Entre 10 e 26 de novembro, o Alkantara Festival regressa com um programa de nove espetáculos de artistas nacionais e internacionais, três projetos de curadoria – no fundo, três festivais dentro do festival – e ainda duas festas e um conjunto de encontros e de conversas – e de inícios de outras. Um programa que, a partir das práticas artísticas contemporâneas, se constrói na confluência de histórias e experiências, várias delas de violência e desconforto, ora contadas na primeira pessoa, ora reencenadas por outras.
Até onde podemos ir? Quão próximo conseguimos chegar? De realidades que nos são próximas ou distantes, as propostas do Alkantara Festival 2023 atravessam questões identitárias, problemas ecológicos, sociais e políticos. Mas apresentam também possibilidades de celebração, de emancipação, de construção a partir do reconhecimento de que somos múltiplos, e de que o que conseguimos compreender tem limites. É com esses limites que este programa nos confronta, para lá do encantamento com a beleza do desconhecido.
Um “não” radical para salvar o que amamos
O fim-de-semana de abertura conta com a estreia nacional de Whitewashing, de Rébecca Chaillon, encenadora e performer martinicana sediada em Paris, no Teatro do Bairro Alto. Como podem as mulheres negras cuidar de si e dos seus corpos numa sociedade dominada pela branquitude? O público é convidado a olhar, a observar, enquanto o corpo que a sociedade deseja tornar invisível se torna cada vez mais inevitável na sua presença. Num antigo espaço industrial em Alvalade, segue-se F(r)esta, uma celebração organizada pelo núcleo MeioFio (Ágatha Cigarra e a sua equipa, formada por Era Jaja Rolim, Alex Simões e Renato Kurup), que através das suas pesquisas percorre os propósitos e impulsos da festa e a sua inevitabilidade.
No mesmo fim-de-semana, na Culturgest, reflete-se sobre poder, resistência e lei no Brasil contemporâneo, no espetáculo Antígona na Amazónia, do suíço Milo Rau/NTGent & MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). A luta pela reforma agrária, os massacres contra o MST, os genocídios negro, indígena e transgénero, as alterações climáticas e o agronegócio são elementos desta história funesta, mas não sem esperança – se nos apressarmos a dizer um “não” radical para salvar o que amamos. Em palco quatro pessoas-intérpretes revezam-se entre a interpretação das personagens de Sófocles e de si próprias, num espetáculo que junta a tragédia grega clássica, a sua adaptação à Amazónia contemporânea e a história da construção do próprio espetáculo.
A convite do CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian e do Alkantara, o coletivo japonês Chim↑Pom from Smappa!Group desenvolve Side Trip, um programa integrado na Engawa – Temporada de arte contemporânea japonesa. Desafiando os limites de uma rua em Marvila, a intervenção dos membros do coletivo reclama este espaço público como lugar de convivialidade. Com início num magusto, a 11 de novembro, esta intervenção conta com um programa público de eventos – encontros, performances, workshops e comida – pensado em colaboração com grupos comunitários dos bairros de Marvila.
Entre os dias 11 e 14 de novembro, o Espaço Alkantara acolhe Pedra Pele Pulmão – outro dos três programas de curadoria integrados no Alkantara Festival 2023. Concebido pelo Terra Batida, e resultado de uma residência coletiva no município do Fundão, Pedra Pele Pulmão tem coordenação de Ritó (Rita Natálio), e reúne propostas artísticas de Alina Ruiz Folini, Teresa Castro, e do coletivo humusidades, em diálogo com vários outros artistas, ativistas e pesquisadores. Composto por um conjunto de performances, conversas e um workshop e tomando como ponto de partida o corpo, ensaiam-se especulações sobre os problemas da mineração e da monocultura, a partir das especificidades da região do Fundão.
“Não perguntamos apenas sobre quem cortou as raízes”
Na segunda semana de Alkantara Festival, o São Luiz Teatro Municipal recebe de 17 de 19 de novembro Kilombo, um programa de três dias com curadoria de Aurora Negra (Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema). Kilombo, que teve já uma primeira edição no Espaço Alkantara, em 2021, regressa para uma segunda edição, de novo como lugar de “celebração, reunião e resistência” de uma comunidade, com performances, música, cinema, comida e uma exposição.
Nos dias 17 e 18, no palco da sala Luís Miguel Cintra, Calixto Neto apresenta Feijoada. Uma roda de samba em que músicos, performers e o público dançam, cantam e partilham uma feijoada brasileira, aprofundando a relação – pessoal e política – entre Brasil, Portugal e a diáspora africana. “Não perguntamos apenas sobre quem cortou as raízes, queremos saber quem afiou as facas.” Este é o mote para denunciar as camadas de opressão do legado da colonização.
Gaya de Medeiros apresenta uma nova versão de Pai para Jantar (17 a 19 na Black Box do Centro Cultural de Belém). Pai para Jantar constrói-se num jogo com o público que tenta esmiuçar a masculinidade de forma poética e bem-humorada, brincando com os modos como agenciamos palavras, afetos e arquétipos ao redor da ideia de “ser homem”. E propõe um caminho subjetivo em direção ao lastro dos nossos pais, que perdura na nossa personalidade e que está na base de muitos desejos e fracassos.
Nos mesmos dias, no TBA, Marco Mendonça estreia o seu primeiro espetáculo a solo: Blackface. Uma conferência musical, entre o stand-up, a sátira e o teatro documental e autobiográfico que, através de uma extensa pesquisa visual e diferentes sketches humorísticos percorre cinco séculos de história para falar do longo e doloroso legado da prática racista do blackface.
