Texto de Shahd Wadi publicado em 2021, no Gerador
“I was born a Black woman
and now
I am become a Palestinian.”
June Jordan
Há poucos dias um grupo de trabalho das Nações Unidas sobre Pessoas de Ascendência Africana em Portugal mostrou-se surpreendido com as primeiras conclusões de um relatório sobre o racismo e a discriminação racial, que irá entregar ao governo português. Surpreendido com a brutalidade policial, a negação da existência de racismo no país e a continuação de um passado colonial com as suas narrativas e linguagens racistas. Este relatório trouxe à minha memória um outro, também sobre uma opressão relacionada com colonialismo e racismo. É o relatório da Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental das Nações Unidas (ESCWA), que afirmava que Israel exerce políticas de apartheid. Na altura, o relatório foi retirado após a pressão dos Estados Unidos, sendo que a sua responsável se demitiu em protesto.
É-me impossível não lembrar de actos de opressão cometidos na Palestina pelas forças da ocupação israelita quando testemunho incidentes racistas em Portugal. Foi precisamente disso que falei na conferência Encarceramento e Sociedade, na Universidade de Coimbra, há dois anos: as balas de borracha, quase diariamente utilizadas por Israel, pareciam-me as mesmas que atingiram as pessoas que, em 2019, protestaram na Avenida da Liberdade contra a ação policial racista no bairro de Jamaica. A cara da palestiniana Mays Abu Ghoush, desfigurada pelas forças israelitas durante a sua detenção administrativa, colou-se na minha cabeça à de Cláudia Simões, igualmente desfigurada pela polícia no carro-patrulha durante a sua detenção. Continuo a fazer esta ligação quando, ao interromper a escrita deste artigo para ler as notícias sobre as greves de fome dos detidos palestinianos, os meus olhos se cruzam com um cartaz na parede do café sobre a recente manifestação em solidariedade com Danijoy Pontes, um jovem de origem são-tomense morto no Estabelecimento Prisional de Lisboa em circunstâncias pouco claras. Lembro-me de Bruno Candé quase todos os dias quando vejo os muitos “Brunos” palestinianos mortos porque o são.
O livro A Liberdade é uma Luta Constante, de Angela Davis (organizado por Frank Barat e traduzido para português por Tânia Ganho), traça a linha entre as lutas anticoloniais palestinianas e antirracistas, especialmente nos Estados Unidos. Quando, em 2014, Michael Brown foi baleado pela polícia, causando uma onda de protesto em Ferguson contra o racismo policial, as palavras de ordem dos manifestantes foram “De Ferguson à Palestina, a ocupação é crime”. Ao mesmo tempo, os activistas palestinianos encheram as redes sociais com táticas para ajudar os manifestantes de Ferguson a proteger-se das bombas lacrimogénias. Ferguson, segundo Davis, ensinou-nos que os assuntos locais têm ramificações globais.
Não só há ligação entre as lutas de libertação palestiniana e negra, como também entre os diferentes actos de violência que criminalizam as pessoas tendo por base critérios étnico-raciais. É uma estratégia de militarização de diferentes sociedades, integrando um projecto económico que encontra na punição um produto rentável. Para manter essa rentabilidade, é necessário criar um “inimigo” através de disseminação de um discurso sobre “os perigos” externos e internos que ameaçam a sociedade. Neste discurso, uma pessoa “palestiniana”, “negra”, “cigana”, “muçulmana”, “imigrante” ou “refugiada” cabe numa categoria “naturalmente violenta”.
Talvez por isso, a meu ver, ligar o racismo em Portugal à ocupação na Palestina e resistir simultaneamente contra ambos é um acto feminista interseccional que vai para além do género, lutando contra o sexismo ao mesmo tempo que luta contra as alterações climáticas, o capitalismo, o racismo e o colonialismo. É um feminismo que não só nos diz que o “pessoal é político”, mas também nos convida a repensar as categorias. É uma maneira de ver o mundo. Ambos, o feminismo palestiniano e feminismo negro, demonstraram que a identidade, o sexo, a classe, a nacionalidade e o corpo são inseparáveis. Estes feminismos empenham-se num exercício constante de interseccionalidade, relembrando que, quando vemos uma repressão racista de um polícia português, deveríamos também pensar na opressão de uma palestiniana por um soldado israelita. Neste tempo verbal impossível (nos versos em epígrafe), “I am become (Eu sou tornei-me)”, June Jordan, uma mulher negra norte-americana, assume a sua identidade palestiniana. É neste mesmo lugar intangível que a poeta palestiniana Suheir Hammad assume a sua negritude, ao escrever o seu livro born palestinian, born black (1996), o título emprestado para este artigo. A identidade negra-palestiniana existe para as duas poetas como um espaço de solidariedade, mas também como lugar de resistência para reclamar a partir da sua marginalidade comum. Trata-se de uma posição política, uma reivindicação das suas identidades e, ao mesmo tempo, uma recusa de identidades fixas. Assumem-se como palestinianas negras sem o ser. Hoje, na minha opinião, é necessário tornarmo-nos negras-palestinianas e palestinianas-negras, mesmo sabendo-o só ser possível no poema.