Se por um lado se nega a humanidade a pessoas negras, às mulheres negras nega-se a sua feminilidade. É sabido que as categorias de género e de raça são socialmente construídas e que os seus padrões se baseiam em ideais heteronormativos, patriarcais e que promovem a branquitude. Ou seja, o lugar da mulher negra dentro destes padrões é colocado em xeque e esse facto faz ecoar a reflexão de Sojourner Truth que, na Convenção dos Direitos da Mulher de 1851, realizada em Akron, Ohio, lançou a pergunta, no que é atualmente reconhecido como um dos mais famosos discursos abolicionistas e sobre os direitos da mulher na história americana: “Ain’t I a Woman?” [Não serei eu uma mulher?]. Dizia um excerto do texto:
Aquele homem ali diz que as mulheres têm de ser ajudadas a entrar em carruagens, a passar por cima de valas e a ter o melhor lugar em todo o lado. Nunca ninguém me ajuda a entrar em carruagens, nem a passar por cima de poças de lama, nem me dá o melhor lugar! Não serei eu uma mulher? Olhem para mim! Olha para o meu braço! Já lavrei e plantei, e juntei em celeiros, e nenhum homem me conseguiu dirigir! Não serei eu uma mulher? Posso trabalhar tanto e comer tanto como um homem — quando consigo — e suportar a chibata também! Não serei eu uma mulher? Dei à luz treze filhos e vi quase todos serem vendidos como escravos e, quando gritei com a dor da minha mãe, só Jesus me ouviu! Não serei eu uma mulher?
O que responder a esta pergunta perante as circunstâncias que colocam a mulher negra no espectro da não-mulher; quando esta pergunta é colocada à luz dos padrões da branquitude que exclui tudo o que não é o seu ideal?
A pressa com que se quer colocar mulheres negras numa prateleira que as aproxime dos homens é um fenómeno que me fez lembrar um stand-up set do, muitas vezes controverso, comediante norte-americano, Paul Mooney, falecido em 2021. Dizia Mooney numa das suas hilariantes apresentações frases como: “Eles roubam-nos tudo. (…) Por que não nos deixam ficar com nada? (…)”E há com cada coisa a sair da boca de pessoas brancas… Nem dá para acreditar nessa #%&*!”
Melhor seria ver o set, mas remeteu-me a vários momentos em que senti que a feminilidade da mulher negra também continua a ser alvo de tentativas de roubo e a argumentação é invariavelmente inacreditável.
Lembro-me da patinadora artística francesa, Surya Bonaly: três vezes medalhista de prata do Campeonato Mundial (1993–1995), conquistou cinco medalhas de ouro e uma de prata em campeonatos europeus e foi eneacampeã do campeonato nacional francês; participou várias vezes em Jogos Olímpicos de Inverno (1992, 1994 e 1998) e foi a única patinadora olímpica a realizar o salto mortal de costas, aterrando em um pé, no Jogos de Inverno de 1998 em Nagano, no Japão.
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Os relatos que acompanhavam as suas apresentações falavam em movimentos “mecânicos”, “sem a graça e elegância que a ‘patinadora branca tal’ apresenta”, “força bruta”, “uma máquina de fazer saltos”. Comentários não muito diferentes, apenas adaptados ao desporto praticado, foram recebidos constantemente ao longo da sua brilhante carreira por Serena Williams, tenista norte-americana. Este é outro caso bastante claro e conhecido de ataques ferozes a uma mulher negra por não corresponder aos padrões de género impostos a partir de uma branquitude fragilizada que lhe arrancava o tapete dos pés no que respeitava pisar o solo destinado a verdadeiras mulheres, porque elas, supostamente, não têm aqueles braços nem aquela força no campo de ténis.
Christine Mboma e Beatrice Masilingi foram outras duas atletas negras a serem consideradas inelegíveis para competir numa corrida nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, devido a níveis naturalmente elevados de testosterona.
Um exemplo notório fora do desporto é o de Michelle Obama, advogada afro-americana e antiga primeira-dama dos EUA (2009-2017), enquanto mulher do primeiro presidente negro do país, Barack Obama. Na altura, debatiam-se os seus largos e musculados ombros, que exibia com elegância, em fóruns em que se podiam ler comentários como: “Não há nada mais feio do que braços masculinos e musculados numa mulher. A Sra. Obama devia escondê-los em vez de os exibir”.
O mito da mulher negra forte é alimentado por estas estratégias de exclusão de padrões de género, construídos, sim, mas que regulam as nossas interações sociais. O protótipo de feminilidade, a vulnerabilidade, a fragilidade, ou um conjunto de características que tornam a Mulher passível de ser considerada para a constituição de uma família, passível de ser protegida, fazendo parte daquele grupo dos primeiros a serem resgatados em caso de catástrofes, acidentes e afins, nada disso se aplica à mulher negra sem primeiro haver um momento de escrutínio. E é relançada a pergunta “Será ela uma mulher?” Mas nós sabemos quem somos.