Às vezes precisamos de conversar com outra pessoa para nos conhecermos
No terceiro e último fim-de-semana do festival, de 24 a 26 de novembro, Sónia Baptista celebra a sexualidade e o despudoramento no envelhecimento em Sweat, Sweat, Sweat (Um conjunto de pequenos afrontamentos). Na sala Mário Viegas do São Luiz, entre inquietações e frustrações, a artista desmonta a inevitabilidade do envelhecimento e da menopausa, em todo o seu esplendor sintomático, sem romantização, descobrindo fluidos, serenos e reconfortantes entendimentos da sexualidade, da espiritualidade e da identidade de género.
Nos dias 24 e 25, ao palco do grande auditório da Culturgest sobe um elenco constituído por pessoas da comunidade transgénero de Abidjan, uma das mais populosas cidades africanas e capital económica da Costa do Marfim, onde nasceu a coreógrafa Nadia Beugré. A sua obra Profético (Nós já nascemos) resulta do contacto que tem mantido com essa comunidade: pessoas que, designadas à nascença como rapazes, flutuam entre géneros num gesto de reivindicação de liberdade feroz, numa sociedade extremamente patriarcal que, na melhor das hipóteses, finge que não as vê.
Às vezes precisamos de conversar com outra pessoa para nos conhecermos, e, na escuridão da noite dos dias 25 e 26, acontece, no TBA, Fazer Noite, de Bárbara Bañuelos. Um espetáculo que é uma conversa entre Bárbara, encenadora espanhola, e Carles A. Gasulla, guarda-noturno num parque de estacionamento. Ocupando as cadeiras vazias entre o público, Bárbara e Carles conversam sobre livros que leram, sobre precariedade laboral, sobre colonialismo, saúde mental e estigmas sociais, convocando o público para um exercício de empatia e de vulnerabilidade coletiva.
Em Uirapuru, a 25 e 26 no São Luiz, o coreógrafo brasileiro Marcelo Evelin e a sua companhia, a Demolition Incorporada, inspiram-se nas entidades que habitam as florestas do Brasil e no imaginário das matas brasileiras. A floresta apresenta-se como espaço de encantamento, como lugar de regresso, um interior profundo e desconhecido. Uirapuru é o cantor da floresta. Significa, em tupi-guarani, “o homem transformado em pássaro” ou “ave enfeitada”.
No penúltimo dia do festival, a garagem da Culturgest é tomada por Montação, do coletivo Afrontosas (Antonyo Omolu, Di Candido, aka DIDI, e Rodrigo Ribeiro Saturnino, aka ROD), numa celebração LGBTQIAP+ das manifestações de (r)existência queer, negra em diáspora, ressignificando e redimensionando o imaginário das festas queer, que o coletivo frequenta desde sempre – de Lisboa até o Rio de Janeiro, passando por Cabo Verde, Guiné e outras distâncias afrodiaspóricas.
Além dos espetáculos, a programação de 2023 do Alkantara Festival é marcada por uma série de conversas pós-espetáculo, com moderação de Raquel Lima, para trocas e reflexões sobre os processos criativos e os temas abordados; o programa Trilhas, com a moderação de Amina Bawa, desenvolvido em parceria com associações culturais e coletivos informais que desenvolvem ações junto das comunidades LGBTQIAP+, migrantes e refugiadas, pessoas com deficiência e pessoas afrodescendentes, numa procura de construir caminhos para que pessoas ainda ausentes como público das grandes salas de espetáculos de Lisboa estejam cada vez mais presentes; e Matéria Leve, um grupo de estudo em iluminação cénica coordenado por Leticia Skrycky e atravessado por três linhas: pesquisa, experimentação e técnica.
Também no contexto do festival, decorrem dois encontros de projetos desenvolvidos com o apoio da União Europeia, no âmbito do programa Europa Criativa: Common LAB 2023, o primeiro de 3 laboratórios integrados no projeto Common Stories, que junta organizações de artes performativas, artistas e públicos para ampliar narrativas europeias e abordar as noções dinâmicas de identidade e diversidade, numa sociedade europeia em transformação, e conta com a conferência Common Stories: Reformular a Autoridade e a Autoria nas Artes, dia 20 de novembro, na Culturgest, onde se refletirá sobre apropriação cultural, destituição autoral, racismo cultural, assim como outras lógicas de extrativismo artístico; e In Ex(ile) Lab, um projeto de dois anos que procura apoiar a integração profissional de um grupo de 12 artistas que se mudaram recentemente para Chipre, França, Itália ou Portugal, oferecendo condições para a criação de uma performance, para o desenvolvimento de contactos profissionais e para chegar a novos públicos no espaço europeu.
O Alkantara Festival 2023 é coproduzido por Centro Cultural de Belém, Centro de Arte Moderna (CAM) – Fundação Calouste Gulbenkian, Culturgest, São Luiz Teatro Municipal e Teatro do Bairro Alto, e tem apoio à apresentação do Institut Français, do projeto MaisFRANÇA, uma temporada concebida pelo Instituto Francês de Portugal, da Ação Cultural Espanhola (Programa para a Internacionalização da Cultura Espanhola) e do Flanders State of the Art. Alkantara é uma estrutura financiada pela República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes e pela Câmara Municipal de Lisboa.