Tributo a Sara Tavares Di Alma

Em dezembro de 2014, entrevistei-a em sua casa na Graça. Sentadas num banco corrido na cozinha, se bem me recordo, ao de um quadro de lousa com palavras bonitas escritas a giz, preparávamo-nos para a conversa. Sara fumava um cigarro e perguntou-me se eu queria um. Eu disse que não. Ofereceu-me um copo de vinho tinto. Recusei a oferta, cordialmente. Estava ansiosa e queria começar a entrevista logo. 

A 19 de novembro de 2023, quase 10 anos após a nossa entrevista, Sara morreu no Hospital da Luz, em Lisboa, vítima de um tumor no cérebro. 

Devia ter fumado o cigarro com ela. Devia ter aceitado o copo de vinho que a mana Sara me ofereceu.

Sara Tavares é uma figura incontornável da música negra feita em Portugal. Tinha apenas 16 anos quando ganhou a competição Chuva de Estrelas, um programa de televisão da altura, e também representou Portugal no Eurovisão em 1994. Esta entrevista de 2014, é visionária e generosa como só ela. 

Sara Tavares (ST): Sara Alexandra Lima Tavares, filha de pais africanos, em Lisboa. Nasci cá, os meus pais conheceram-se cá. Vieram de Cabo Verde nos anos 1970, provavelmente, pós-independência. E eu ando em Lisboa, profissionalmente há já 20 anos. Faço este ano 20 anos de música, que é o que mais me representa. Sou uma cantora. E de há uns anos para cá, comecei a integrar muitos os elementos que me faziam comichão cá dentro, que são os elementos africanos misturados com outra coisa qualquer, “luso-qualquer coisa”, porque sentia vontade disso. Porque achava que eu, como afrodescendente/africana, não tinha representação. Para mim a representação mais próxima que eu via ou eram os americanos, os afro-americanos em todas as facetas daquilo que eles fazem culturalmente, cinema, música ou arte. E então, comecei a achar que devia haver uma representação mais diversa porque a única representação que eu via cá, de afro-portugueses ou afro-europeus reduzia-se quase ao Hip Hop. Havia os Kussondulola [reagge] há tempos, mas pouco mais do que isso, ou eu desconhecia. 

Carla Fernandes (CF): E o que é que tu fizeste em relação a isso em termos musicais?

ST: Em termos musicais tenho vindo a integrar elementos quer da língua de rua de Lisboa, porque todos sabemos que o crioulo é a segunda língua oficial de Lisboa. E uma outra língua oficial de Lisboa nem sequer é o português da RTP, é o português que se fala na rua. Todos os dias conheço expressões novas. Ainda agora estava a gravar com o Carlão e estava a lhe perguntar o que é que ele queria dizer com uma palavra que é baço. Baço, sabes o que é que quer dizer? 

CF: Sim, sei. Nublado. 

ST: Pois, mas no sentido que ele estava a falar, era uma pessoa que estava bêbeda, fusca. 

CF: [riso] O que também corresponde. Uma pessoa quando está bêbada, está meio baça, meio nublada, não vê bem as coisas, então…

ST: Exatamente, mas é uma expressão que eu não conhecia, tal como tantas outras que, basta falar com uma pessoa, cuja raiz seja mais angolana, seja mais guineense ou que seja mais crioula… ah, são subculturas tão diversas que existem de nós africanos, aqui em Lisboa, que eu acho isso super interessante e dá sempre assunto para falar e assunto para aprofundar. 

CF: O que eu acho é que se criam novos sentidos também. Essa história da palavra baço, não é, tem aquele sentido oficial que toda a gente relaciona com nublado ou então pouco claro, e depois consegues criar novos sentidos. Tu achas que Lisboa pelo facto de ser uma cidade tão miscigenada tem o potencial para fazer com que existam outras  formas [para além da língua] de fazer sair esses sentidos?  

ST: Eu acho que sim. Eu acho que a toda a hora existe, tipo, um satélite. Há coisas sempre a acontecer e a transformarem-se. Uma palavra quer dizer uma coisa hoje, amanhã já pode querer dizer outra coisa na boca de outra pessoa. Ou aquelas palavras de que nós nos apropriamos, toda a gente fala do “bué” e palavras assim… mas há bué [risos] palavras de que nós já nos apropriámos  e usamo-las de maneiras diferentes. E, hoje em dia, a febre da Kizomba que vês quase mais portugueses a ouvirem do que africanos. E depois vês a Kizomba a passar na RFM, nas rádios mais populares mais massificadas, acho isso… agora o português a apropriar-se de uma africanidade da qual antigamente nem sequer tinha orgulho. Não sei se passou a ter orgulho, mas pelo menos já percebeu que é uma vantagem. 

