Bom dia, boa tarde ou boa noite, jovem leitor (a),
Cresci sem acesso a televisão em casa até os meus doze anos de idade. Mas lá em casa tinha rádio. De tanto escutar a rádio, me vi ainda antes de completar os 12 anos, dentro de um estúdio, cantando “Aquarela”, música que Toquinho, artista brasileiro, gravou em Itália, em 1983. Acabei por ganhar o primeiro prémio, mas não pude retornar ao estúdio para recebê-lo, por conta de questões familiares, que não me lembro exatamente quais foram. Só sei que a experiência de cantar na rádio me marcou profundamente. Cresci numa casa com um quintal repleto de animais, insetos, árvores e coqueiros. Jogava gude (berlinde), de vez em quando ia com o meu pai lançar o papagaio, achava incrível vê-lo dançar com a maestria do vento. Tive muitos legos que o meu pai me presenteava e inventava monólogos e diálogos entre os bonequinhos. Sempre gostei de brinquedos em miniatura. Construía e desconstruía cenários e mais cenários… tive poucxs amigxs e eram pessoas que quando estávamos juntas nos divertíamos profundamente, a celebrar a vivência da infância com comidinhas servidas em pratinhos: salada de folhas de língua de vaca com carambola ou banana, acompanhada de limonada ou sumo de laranja ou ainda vitaminas de banana ou abacate. Alimentos que eram cultivados no quintal lá de casa. Brinquei também com pedras, palitos de picolé (variedade de sorvete), tampinhas de refrigerantes, copos, linhas, canudos, bambolês (arcos), bonecas, quebra-cabeças… cresci sem ter acesso a jogos eletrónicos. Recordo-me que tive um tamagotchi durante a minha pré-adolescência e o coitado do bicho virtual que eu tinha que dar de comer, acabou por morrer, porque eu não tinha tempo suficiente para lhe dedicar. Recordo-me que foi um evento triste, mas não o enterrei como uma grande maioria de crianças que andaram a enterrar os tamagotchis após as suas mortes! Eu gostava muito de ler, lia em voz alta que era para ouvir a minha própria voz e gostava de fazer experimentações vocais e corporais. Quase nenhuma das minhas colegas de escola conheciam este meu lado criativo, na escola tentava sempre passar desapercebida. Mas não passava. Éramos poucas meninas negras e assim todos os olhos, por mais que não quiséssemos, estavam sempre a nos fitar.
Ao contrário do tempo em que cresci, onde crianças e jovens, mesmo que estivéssemos a brincar sozinhxs, tínhamos tempo livre e diferentes modos para exercitarmos a imaginação e a criatividade, atualmente vivemos num mundo onde crianças e jovens mais ou menos privilegiados se trancam em quartos ou em salas e sucumbem diante de uma infinitude de jogos eletrónicos. De acordo com o Professor Valdemar Setzer (Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística – IME, USP), o uso indevido de jogos eletrónicos pode ser prejudicial, especialmente na infância. Entre muitos dos fatores prejudiciais ao desenvolvimento holístico de crianças e jovens, estão a indução dos jogos eletrónicos à distração e o estímulo à agressividade. O acompanhamento dos adultos às atividades de crianças e jovens é fulcral, uma vez que quanto mais cedo uma criança tiver acesso a jogos eletrónicos sem supervisionamento, mais facilmente desenvolverá vícios e consequentemente, problemas de saúde.
Embora uma grande maioria de pessoas estejam preocupadas com a sustentabilidade financeira familiar no dia-a-dia, importa que comecemos a nos consciencializar urgentemente sobre como crianças e jovens estão a ser expostas a jogos eletrónicos. Setzer, ressalta: “As famílias deveriam se conscientizar. Muitas vezes eles dão esses aparelhos a uma criança por comodismo, porque ela fica entretida e não incomoda. Os pais colocaram seus filhos no mundo para terem comodismo?”.
Em se tratando da falta de letramento racial que ainda temos em Portugal, ou seja, da falta de mecanismos pedagógicos, artísticos, entre outros, que visem desconstruir modos de pensar e agir discriminatórios que têm vindo a ser naturalizados secularmente, podemos estar a potencializar o fortalecimento do racismo sistémico, estrutural e institucional, negligenciando as gerações de crianças e jovens atualmente, através destas lacunas. As regras de conduta quanto a não discriminação e a não-violência, nas plataformas de comunicação e de compartilhamento como Discord e Twitch quase nunca são respeitadas em milhares de grupos onde crianças e jovens se encontram virtualmente.
Erin Ashley Simon, uma influencer, radialista e comentarista afro-americana, ex-jogadora de futebol, salienta que o racismo e o sexismo são violências pelas quais passou e passa nos mundos dos e-Sportes eletrónicos e gamers. Simon acredita que é possível transformar comportamentos nestas indústrias, desde que haja diálogo e empenho para a mudança. Ela já foi alvo de xingamentos através de palavras depreciativas na plataforma Twitch.
No Brasil, há duas semanas, jovens foram presos, pelo fato de terem formado grupos dentro da plataforma Discord, que fomentavam atos criminosos como: sequestro de meninas, misoginia, racismo, estupro e transmissões da violência online, violência contra animais. Provavelmente as famílias das vítimas desconheciam que elas tinham contato com os jovens agressores e as famílias dos jovens agressores desconheciam que eles estavam envolvidos em atos criminosos. Em algumas das reportagens jornalísticas, que se encontram em canais do Youtube, observa-se que há jovens agressores que parecem não compreender sobre a gravidade dos seus atos.
Em Portugal, se por um lado, a indústria dos e-Sports se desenvolveu bastante durante a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, gerando mais jogadores e lucros com a venda de jogos, por outro lado, muitas famílias têm vindo a enfrentar situações de vícios em jogos eletrónicos, por parte de crianças e adolescentes, tendo que recorrer à ajuda especializada. Expressões misóginas, racistas, xenófobas circulam nos ambientes virtuais e crianças e jovens vão reproduzindo mimeticamente tais aprendizagens, sem que tenham a oportunidade de refletir criticamente sobre tais ações.
Este parece-me ser um momento crucial…
Jovem leitor (a), sem sensibilizações artísticas, sem pedagogias alternativas, sem auscultações de vozes nunca antes auscultadas, sem os reconhecimentos das barbáries coloniais, sem debates participativos sobre os nossos modos atuais de vida, haverá caminhos construtivos?