Sobre a importância de conhecer as histórias de vida de pessoas negras

Quantas histórias de vida de pessoas negras o/a jovem leitor/a conhece? 

Durante séculos, eurocentricamente temos vindo a criar e a acessar narrativas em diferentes meios educacionais e culturais, formais e/ou não formais, sobre os povos africanos que foram escravizados a partir do século XV, bem como, sobre os seus descendentes, como se as suas histórias só tivessem pertinência, enquanto subalternos. Tais narrativas contribuíram e ainda contribuem com o atual estado de coisas, onde maioritariamente pessoas negras continuam a ser insultadas publicamente, humilhadas psicologicamente, violentadas fisicamente e patrimonialmente. Condenadas a viver em situações de pobreza extrema e privadas dos seus direitos fundamentais.

Devido à sistematização do comércio transatlântico através do regime escravocrata europeu, um dos mais cruéis crimes praticados contra a humanidade, mulheres negras e homens negros de diferentes territórios africanos, tiveram que criar estratégias de resistência às violências perpetradas contra os seus corpos nas Américas. 

Mulheres negras e homens negros de diferentes territórios africanos criaram estratégias de resistência às violências perpetradas aos seus corpos

Na América do Norte, algumas destas pessoas conseguiram aprender a ler e a escrever, apesar do acesso à aprendizagem da escrita e da leitura ser proibido a quem estivesse escravizado. Mas registaram as suas vivências através da escrita autobiográfica e conseguiram com que as suas narrativas fossem publicadas, através do movimento antiescravagista. De modo que, as slave narratives, tornaram-se um importante dispositivo na edificação da memória da resistência negra das pessoas afro-americanas, nos EUA, entre os séculos XVIII-XX, tendo contribuído para os principais debates sobre liberdade e escravidão naquele país, na Inglaterra e em territórios onde se falava a língua inglesa.

Frederick Douglass, William Wells Brown, Harriet Jacobs, Lucy Terry Prince, Louisa Picquet, entre muitxs outrxs, são personalidades da resistência negra afroamericana que todxs deveríamos conhecer, para que possamos compreender cada vez mais, sobre o porquê de, nos tempos correntes, e em territórios onde vigora o Estado de Direito Democrático, não podermos tolerar violências como o racismo e o machismo interseccionadas com outros “ismos”.

As slave narratives tornaram-se um importante dispositivo na edificação da memória da resistência negra das pessoas afro-americanas através do movimento antiescravagista

Mahommah Gardo Baquaqua foi a única pessoa africana, que tendo sido escravizada no Brasil e tendo sido comercializada e enviada para os EUA, no século XIX, escreveu uma autobiografia sobre as suas vivências, intitulada An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua, tendo conseguido publicá-la em 1854, em Detroit, nos EUA, durante o período de campanha abolicionista.

Harriet Tubman (1822-1913), foi uma abolicinista e ativista afro-americana

O método de escrita biográfico também tem contribuído muitíssimo para que possamos conhecer as histórias de vida de pessoas negras, mulheres e homens que tiveram enquanto projeto de vida, a dignificação da pessoa humana através da sua liberdade. A biografia Scenes in the Life of Harriet Tubman, que foi autorizada por Harriet Tubman — um dos maiores ícones da resistência negra nos EUA, contemporânea de Frederick Douglas —  foi publicada em 1869, pelas mãos da sua amiga Sarah H. Bradford, que zelava para que Tubman pudesse sobreviver economicamente.

Diferentes obras têm vindo a ser publicadas nos contextos territoriais, Brasil e Portugal, a fim de colmatar as invisibilidades sobre os importantes contributos que personalidades negras, mulheres e homens nos têm deixado enquanto herança intelectual, sociocultural, artística, civilizatória. No Brasil, a Enciclopédia Negra Biografias Afro-Brasileiras, uma obra que reflete criticamente sobre a história do Brasil, do período da escravidão e da pós-abolição da escravatura, traz registos biográficos de 550 pessoas negras, que viveram em diferentes regiões brasileiras e que contribuíram através das suas existências e dos seus feitos, para a construção da história do país. Concebida pelas mãos do historiador Flávio dos Santos Gomes, do artista visual Jaime Lauriano, e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, e com a contribuição de 36 pessoas negras, artistas, a obra foi publicada em 2021.

Mário Domingues (1899-1977), jornalista e escritor português, foi um dos primeiros pioneiros pela igualdade africana em Portugal.

Nós, por cá, tivemos no ano passado, uma feliz publicação da obra Mário Domingues A Afirmação Negra e a Questão Colonial Textos 1919-1928, seleção e ensaio, pelas mãos do investigador José Luís Garcia, sobre a vida do escritor africano/português negro Mário Domingues, que surpreendentemente nos deixou um riquíssimo legado através da escrita de crónicas, ficções, artigos, reflexões sobre a sua existência e a existência dos seus contemporâneos, pessoas negras e pessoas brancas, durante a efervescência inicial do movimento colonialista português tardio.  

Importa que as diferentes histórias das resistências negras possam ser aprofundadas através do acesso de todxs ao conhecimento das vozes na primeira pessoa, que viveram ou que ainda vivem sob o jugo de violências atrozes. Que as suas histórias possam continuar a ser devidamente registadas, publicadas, estudadas, debatidas e compreendidas. E que possamos também nós, escrever e reescrever as nossas histórias, de modo a que as mazelas resultantes de uma educação secular e violenta, possam ser devidamente transformadas. 

*A colunista utiliza linguagem inclusiva.

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