CF: Essa questão da apropriação também queria abordar. Tu, por exemplo, agora falando do contrário, tu que vives em Lisboa há vinte anos, e estás há vinte anos a fazer música aqui em Lisboa, tu apropriaste-te da cidade e dos modos de estar de Lisboa.

ST: Ai, sim. Eu sou uma lisboeta de gema. Adoro esplanadas. Adoro as caminhadas em Lisboa. É uma cidade que dá muito bem para se andar. Adoro ir a determinados bairros, parar no Martim Moniz, parar no Chiado. Mesmo nos bairros das periferias, quando era mais jovem visitava mais, agora visito pouco. Mas acho que neste momento é mesmo na cidade que se passam os cruzamentos. Porque há pessoas que ficam ali paradas, porque a atividade profissional delas fazem-na na rua, principalmente os estrangeiros, vivem muito na rua, à procura. À procurar e a encontrar-se e a reencontrarem-se numa nova realidade. Então, eu curto assistir a isso. Gosto muito de assistir a isso e de viver isso. Adoro, porque sempre que encontro um amigo, principalmente os amigos africanos, encontro outro amigo que também veio não sei de onde, e que também vai pra não sei onde, e que procura em Lisboa algo, como se fosse uma passagem, mas algo que fosse catalisador para uma vida que procura, um objetivo que procura.  

CF: E tu encontraste isso em Lisboa?

ST: Eu vou encontrando. Há dias em que eu também fico baça e não encontro nada. Acho que Lisboa, se ficarmos em casa, não vivemos Lisboa, podíamos estar noutro sítio qualquer completamente isolados. Eu acho que há uma Lisboa consoante a estação que estás a viver. A Lisboa no Inverno é uma coisa. A Lisboa no Verão também é muito interessante, quando todo o mundo sai. Todo o mundo vai para fora e ficam… ficam cá os estrangeiros! Basicamente, ficam os que não são de Lisboa, os que não têm uma terra para ir, ou porque é muito longe, porque não têm dinheiro para comprar o bilhete de avião, mas não vão para o norte nem vão para o sul, ficam em casa. E isso é uma Lisboa muito engraçada, a Lisboa do Adamastor, essa Lisboa do Intendente… Essa Lisboa que eu acho que dá diferença a essa Lisboa que faz com que Lisboa seja multicultural é essa. E a Lisboa dos estrangeiros que estão sempre aqui, que são os que moram mais cá e que criam mais raízes cá. 

 

 

CF: E como é a Lisboa dos músicos?

ST: Na minha experiência, os músicos que eu conheço, os músicos com quem eu tenho privado e partilhado, é uma Lisboa que também está sempre em mutação porque criam-se movimentos que normalmente nunca têm força suficiente para ficarem mais sólidos e para darem filhos. Então, eu já conheci muitos músicos que vieram com muita força e queriam criar linguagens novas, e depois por falta de um coletivo ou de uma comunidade que estivesse a explorar mais esse objetivo e a querer contribuir e fortalecer esse objetivo, muitas vezes depois extraviam-se, começam a virar músicos de sessão. Há assim uma fase de um músico que é da adolescência até aos vinte e tal anos que se a coisa não dá para seres assim um bocado livre, depois as pessoas casam-se e começam a pedir da música um sustento mais constante e substancial, o que não acontece em Lisboa, a não ser que tu faças parte de um projeto que viaje, que tenha uma editora, que seja distribuído e que seja consumido. E nesse aspeto há muita coisa que não é consumida que acaba por morrer na praia. 

CF: Tu tiveste um outro percurso. Tiveste sorte, foi trabalho ou foi uma mistura?

ST: Eu não acredito muito na sorte. Acho que se a sorte acontecer a um indivíduo que não é talentoso, que não tem valências, que não tem ferramentas, ele não vai conseguir fazer nada com a sorte. A sorte é uma oportunidade, é aquele momento em que tu estás num spot light qualquer, mas se tu não usas bem isso, vais morrer na praia. Eu acho que há muito trabalho e há muita contribuição dos colegas dos amigos que acreditavam no meu projeto como sendo nosso, como sendo representativo de uma comunidade. 

CF: Então, agora mais em termos práticos voltando à música. Como é que é para ti fazer música aqui em Lisboa?  

