Na semana em que se celebra o Dia Internacional dos Afrodescendentes (31 de Agosto), relembro a entrevista que fiz com a, agora, ex-deputada Joacine Katar Moreira (JKM), que, na altura, estava a terminar de escrever a sua tese de doutoramento. A tese resultou no livro Matchundadi – Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau (2020) em que fala sobre masculinidade e política na sociedade guineense. Na nossa entrevista, discutimos o termo “afrolisboeta”.
A Afrolis começou as suas atividades enquanto um audiobloque (hoje assume-se como podcast) em que a frase de abertura dos programas era: “Afrolis, o audioblogue onde pode saber mais sobre afrolisboetas a viver em Lisboa”. Fiquei, por isso, intrigada quando o termo “afolisboeta” foi questionado por JKM numa intervenção que fez no festival Rotas e Rituais, em 2015, realizado no Cinema São Jorge. Eu estava na audiência e ouvi-a enquadrar o termo de forma crítica, ao perguntar no título da sua intervenção “Será possível ser afrolisboeta?”. Quis entrevistá-la. Aceitou o convite e discutimos o termo.
Nessa altura, fazia um ano desde o início do projeto Afrolis. Falávamos constantemente sobre afrolisboetas no podcast, e essa pergunta nunca se tinha levantado. Nunca tinha questionado essa identidade, talvez por querer que ela fosse uma realidade. Mas que condições seriam necessárias para que isso acontecesse? Essa discussão concreta não estava a ser feita. Estava a ser sugerida através das várias entrevistas e perspetivas apresentadas por vivências individuais, que revelavam possibilidades para a sua materialização, mas a discussão sobre o processo da sua formação não estava a ser escrutinada. A JKM propôs-se a fazer isso na conferência acima referida e convidei-a a partilhar a sua visão em entrevista.
Apresentava-se como sendo uma mulher, feminista, africana, investigadora associada do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL. Encontrava-se a finalizar a tese de doutoramento em Estudos Africanos sobre a construção de masculinidades e feminilidades e o seu impacto na estabilidade ou na instabilidade política na Guiné-Bissau, o seu país de origem. Joacine veio para Portugal com oito anos e ficou. É portuguesa e chegou a ocupar um lugar na Assembleia da República enquanto deputada entre 2019 e 2022. Mas como a própria constatou, independentemente de estar aqui, de ter nacionalidade portuguesa, o facto é que, e isto é algo que acontece a muitos africanos, afrodescendentes e imigrantes, somos constantemente questionados acerca da nossa origem. Muitos de nós por falta de paciência, por preguiça, por rebeldia, por convicção ou por cansaço acabamos por escolher dizer que somos dos países de origem dos nossos pais: “sou angolana”. Alguns ficam-se pelo meio e dizem que são “luso-país origem dos pais”: “sou-luso guineense”. Mas outros há que dizem se à margem com o continente e com a experiência partilhada de povos negros em todo mundo e adotam a identidade afrodescente. Mas num mundo cada vez mais global, há também uma necessidade de nos apegarmos a algum tipo de especificidade das várias identidades às quais temos acesso. Um exemplo é Taiye Selasi, escritora e fotógrafa de ascendência ganesa e nigeriana, nascida em Londres e criada em Boston, que vivia entre Roma e Berlim quando, em 2015, declarou na sua Ted Talk: “Não me perguntem de onde venho, perguntem-me onde sou local?”. O certo é que as várias influências da experiência vivida por Taiye Selasi não lhe deixam muita escolha a não ser escolher adotar a “origem” do local em que se encontra num determinado momento, porque senão seriam demasiadas escolhas. E poucos são os que querem desdobrar a sua árvore genealógica em conversas com estranhos.
Termos como afrolisboeta, afroparisiense, afrolondrino, “afro-cidade-que-seja” são bastante usados e fazem parte da construção de identidades da diáspora africana.
Mas o termo “afro” pode significar muita coisa e Joacine Katar Moreira alertava na nossa entrevista para o facto de a expressão poder ser utilizada “como uma forma de racismo subtil, “uma forma de identificarmos a cor da pele de alguém”, mas também como “uma forma moderna e pós-colonial de um africano que não é somente um africano, que é um africano internacional, porque ele pode ser afrolisboeta, pode ser afroparisiense, pode ser afro-alemão”. Mas a questão, para JKM, é que este “afro-cidade-que-seja”, apesar de em si não ser negativo, traz aspetos como a homogeneização de um continente caracterizado pelo multiculturalismo. A ex-deputada compreende também e celebra o facto de o “afro” significar igualmente, e especificamente para pessoas negras que adotam o termo para as suas identidades, celebração, reconhecimento de um passado histórico comum e a possibilidade de construção de um futuro melhor. Aqui estaríamos perante o “afro” de afirmação da africanidade.” E este é o “afro” que marcos como a Década Internacional dos Afrodescendente e o Dia Internacional de Afrodescendentes procuram celebrar. Mas não devemos parar de questionar: “Não podem os descendentes dos africanos serem apenas lisboetas?”, perguntava ainda JKM, porque a sua perceção do termo afrolisboeta e afins é de que “este afro é usado como uma forma de afirmação não apenas de uns cidadãos face a outros, mas também é uma oferta quase de integração, de inclusão de indivíduos que não necessitam de ser incluídos, porque eles fazem parte.”
Esta reflexão é um exercício necessário para a nossa auto-definição (de grupo e individual) consciente da sua constante mutabilidade.
Para ouvir a entrevista [Áudio 61 – Questionando Identidades Afro com Joacine Katar].