Bom dia, boa tarde ou boa noite jovem leitor (a).
Refletir sobre a celebração do 25 de Abril, a partir de um olhar diaspórico negro, no feminino, do meu ponto de vista, significa buscar compreender sobre os modos como hoje vivemos a liberdade, fruto dos movimentos de libertação em África (territórios colonizados tardiamente, por Portugal) e dos movimentos antifascistas portugueses, mas principalmente buscar compreender sobre como a reprodução de violências nos corpos de mulheres e crianças são consequências da educação colonial de que todxs nós somos herdeirxs.
Vejamos. Em Portugal, há mulheres que não têm o direito a viver a maternidade com plenitude. Há crianças que estão a crescer com sérios problemas de saúde, devido às privações maternas institucionais, através dos cortes dos laços maternos – afetivos com as suas mães, que passam de principais referências afetivas nas suas vidas, para meras desconhecidas. Há crianças a crescer em instituições, mulheres a lutar entre gigantes para provar que não cometeram crime algum, a fim de terem os seus filhos de volta. Quando conseguem finalmente que se faça justiça, suas forças já foram exauridas a ponto de serem vencidas por doenças como o cancro. Há crianças que integram grupos sociais que foram racializados historicamente, que perdem por completo as suas identidades culturais, dado que suas mães, humilhadas, torturadas psicologicamente e empobrecidas institucionalmente, têm de ir embora de um país onde não nasceram, onde o acesso à justiça com uma defesa digna muitas vezes é-lhes negada, embora tenham todo o direito de cá estarem, devido aos factos históricos entre o país de acolhimento (Portugal) e os países de nascimento (Brasil/África). Há mulheres a serem consideradas nos tribunais portugueses, “alienadoras parentais”, uma lógica pseudocientífica importada do Brasil, que por sua vez, foi importada dos EUA. Há crianças que não são devidamente protegidas pelas CPCJs (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, instituição similar ao ECA no Brasil), porque de algum modo falham em casos onde homens/pais detém capital financeiro e posições de poder face às mulheres/mães, vítimas de suas violências machistas e, por conseguinte, de violências institucionais (Associação Civil AMARCA, Epifanias Artes: Audioblogue com e para pessoas que sonham igualdade, Rede Revibra, Associação Civil Mulheres de Braga, UMAR – Alternativa e Resposta).
O caso paradigmático da cidadã portuguesa Anabela Caratão, artista plástica, é preocupante e deveria ser um alerta para todas as mulheres, na sua diversidade, que são mães ou que pretendem ser mães em Portugal. Caratão sofreu privação materna institucional quando seus dois filhos gémeos tinham quatro meses de vida, após ter denunciado que era vítima de violência doméstica. Em 2021, o TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, processou o Estado português pelo facto de Anabela Caratão ter sido impedida institucionalmente de conviver com os seus filhos gémeos. Mas, apesar desta condenação, até aos dias de hoje, é facto que mãe e filhos não estão juntos.
Há ainda crianças que vêm para Portugal, acompanhadas das suas mães para receberem tratamentos de saúde, ao abrigo do Tratado de Saúde entre Portugal e os países africanos ex-colonizados, e que acabam por ficar sem as suas mães. Há mães brasileiras que foram ou que ainda são radicalmente separadas institucionalmente de seus filhos e filhas. Deveríamos sempre relembrar o caso hediondo, onde uma mulher/mãe africana, foi coagida institucionalmente, a proceder a uma cirurgia para fazer uma ligação das suas trompas de Falópio, sob pena de não poder exercer a maternidade com os seus filhos. Este foi o primeiro caso de processo por parte do TEDH contra o Estado português, onde Liliane Melo, uma cidadã de origem cabo-verdiana, tornou-se um exemplo inequívoco de que a prática de privação materna institucional, decorre nos tempos atuais.
A prática de privação materna institucional decorre em diferentes territórios e as suas lógicas são bem semelhantes: culpabiliza-se a mulher por toda e qualquer fragilidade que tenha, discriminando-a nos âmbitos do género, da classe social, da nacionalidade, da origem étnico-racial, opção sexual, religião, entre outras categorias, através da normatividade de documentos escritos com teores discriminatórios, acríticos, quanto ao género e à salvaguarda dos direitos humanos.
Jovem leitor (a), considero importantíssimo que possamos honrar as nossas existências enquanto seres humanos do nosso tempo histórico, reconhecendo a urgente necessidade da erradicação de práticas discriminatórias contra mulheres! Autores como Luís Gama (afro-brasileiro) e Mário Domingues (africano/português) foram vítimas da prática de privação materna institucional e sofreram profundamente em suas almas com o apagamento das existências maternas em suas vidas. Vale muito a pena conhecer as suas histórias de vida, bem como as suas obras.
Historicamente compreende-se que as mulheres negras foram os seres humanos mais torturados: traficadas em massa, violadas sexualmente, escravizadas para o trabalho, tornadas escravas reprodutoras para a manutenção da sociedade esclavagista e do desenvolvimento capitalista. Mulheres e crianças negras continuam a sofrer privação materna institucional, seja através do Estado que institucionaliza as suas crianças, devido a vulnerabilidades sociais como a “pobreza/negligência”, e/ou através dos genocídios das populações negras que vemos decorrendo no Brasil ou nos EUA, através das violências policiais.
Mulheres, na sua diversidade cultural, têm sofrido secularmente tal prática. As crianças e mulheres judias no século XV, sofreram privação materna institucional por parte do Rei D. João II, pois deu ordens para a retirada das crianças de suas mães e famílias, para lhes enviar para São Tomé e Príncipe, objetivando a sua colonização. Crianças e mulheres indígenas, no Brasil, após a invasão e posterior ocupação europeia, a partir de 1500, foram separadas, a fim de que as crianças fossem “civilizadas”, “cristianizadas” ou ainda “estudadas”. O mesmo decorre atualmente no Brasil, com crianças indígenas, a serem retiradas de suas mães, para serem “evangelizadas” e “protegidas” contra a “pobreza”.