ST: Eu faço música a partir de Lisboa. Ou seja, Lisboa acaba por ser a minha fonte de inspiração. E eu acho que é muito bom, porque há tanta coisa para explorar; há sempre pessoas novas a chegarem à cidade, há sempre histórias novas. Acho que para quem tem olhos e ouvidos para sintetizar e consegue transformar aquilo ou num quadro ou numa canção ou numa curta-metragem ou whatever há sempre inspiração à volta. Então, é isso que Lisboa me dá. A pulsação de Lisboa é de uma cidade que é capital, mas é uma cidade calma. Tu podes levar um dia em que trabalhas, mas em que também estás com os amigos, naqueles  espaços como o Bairro Alto, Cais do Sodré, onde tu podes passar o princípio da noite ali tranquilamente e encontras sempre várias pessoas que vêm contar-te das vidas deles então, é sempre o cruzamento que Lisboa me dá. O cruzamento… A Lisboa Lusa, não me diz muito. Raramente vou a Alfama, raramente vou ouvir fado. Gosto imenso, mas não tenho nada a acrescentar, percebes. Não tenho nada a contribuir para ali. Então, Lisboa com a qual eu me identifico é a Lisboa dos estrangeiros. 

CF: Aqui na Afrolis normalmente nós falamos da representação dos afrodescendentes nos media, mas na cidade também. Acho que há uma discrepância entre o que se vê nas ruas e o que se vê nos media. Na rua tu sentes que há uma representação forte ou fraca dos afrodescendentes? Em diferentes espaços, pensando em vários espaços.

 

ST: Eu acho que nós somos a nossa própria representação, portanto há muitos afrodescendentes em Lisboa. Ao virar da esquina estás sempre a ver, estás sempre a cruzar-te com manos e manas. Acho que há poucos espaços que, de facto, ofereçam isso às pessoas de forma organizada. Mas também sinto que é falta de iniciativa de nós próprios. Porque na música vejo que há pessoas que fazem projetos com cabeça, tronco e membros e furam, furam. Vão à procura de distribuição. Vão à procura de publicidade e… E há pessoas, tipo os Buraka Som Sistema que fazem-se a si próprios. Eles editam-se a si próprios, eles publicam-se a si próprios. Acho que falta essa atitude. Acho que existe um véu invisível de que não podemos. Mas acho que nós podemos. A partir do momento que temos o direito de estar neste espaço, também temos o direito de nos afirmar da maneira que quisermos. Agora, acho que a grande maioria dos afrodescendentes vive fora de Lisboa – vive na periferia. E aí há questões muito básicas, tipo os transportes, dos miúdos ficarem lá no bairro, os pais ficarem a trabalhar na cidade o dia todo, os transportes são poucos e são mal organizados, acabam por viver sitiados, só ali no subúrbio e não participam tanto da vida cultural da cidade por uma questão prática e política que são os transportes, transportes públicos. 

CF: Falando da cidade de Lisboa, tu disseste que antes visitavas mais a periferia, mas agora não tanto. Na periferia existe uma vida cultural também viva e forte?

ST: Sem dúvida! Às vezes pela positiva, às vezes pela negativa. Tipo o graffiti começou como uma coisa que era considerada marginal e, hoje em dia, já está integrado na cidade, e isso vem da periferia. Vem da marginalidade que é criada nestas pessoas que estão desamparadas e que não têm muitas atividades, portanto aquela arte que se faz na rua. Eu conheço um exemplo, que acho que é muito forte, que é o da Cova da Moura, do Moinho da Juventude, que eles aí, sim, têm muita dinâmica dentro da própria comunidade.  

 

CF: Na tua opinião, o que achas que se poderia fazer para que houvesse um movimento mais fluido entre a periferia e o centro da cidade?    

ST: Acho que uma coisa é aquela que eu acabei de falar, os transportes públicos serem mais frequentes e de maior qualidade. O acesso mesmo, não é. Outra coisa, acho que era criarem-se programas em que ou se levassem as coisas que normalmente fazem sempre no centro da cidade, os festivais, aquelas coisas do verão, também alargarem o sentido do que é a cidade, e passarem a fazer essas coisas na periferia. Acho que aí a periferia ia ser muito mais valorizada, porque ia trazer as pessoas que vivem no centro, um bocado à parte, para a realidade que é mesmo real da cidade. As pessoas vivem muito mais fora da cidade do que dentro da cidade. E as pessoas quando vão embora da cidade, a cidade fica quase fantasma. Ficam poucos. Então acho que é isso, é fazer muitas das atividades que já estão a ser feitas na cidade, nomeadamente as coisas que fazem ali no Martim Moniz, agora há aquele mercado de fusão. Por que não haver uma série de mercados de fusão que se faria na periferia? Podia-se fazer um em Chelas, outro na Amadora, outro na Reboleira, por aí fora.

