as minhas primas e com o tempo passei a ser requisitada pelas vizinhas e a ganhar dinheiro com esse trabalho, sobretudo na época das festas. Ao terminar o ensino secundário decidi seguir a área de Jornalismo e passei a trabalhar menos como trancista. 

A minha experiência como trancista, na capital portuguesa, foi uma novidade, fazendo uma comparação com a minha experiência na Guiné-Bissau, onde não tinha que  explicar os cuidados a ter com os penteados e o porquê dos valores praticados.  Ao trançar clientes, em Portugal, muitas das vezes, tinha que explicar todo o processo, desde o preço, à manutenção passado pelos verdadeiros nomes dos penteados. “Quero tranças da Beyoncé”, diziam-me frequentemente. Não são “tranças da Beyoncé”, respondia e explicava que se tratava de um penteado que pertence a um grupo étnico africano chamado Fulani. Daí o verdadeiro nome do penteado ser “tranças fulani”, uma mistura de tranças soltas e corridas na parte de frente da cabeça.

Foto: Maria Abranches

Tânia Mamad, uma mulher empreendedora afrodescente, filha de pais moçambicanos, fez parte do primeiro grupo de rap feminino português dos anos 1980 e 1990, as Djamal. Este foi também o primeiro grupo de rappers a gravar em Portugal. Nas suas músicas já introduziam um conjunto de questões relacionadas com a condição feminina e identidade. Atualmente, a ainda rapper é também proprietária de um dos salões mais procurados de Lisboa, o The Secret Salon. O espaço é frequentado por todo o tipo de pessoas, desde mulheres e homens que querem um penteado prático para o dia-a-dia a demandas mais específicas,  como é o caso da influenciadora  e jornalista Londrina Georgina Lawton. “Ir trançar o cabelo no The Secret Salon lembra-me alguns lugares parecidos de Londres, e eu gosto da forma como elas trabalham de um jeito íntimo com o cabelo e a forma simpática com que elas mantêm a autoestima delas e do cliente durante horas.” 

Mas nem todos acolhem negócios africanos com o mesmo entusiasmo. “Com o fim do grupo Djamal, ao abrir um salão africano encontrei uma outra maneira de continuar a luta pela identidade e afirmação das pessoas afrodescendentes ou negras em Portugal. Enfrentamos muitas dificuldades como a aceitação dos colegas da área  e dos vizinhos, com comentários como ‘vai às pretas trançar o cabelo’ ”, partilha Tânia. 

Na altura [2014], em que abri o salão, não tínhamos muita oferta em termos de material para tratar o nosso cabelo e nem havia muitas lojas a venderem estes materiais, então as dificuldades vinham de todos os lados. A única coisa que me ajudou bastante a seguir com o negócio foi o apoio da minha família

 

Tânia Mamad

A empreendedora viajou até Londres para entender melhor o funcionamento do negócio dos salões africanos. “Na altura, em Londres, como em outras partes do mundo, estavam mais avançados na área do mercado africano”, explica.

No início do projeto, que arrancou em 2014, “uma das outras dificuldades, foi ter pessoas fixas no salão, porque precisavam de documentação e eu, na altura, não podia fazer contratos por estar no início do projeto. Então houve momentos em que fiquei sozinha no salão apenas com o apoio da minha mãe “, recorda. 

O problema da documentação foi também vivido por Aissatu Bari ou Aicha, como é conhecida no mundo das trancistas. “Quando cheguei a Lisboa, comecei a fazer tranças em casa, porque, pela falta de documentos, não podia arranjar um emprego”, lamentou. Com o passar dos anos começou a trabalhar, como independente, num salão na baixa de Lisboa, no Martim Moniz. 

Natural da Guiné-Bissau, começou a trançar os cabelos quando tinha 10 anos, depois de ter passado a infância a observar a avó.  “Foi graças às tranças que surgiu a oportunidade de viajar para Portugal”, lembra. Em 2005, Aicha chega a Portugal entusiasmada, mas também com um aperto no coração, “estava a sofrer por ter que deixar o meu filho para trás com a minha avó que me criou”. 

Em 2018, decidiu abrir o seu próprio espaço. No entanto, com a crise provocada pela pandemia Covid-19 acabou por fechar e voltou a trabalhar num espaço compartilhado, mas mantém o sonho de abrir um outro salão.  

O mercado de cabelo africano tem vindo a mudar e exige um sentido de adaptação aos desafios que vão surgindo. Tania Mamad recorda que “na altura [2014], em que abri o salão não tínhamos muita oferta em termos de material para tratar o nosso cabelo e nem havia muitas lojas a venderem estes materiais, então as dificuldades vinham de todos os lados. A única coisa que me ajudou bastante a seguir com o negócio foi o apoio da minha família”.

Em 2018, decidiu abandonar o sistema de atendimento habitual em muitos cabeleireiros africanos em que abria as portas e esperava que os clientes chegassem. “Comecei a trabalhar apenas com marcações. Foi muito difícil no início, mas hoje em dia, foi e é a melhor decisão que tomei em termos de organização para um negócio bem organizado e sucedido”, afirmou.  

A pesquisadora e trancista Mariana Desidério é afrobrasileira e, como muitos imigrantes em Portugal, sofreu a exploração do proprietário do salão onde ela trabalhou durante um ano sem ter contrato. Viu na Universidade uma forma para estar legalmente no país.  A viver na capital portuguesa há cinco anos, segundo as suas pesquisas, “as pessoas em Lisboa ainda não estão totalmente abertas a usar o seu cabelo de forma natural, mas são flexíveis. O uso de rastas em Lisboa ainda é visto com discriminação, especialmente se for usado por mulheres, enquanto é mais aceite quando usado por homens.”, explica.  

A proprietária do salão, Crespodara, lembra que não teve um início fácil.  “Em Portugal as brasileiras são vistas como esteticistas, não como trancistas. Eu trabalhei num salão durante onze meses só me davam oportunidade de trançar o cabelo quando faltava uma colega”. Mariana, falou da diferença entre ser cabeleireira e trancista. Segundo a profissional da arte de trançar, os cabeleireiros têm de estudar para fazer o que fazem, mas ser trancista “é um ato de herança” é uma tradição, que se segue.  A vida profissional de muitas das mulheres que entrevistámos e consequentemente a sua autoestima foram elevadas pelo facto de seguirem essa tradição. E posso dizer que também foi o meu caso.

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