Mulheres Negras que sonharam ser cientistas

Bom dia, boa tarde ou boa noite jovem leitor (a).

Espero-vos bem. Por cá, tenho observado sobre como a história da ciência moderna está demarcada pelo epistemicídio. Ao ter pensado sobre as sociedades não europeias (sem estado), enquanto sociedades desprovidas intelectualmente (primitivas), a supremacia branca, determinou até aos nossos dias atuais, os modos pelos quais estudamos e fazemos ciência

Por algum “acaso” algum/a de vós tiveram acesso nas escolas onde frequentam a conhecimentos sobre a civilização egípcia e sobre a sua importância no desenvolvimento da Matemática? Compreendem que personalidades marcantes do mundo grego, como Arquimedes, Aristóteles, Pitágoras, Euclides, entre outros, estudaram com os egípcios? Que os egípcios inventaram um sistema de numeração escrita? Que Hipátia de Alexandria é considerada a primeira mulher matemática da história, que ela era egípcia e que foi filósofa na Grécia e ensinou Matemática, Filosofia e Astronomia? Que os egípcios eram pessoas negras? Que África é o berço da humanidade? Que África é o berço da ciência? Provavelmente, maioritariamente as vossas respostas, serão que não têm acesso a estes conhecimentos através do ensino formal. Somos continuamente ensinados através da educação formal, a pensar sobre os povos africanos apenas enquanto povos que foram escravizados por europeus. O livro The African Origin Of Civilization: Myth or Reality (A Origem Africana da Civilização: Mito ou Realidade), de Cheikh Anta Diop (1974), nos dá uma excelente perspectiva!

Tal lacuna, do meu ponto de vista, impede que avancemos rumo ao reconhecimento e a valorização das contribuições que seres humanos africanos deram ao mundo, e fortalece o racismo científico desenvolvido nos séculos XVIII-XIX, tendo como exemplos, filósofos europeus, como David Hume ou Immanuel Kant (Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, de 1764, publicada no Brasil, em 1993, pela Editora Papirus):

“Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objetos de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.”
                                                                                                                                                                           (Kant, 1993, pp. 75-76)

Em 2020, no auge das manifestações internacionais antirracistas, após o assassinato de George Floyd nos E.U.A., a Universidade de Edimburgo, na Escócia, Reino Unido, retirou o nome do filósofo escocês David Hume de um dos seus edifícios, localizado no campus universitário. A Universidade de Edimburgo teve em consideração uma petição que foi organizada pela comunidade académica / movimento BlackED e que reuniu mais de 8.000 assinaturas. Este movimento foi gerado a partir de sete alunas, mulheres negras, em prol de uma política educacional antirracista na Universidade de Edimburgo.

Nós, por cá, empiricamente, contamos pelos dedos, as mulheres negras que conseguem se manter na vida académica e desenvolver um trabalho com qualidade e reconhecimento. Se existem mulheres negras portuguesas cientistas na área das ciências exatas, por exemplo, encontram-se na invisibilidade. Algo que é grave em um território onde a diversidade cultural é uma realidade secular. 

Jovem leitor/a: devido ao modo como ainda vivemos atualmente, a praticar discriminações contra pessoas interpretadas socialmente como não-brancas, penso que é fundamental que possas pesquisar e acrescentar nos seus trabalhos curriculares, conhecimentos que podem definitivamente transformar os modos como vivemos socialmente, como pensamos sobre nós e os modos como pensamos sobre outrem. Quer o/a jovem leitor/a, pertença a grupos sociais que foram racializados historicamente, ou não.

Empiricamente, podemos compreender que há falta de representatividade negra na ciência, em Portugal e em diversos territórios ex-colonizadores ou ex-colonizados. Um resultado do racismo científico que vem sendo alimentado secularmente. E, por isso, é muito importante conhecer mulheres negras que sonharam ser cientistas, que lutaram e que venceram.

