Sugestão de leitura: Na pó di Spera de Sónia Vaz Borges
Eu acho importante ler este livro porque…
Em Na pó di Spera, a autora Sónia Vaz Borges apresenta-nos possibilidades de relacionamento com “o bairro”, esse espaço que é do outro, que nos é periférico. Ao ir trabalhar para o Bairro de Santa Filomena, na Amadora, como técnica de um projeto social e mulher negra de origem cabo-verdiana, Sónia Vaz Borges entra num mundo que lhe é estranhamente familiar. O Bairro de Santa Filomena é um espaço estigmatizado onde vivem vários imigrantes e famílias pobres sob a ameaça de despejo. A autora domina várias das linguagens do bairro através dos ecos e resquícios de vivências e convivências com pessoas como ela, gente dela – os pais, os parentes afastados ou proximamente distantes, os amigos, os colegas.
Sónia personaliza a relação com “o bairro” através das dúvidas que partilha connosco perante certezas não comprovadas. Comprovando a nossa ignorância sobre convicções alimentadas sobre “o bairro”. A ausência de conhecimento sobre as gentes do bairro torna-se presente nos caminhos que percorremos guiados pelo olhar de Sónia Vaz Borges. Após cada ação de intervenção socializante, própria do seu papel de técnica, após cada convívio com os moradores do bairro, a autora transforma-se gradualmente em vizinha, amiga, irmã, filha do bairro.
O livro Na pó di Spera evidencia as falhas no olhar sobre “o outro” em nós próprios e cria um ambiente em que o reconhecimento da falta de conhecimento leva ao entendimento. Um entendimento que humaniza não o nosso olhar sobre o bairro, nem o próprio bairro, mas que humaniza a nossa relação com o bairro, com o periférico, com “o outro”. No bairro existem pessoas que não se sabem portuguesas. No bairro existem pessoas que se desconhecem cidadãs. No bairro existem pessoas que se conhecem como “os outros”.
Ler o livro Na pó di Spera incomoda porque nos lembra que o facto de nos reconhecermos todos iguais continua a não garantir igualdade de tratamento. Por outro lado, ler este livro inspira porque nos abre os olhos de dentro e faz-nos pensar no nosso papel enquanto agentes ativos de um sistema que nos mantém “outros”.
A expressão “na pó di spéra”, em crioulo de Cabo Verde, pode ser entendida da seguinte forma: “Quando não se tem outro lugar para ir ou para ficar, quando se espera por alguém ou por alguma coisa, quando não se tem o que fazer no momento, quando se está a descansar durante uns momentos na soleira de uma porta, ou simplesmente se está parado em algum lugar, estamos todos ‘na pó di spéra’.”(Sónia Vaz Borges)
Podem ouvir também a Entrevista com a Sónia Vaz Borges para a AfroLis
Por Carla Fernandes | Publicado originalmente em 2014