 

CF: E acreditas que isso poderia ser uma iniciativa também das pessoas que estão lá, porque quando falámos dos músicos, disseste que às vezes também há falta de iniciativa das próprias pessoas, dos próprios afrodescendentes para levarem os seus projetos avante, seria também um movimento vindo das periferias para o centro?

 

ST: Sim, se bem que eu acho que as pessoas que vêm das periferias encontram uma certa barreira para se expressarem no centro, quase que têm de fazê-lo sempre à força e na marginalidade. Sinto que era preciso haver mesmo uma colaboração oficial. Para além das bandas de rua e das pessoas que tu vês a fazerem arte com o chapeuzinho à frente, podia ser uma coisa mais oficializada. Mas é preciso que haja vários passos uma cadeia de movimentos. Ou seja, há pessoas que são capazes de produzir, mas acho que na nossa comunidade há poucas pessoas que têm ferramentas para também saber distribuir. Há poucos técnicos, há poucos formadores de formadores, percebes? Eu conheço uma pessoa assim e, às vezes, muitos nem sequer têm formação para isso. Fazem aquilo na base da generosidade. Então acho que é importante que nem todos queiramos fazer coisas que são logo o produto final consumível, seja qual for a manifestação que queres ter, mas é importante que também nos interessemos pelos papéis intermediários, que é o facilitador, o que faz a ponte, o que aprende a preencher os formulários e que aprende o que é que é preciso fazer, com quem é preciso falar, onde é preciso dirigir-se. Isso acho que há pouco. Há mesmo uma certa dose de ignorância e nós ficamos ali um bocadinho parados.

 

CF: Voltando aos músicos, tu dizias que os músicos aqui, muitas vezes começam os projetos com muita força, muita vontade e depois acabam por “morrer na praia”. Tu “não morreste na praia”, qual é o teu segredo?

ST: Não tem segredo nenhum. Foi fazer isso, pegar do meu próprio dinheiro, comprar os meus próprios discos na loja, nem sequer a preço de distribuidor, e investir e distribuir esses discos e autopublicitar-me, percebes? Fiz isso durante uns anos fora de Portugal. E é engraçado quando tu, de alguma maneira, ganhas algum reconhecimento fora de Portugal, é aí que os portugueses passam a reconhecer-te e também achar que é bom [risos]. Há essa herança toda que eu também acho que é herança do português que é muita falta de auto-estima. 

 

CF: Falaste sobre fora de Portugal e dentro de Portugal. Em Portugal tu és reconhecida…

ST: Sou, mas a nível de popularidade. Não sou reconhecida a nível de volume de trabalho que tenho. Eu se não trabalhar fora de Portugal, e de Lisboa… Eu posso fazer um concerto, por ano, em Lisboa, não posso fazer mais. A cidade é pequena, não é? Então continua a haver essa coisa de ser bonito para pôr no postal a senhora guineense que está ali a vender fresquinhas ou que está a vender outras coisas na rua, mas não passa na rádio, ou seja, não é consumido. Então acho que isso é tramado.  

 

CF: Apesar de ser tramado, o que é que Lisboa significa para ti?

ST: Lisboa é a minha terra e eu tenho vindo a aperceber-me disso cada vez que viajo. Já passei muito tempo em Cabo Verde, adoro Cabo Verde, é a minha segunda casa, mas eu sinto-me em casa em Lisboa. Quando o avião dá ali a volta sobre a Costa da Caparica, eu fico feliz, porque é o meu chão, são as ruas que eu conheço. Sei desenrascar-me aqui como em nenhum outro lugar. Gosto muito de estar aqui, identifico-me com as pessoas que vou encontrando, mesmo que Lisboa também seja uma cidade em que as pessoas partem muito daqui e não voltam e, como tu também foste embora. Há sempre pessoas com história semelhante com quem tu podes partilhar. Há sempre uma empatia no ar. Lisboa é minha terra. Foi aqui que eu nasci e é aqui que eu gosto de viver. 

 

Entrevista realizada em 2014, por Carla Fernandes

 

 

  

 

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