Estas três mulheres começaram a sua jornada a trabalhar na NASA como parte da West Computers, um grupo segregado de mulheres afro-americanas contratadas para processar dados aeronáuticos na era da Corrida Espacial. Foto: Bluegrass Institute

Na produção fílmica estadunidense, de drama biográfico, Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures, 2016), podemos acompanhar o processo de segregação racial nos EUA na época da corrida espacial e como três mulheres negras, ousaram sonhar fazer ciência e enfrentar a sociedade vigente, de modo a viver os seus sonhos e a romper com o racismo científico, estrutural e institucional existente. As atrizes negras Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe, interpretaram respectivamente, a cientista matemática, física e cientista espacial Katherine Johnson, a cientista matemática Doroth Vaughan e a cientista matemática e engenheira Mary Jackson. Um filme, baseado no livro da escritora negra Margot Lee Shetterly, dirigido pelo cineasta Theodore Melfi e escrito pela roteirista Allison Schroeder. Um filme a não perder das vistas e dos corações!

Mae C. Jemison foi a primeira mulher negra a ir para o espaço, quando serviu como especialista de missão a bordo da nave espacial Endeavour. Foto: NASA

Uma fã de Star Trek, da personagem tenente Nyota Uhura, que foi interpretada pela atriz, dançarina e cantora afro-americana Nichelle Nichols, se tornou uma cientista de renome internacional. Mae Carol Jemison, afro-americana, se formou em engenharia química na Univerdade Stanford e em Medicina na Universidade Cornell, nos EUA. Entrou para a equipa da NASA em 1987. Esteve na tripulação do ônibus espacial Endeavour, na missão STS-47, em 1992. Ou seja, Jemison foi a primeira mulher negra no espaço e lidera atualmente a organização 100 Year Starship. De modo que, a representatividade negra na ficção cinematográfica, no audiovisual, na literatura, etc. é importantíssima para que meninas e mulheres negras possam sonhar e concretizar os seus sonhos, num mundo profundamente marcado por heranças coloniais e patriarcais.

No Brasil, já temos tido a felicidade de compreender que há representatividade de mulheres cientistas afro-brasileiras e indígenas nas diversas áreas científicas e que estão a escrever as suas histórias na academia brasileira e internacional, bem como, a cocriar projetos que incentivam meninas e meninos que integram famílias com poucas condições financeiras, a sonhar o fazer científico. Um resultado das políticas públicas educacionais desenvolvidas no Brasil entre 2001 e 2012, que tiveram as suas origens nas lutas sociais anteriores ao ano 2000, potencializadas pelo movimento negro brasileiro. Em 2001, a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), implementou o sistema de cotas. Em 2004 foi a vez da UNB (Universidade de Brasília). Com a Lei nº 12.711 de 2012, Lei de Cotas (Governo Dilma Rousseff), todas as instituições do ensino superior federais passaram a ter a obrigatoriedade de reservar parte das suas vagas para estudantes das escolas públicas brasileiras com poucas condições financeiras, pessoas autodeclaradas negras ou pardas e pessoas indígenas. Um feito que mudou radicalmente o sistema educacional brasileiro, promovendo a erradicação das desigualdades sociais e raciais, um processo de reparação histórica, devido às heranças coloniais portuguesas e europeias no Brasil.

Nós, por cá, empiricamente, contamos pelos dedos, as Mulheres Negras que conseguem se manter na vida académica e desenvolver um trabalho com qualidade e reconhecimento. Se existem Mulheres Negras portuguesas cientistas na área das ciências exatas, por exemplo, se encontram na invisibilidade. Algo que é grave em um território onde a diversidade cultural é uma realidade secular.

Será uma grande alegria, para a imensa comunidade formada por meninas e mulheres negras portuguesas, africanas e afro-brasileiras em Portugal, quando vermos representatividade feminina negra aquando das homenagens às Mulheres cientistas portuguesas, promovidas pela Ciência Viva, daqui a uns oito, dez anos. Dado, que as atuais gerações de meninas e mulheres negras portuguesas, africanas e afro-brasileiras se mantêm longe do fazer científico e tecnológico e é necessário um plano educacional que vise modificar este estado de coisas.

Jovem leitor/a: nasceste para sonhar e concretizar os teus sonhos. Portanto, acredite em ti, adentre na biblioteca escolar, pública ou da tua faculdade e busque livros, pesquise temáticas que lhes inspirem. Evite perder tempo com jogos eletrónicos e redes sociais diante da World Wide WEB. Muita atenção: estes dispositivos podem servir muitíssimo para te distrair e te adoecer, te condenar a ser mais um/a no meio da multidão.

 

*A colunista utiliza linguagem inclusiva.

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