Um convite para desaprender tempo

Desaprender é como andar de bicicleta.

(Bruno Olivieiri) 

 

Um calendário representa para o Ocidente um sistema de medidas que divide o tempo em meses e anos. Quanto mais percebo a perspectiva ancestral sobre a experiência do que chamamos tempo, mais compreendo que talvez se trate menos de contar dias ou meses, mas de viver ciclos. 

Explico: em muitas línguas indígenas essa noção abstrata de tempo não existe. Em algumas delas, sequer encontramos uma palavra que se assemelhe a essa ideia. Na minha língua ancestral, por exemplo, os verbos não apontam nenhuma noção de tempo. As palavras rama e puêra, tem sido em minha compreensão as mais próximas de uma ideia de tempo. Elas significam, em tradução livre algo como, “que foi’ ou “que será”. No encontro com o significado dessas palavras que acompanham nomes, sou imediatamente conduzida a imagem dos ciclos. 

Na tradição Guarani a natureza repete uma dança de criação cósmica para que vivamos em seu ritmo. Na tradição Xavante, segundo o escritor indígena Kaká Werá, o tempo é um espírito chamado Wahutedew’á, que tem seu ritmo coordenado pelo coração. Ele nos conta que quando os karaíba (brancos) trouxeram a “grande noite”, repartiram nossos ciclos e jogaram Wahutedew’á no esquecimento. 

Repartiram nossos ciclos. 

Desde que me entendi exposta a narrativa linear de tempo, sinto-me repartida dos meus ciclos. 

Um ciclo é conjunto de ações que acontecem dentro e fora de nós e que se relacionam infinitamente. Diversos ciclos compõem nossa existência: nossos próprios ciclos, que são inscritos no ciclo da terra e dos universos, e inseridos num ciclo social e coletivo de determinada época. Tudo que é vivo é cíclico. Portanto, começo e meio, morte e nascimento são irmãs gêmeas, partes essenciais da mesma matéria, do mesmo ciclo. 

Entretanto, a experiência do tempo linear que nos foi imposta é uma devoradora de ciclos. Somos privados por um sistema econômico conivente com uma lógica de tempo que nos devora todos os dias nosso direito de ser ciclos. E falamos aqui dos direitos de seres humanas e não humanos. Quando um sistema econômico se autoriza a negar o direito de uma floresta a ser uma floresta, estamos todos sendo devorados em nossos direitos de existir em ciclos. Enquanto políticos acreditam que podem instituir normas para amar, enquanto pessoas continuam sendo roubadas de seus direitos básicos de alimentação e moradia ou enquanto os rios secam, estamos sendo impedidos de viver nossas experiências de ciclos.

Somos todos os dias furtados de nossa percepção de que somos ciclos no ciclo da terra.

Somos todos os dias convocados a jogar o espírito do tempo no esquecimento.

O tempo linear não dança, não chora, não abraça, não sente saudade, não toma banho de rio e também não quer morrer. O tempo linear não quer morrer, mas também não sabe ser vivo. Quem não morre não é ciclo, não é terra, não faz parte de nada. Cortar e tentar congelar tempo é fazer com que nossos espíritos também vivam no esquecimento.

Eu adoraria ter respostas que pudessem de imediato derrubar os sistemas que colonizaram e instituíram essa contagem repartida de tempo que nos oprime. Mas o que tenho são as minhas angústias e as minhas fogueiras no peito. O que tenho são as desconfianças do tempo linear e o meu esforço para desaprendê-lo. O que eu tenho são pequenos momentos de distração que me incentivam a esquecer de contar tempo e dançar os ciclos. 

Nesse tempo-calendário, para muitos de nós é momento de voltar para a casa. Mesmo que por instantes, mesmo que não fisicamente. Voltar para casa é também se (des)encontrar nas fronteiras dos ciclos. Voltar pra casa é sempre ter uma história pra ouvir ou para contar. Voltar pra casa é também desaprender tempo. E assim, em roda, na fogueira do afeto das famílias que temos ou que escolhemos pelo mundo, os dias de festa nos suspendem o tempo linear. Dançamos memórias, encontros e desejos. Gestamos novos ciclos. 

Portanto, pedindo licença a força dos rituais coletivos (mesmo em datas socialmente estabelecidas), faço alguns presentes-desejos: que você escute e conte muitas histórias ancestrais, com fogueiras de amor acesas, pé na grama e vivendo plenamente o momento do seu ciclo: seja na matéria de nascimento ou de morte. 

Desejo que desaprendamos cada vez mais o tempo para aprender a terra. Desejo o tempo como ciclo, espiral, como dança ancestral de histórias. Daquelas que, como diz Ailton Krenak, se pudermos contar mais uma, podemos adiar o fim do mundo. 

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