Durante a Segunda Grande Guerra Mundial, mulheres e crianças, judias, da etnia cigana, brancas europeias, negras europeias, com deficiências físicas ou mentais, vivenciaram privação materna institucional — a guerra é uma instituição — e foram enviadas para campos de concentração, onde foram violadas sexualmente, tornadas trabalhadoras escravas, utilizadas como experiências científicas, assassinadas em câmaras de gás ou fuziladas.
Os traumas sofridos por crianças e mães aquando de privações maternas institucionais já foram devidamente estudados, tendo como referência obras de John Bowlby, psiquiatra e psicanalista britânico, a exemplo do seu Relatório para a ONU, em 1954, após a Segunda Grande Guerra Mundial, sobre os cuidados maternos e a saúde mental das crianças. Bowlby salienta-nos sobre a existência de estudos de observação direta que comprovavam que quando a criança se via privada da relação materno-afetiva o seu desenvolvimento era quase sempre retardado fisicamente, intelectualmente e socialmente e que podiam aparecer sintomas de enfermidades psicológicas e físicas, além da possibilidade de desenvolvimentos de problemas na saúde mental das crianças por toda a vida.
Nas últimas décadas, Portugal importou do Brasil, uma pseudociência conhecida como “Alienação Parental”, que tem sido utilizada por homens/pais agressores, para revitimizar mulheres/mães nascidas em Portugal ou mulheres/mães imigrantes brasileiras e africanas, vítimas de violências machistas, no âmbito das regulamentações parentais nos tribunais de família e menores, retirando-lhes os filhos e filhas.
Importante salientar que o termo “Alienação Parental” consubstancia uma “síndrome” (SAP) que surgiu na década de 90 do século XX, cujo autor chama-se Richard Gardner, um psiquiatra norte-americano, pedófilo, que se suicidou, em 2003, para não ser preso pela CIA. Esta pseudociência foi legitimada no Brasil através da Lei nº 12.318/2010 (Lei de Alienação Parental), e se encontra em vigor, até os dias atuais. Decorre que nos EUA, a American Medical Association e a American Psychological Association nunca reconheceram a existência de tal síndrome e ela não consta como um transtorno psiquiátrico, do Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), da American Psychiatric Association. Centenas de milhares de mulheres/mães brasileiras têm vindo a fazer denúncias coletivas nacionalmente e internacionalmente, sobre os modos como têm sido revitimizadas através da Lei de Alienação Parental, quando denunciam às autoridades competentes, violências domésticas ou abusos sexuais de crianças: perdem radicalmente as guardas das crianças ou são coagidas a aceitar guardas partilhadas com homens/pais/agressores.
O contexto social brasileiro é tão calamitoso, que em 4 de Novembro de 2022, peritos em direitos humanos da ONU apelaram à governança democrática brasileira, liderada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (após 4 anos de barbárie de um governo anti – democrático, contra as mulheres e crianças no Brasil) “para combater a violência contra as mulheres e meninas e revogar a lei da alienação parental”.
O Parlamento Europeu (Resolução do Parlamento Europeu, de 6 de Outubro de 2021, sobre o impacto da violência doméstica e do direito de custódia nas mulheres e nas crianças) reconhece as considerações de
“duas das instituições mais prestigiadas em matéria de saúde mental, a Organização Mundial da Saúde e a Associação Americana de Psicologia que rejeitam a utilização da denominada síndrome de alienação parental e conceitos e termos semelhantes, uma vez que podem ser utilizados como estratégia contra as vítimas de violência e pôr em causa as competências parentais das vítimas, rejeitando a sua palavra e ignorando a violência a que as crianças estão expostas”
e a recomendação da Plataforma EDVAW, que considera que “as acusações de alienação parental proferidas por pais abusivos contra as mães devem ser consideradas pelas agências e intervenientes públicos, incluindo os que decidem sobre a guarda dos filhos, como uma continuação do poder e do controlo”. Embora Portugal pertença ao território europeu, sabe-se empiricamente que a SAP, ainda não se encontra em desuso nos Tribunais de Família e Menores!
Jovem leitor (a), a prática de privação materna institucional trata-se de uma prática social secular, colonialista, sexista, racista, xenófoba, machista, capitalista: subjuga mulheres e crianças consideradas inferiores ao status quo vigente, lhes retirando por um lado, a possibilidade da autodeterminação contra violências machistas e por outro lado, a salvaguarda das crianças junto às suas principais referências afetivas, que maioritariamente, são as suas mães. Pode destruir radicalmente o estabelecimento de laços materno-afetivos, bem como, das identidades culturais das crianças. Trata-se de violência de género e de violência contra as crianças.
Reconhecer e erradicar a prática de privação materna institucional, em Portugal, é fundamental porque estaremos a solucionar algumas das principais problemáticas sociais do nosso tempo: reprodução social de práticas discriminatórias que potencializam a pobreza no feminino e na infância, a continuidade de violências machistas e as desigualdades de género, étnico-raciais e sociais. Estaremos a reconhecer dívidas que nos são históricas, com mulheres e crianças que integram grupos sociais que foram racializados historicamente e com mulheres e crianças no geral. Mulheres têm de ter o direito à autodeterminação contra todos os tipos de violências. Crianças não são “adultos em miniatura”, são seres humanos em pleno desenvolvimento, têm de ter o direito a crescer saudavelmente.
Jovem leitor (a): ao 25 de Abril que ainda há-de vir!