O filósofo afro-judeu Lewis Ricardo Gordon escreveu o livro Medo da Consciência Negra, que tive a oportunidade de traduzir para o português para o grupo editorial Penguin Random House, em 2022. Nesta obra Gordon discorre sobre as suas origens na Jamaica, em que teve o privilégio de crescer com referências negras em todas as esferas da sociedade, dando-lhe um sentido de possibilidades múltiplas da sua existência, não obstante o colorismo e racismo prevalentes no seu país. A sua família descreve era multicromática, o que também abria a sua perceção de pertença ao que espelha a experiência humana.
A chegada aos Estados Unidos foi o que formou a sua consciência negra. Sim, porque segundo Lewis Ricardo Gordon, é pouco provável que alguém nasça com ela. A sua infância nos EUA enquanto criança negra, confrontada com o racismo bruto dos seus pares, o subtil de adultos, vida profissional como académico em que os seus conhecimentos ora eram postos em causa, ora eram efusivamente louvados, perante a surpresa que causavam em pessoas brancas despreparadas para tal; a pandemia, que evidenciou os descuidados dos cuidados para com pacientes negros e exacerbou a desconfiança de pessoas negras que preferiam confiar na sorte a colocar-se à mercê do sistema de saúde tradicionalmente negligente para com os seus. Todas essas experiências foram apresentadas como evidências de que não se nasce com uma consciência negra ela vai se desenvolvendo e solidificando ao longo dos anos que revelam o caráter estrutural do racismo que acaba por lhe dar à luz. Ironicamente, o lugar de nascimento da consciência negra é o racismo.
No Brasil celebra-se, em novembro, o mês da consciência negra. Dia 20 de novembro é feriado em mais de mil cidades do país, marcando a morte de Zumbi de Palmares (1655-1695), homem negro pernambucano, que, segundo arquivos históricos, nasceu livre e foi escravizado quando tinha apenas seis anos de idade. Foi o último líder do Quilombo dos Palmares, tendo lutado pela liberdade de culto e religião, bem como pelo fim da escravidão colonial no Brasil. As suas habilidades como guerreiro, a sua coragem, liderança e conhecimentos de estratégia militar renderam-lhe o respeito e a admiração dos seus compatriotas quilombolas. No Brasil, em 2011, a Lei nº 12.519 oficializou o dia 20 de novembro como “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”.
Este é um mês de celebração das culturas negras no Brasil e em outros territórios em que existem afrodescendentes brasileiros também se celebra ou o mês ou o dia, à semelhança do que acontece com o Black History Month — Mês da História Negra — nascido nos EUA, mas que se celebra oficialmente em outros países anglófonos como o Canadá, Irlanda, Reino Unido. É um mês em que se recordam figuras e eventos importantes para comunidades negras nesses territórios e no mundo, cuja experiência raramente se isenta de tocar o racismo.
A criação de rituais para nos recordarmos constantemente das nossas origens e de descortinarmos a ocultação das nossas contribuições para a história da humanidade é, por um lado, um reflexo de uma violência tremenda pelo facto de as nossas realidades estarem excluídas dessa prática que é feita através da historiografia “universal”, mas por outro lado, é o exercício da nossa consciência negra. Nós existimos e resistimos através desta constante atualização da história.
Em Medo da Consciência Negra, Lewis Ricardo Gordon aponta para a cultura popular como um recurso claro que apela a populações negras de todo o mundo, destacando filmes como Wakanda, que mobilizaram pessoas negras de todo o mundo às salas de cinema, pelo posicionamento da produção, pelo argumento e pelo elenco. A própria eleição do primeiro presidente negro nos EUA foi outro momento que tocou o coração de pessoas negras de todo o globo que se regozijaram ao ver um homem negro a ocupar aquela que é considerada a casa mais importante do mundo – a Casa Branca.
Por que nos emocionamos quando uma pessoa negra é reconhecida internacionalmente? Por que nos dá esperança para lá da nossa compreensão ver os nossos iguais destacados ao longo dos séculos enquanto heróis? Não deveria ser tudo expectável? É nesse momento que nasce a consciência negra – quando o expectável passa a ser o excecional.
Lewis contava na sua obra a história de um episódio que aconteceu com ele na escola primária, já nos EUA, que aponta a sua primeira experiência de consciência negra. Na escola primária houve um episódio com um colega branco, o Tommy, que lhe chamou “p”, na sala de aula, e Gordon bateu no seu agressor. Já no gabinete do diretor, a professora, uma mulher branca disse:
“Pareces ser um menino tão bonzinho. Não esperava isso de ti.”
Gordon não disse nada.
Ela suspirou: “Tens sido tão bonzinho. E inteligente. Realmente não esperava isso.”
“Porquê?”, perguntou Gordon. “Porque não falas com o Tommy sobre o que esperavas dele?”
Este pequeno episódio da vida do filósofo, Lewis Ricardo Gordon, que certamente é familiar a muitos de nós com as devidas variações, ilustra de forma brilhante a subversão que é o racismo na medida em que torna a vítima em arguido e isenta o agressor de qualquer responsabilidade. Revela ainda a necessidade de regularmos a nossa consciência negra de modo a nunca deixarmos de questionar e direcionar as nossas expectativas para onde são devidas. É sim, expectável que na história tenha havido pessoas negras a contribuir para todas as áreas de desenvolvimento humano. É sim, expectável que tal continue a acontecer.