Culpa é um substantivo feminino

Shonda Rhimes, guionista e cineasta norte-americana conhecida, aqui em Portugal,  por séries como a Anatomia de Grey ou Escândalo e muitas outras produções nos EUA, dizia num discurso para finalistas da Ivy League, em 2014:


“Sempre que me veem a ter sucesso numa área da minha vida, significa, quase de certeza, que estou a falhar noutra área da minha vida. (…) Esse é o compromisso”.

Certamente que muitas mulheres se revêem nesta afirmação. Este tema da “culpa” da mulher é recorrente e não se aplica apenas à mulher no mundo do trabalho. A mulher mãe que se dedica “apenas” a cuidar dos filhos também a carrega. A mulher sem filhos e que não os quer ter é acusada de ser egoísta. A mulher que quer ter filhos, mas não consegue conceber foi amaldiçoada por algo errado que eventualmente terá feito nesta ou noutra vida. A mulher que não é casada, certamente, tem um problema. A mulher que é casada e se divorciou, terá sido o problema. Não há forma de escapar à culpa sendo mulher. Mas de onde vem este estigma?

A mulher “original” apresentada na bíblia, Eva, trouxe o pecado e o sofrimento para a vida dos seres humanos. Foi ela a culpada pela saída do paraíso ao comer o fruto proibido. Desobediente e impulsiva é ela a causa de todas os males do mundo, então que os carregue; ela e todas as suas semelhantes. E é um facto. Vários estudos revelam que mulheres sofrem mais com sentimentos de culpa e que isso chega a ser visto como fazendo parte do representa ser mulher. Mulheres que se posicionam de outra forma não terão condições de sustentar esse posicionamento durante muito tempo. 

As mulheres são socializadas para estarem mais em sintonia com os seus sentimentos e com os dos outros, dando prioridade aos dos últimos. Colocar as suas necessidades em primeiro lugar, não fica bem. Afinal somos ou não somos as cuidadoras por excelência? Nós próprias internalizamos essa culpa que nos parece natural, apesar de estar longe de o ser.  

Será que para mulheres negras essa culpa é outra, é agravada? Se partirmos do princípio de que, enquanto pessoas negras, em geral, somos percepcionadas como culpadas de algo, mesmo que não exista um motivo, pois existe sempre o “potencial” de virmos a cometer algum impropério para além da audácia de existirmos, a resposta seria: “Sim.”

No seu livro Não Serei Eu Mulher?, bell hooks faz um retrato da condição da mulher negra em diferentes períodos da história dos EUA, e destaca como, durante a escravatura e o movimento dos direitos civis, muitas mulheres negras tinham de fazer escolhas para o bem do coletivo que eram prejudiciais para elas enquanto indivíduos ou coletivo feminino. Porque, por sofrerem múltiplas violências desencadeadas pelo sexismo, racismo e capitalismo tinham de escolher entre opções que eram igualmente desfavoráveis do ponto de vista individual, mas potencialmente favoráveis para o coletivo.  A luta pelo direito de voto foi um dos exemplos dados por hooks, que descreve a dilema das mulheres negras, no século XIX, nos EUA, que defendiam o direito de voto para todas as pessoas, mas acabaram por ter de considerar que a luta pelo voto para o homem negro seria uma vantagem. Foram eles os primeiros a ter o direito ao voto. Igualmente a luta das feministas brancas que se encostaram aos homens negros para ganharem o direito de voto, revelou que o machismo, por vezes, supera o racismo. Mal sabiam elas, as feministas brancas, que o sexismo seria o elo mais forte na tomada de decisão dos homens brancos que preferiram dar o sufrágio aos homens negros antes de o darem às mulheres brancas. 

Outro exemplo, também avançado pela escritora norte-americana no livro acima referido vem desde o tempo da escravatura e mantém as suas continuidades nos tempos de hoje. Quando mulheres negras eram violentadas pelos seus parceiros, era menos provável que os denunciasse, porque sabiam que poderiam estar a conduzi-los para a morte. Carregariam também essa culpa perante as suas comunidades, perante as suas famílias, perante os seus filhos.  

Ocorre-me um episódio mais relacionado com a condição de ser negro que também nos obriga a tomar decisões do género. Em visita a Salvador da Bahia, ao passear pelo Pelourinho fui abordada por uma criança negra, claramente alterada por alguma substância. Corpo frágil, maneirismos desregulados e olhar desprovido de vida, poderia ter cinco, seis anos de idade aquele menino. Insistia: “Tia, tia, me dá um dinheiro.” Subia a rua atrás de mim e do meu grupo de companheiros de hostel com quem estava. Irritada: “Vou chamar o policial!”. O menino parou imediatamente de nos seguir. Desapareceu. Rapidamente me vieram à cabeça as estatísticas relativas à morte de pessoas negras no Brasil pelas mãos da polícia. Segundo a Agência Brasil que publicou dados da Rede de Observatórios em Segurança Pública, em 2021, pelo menos cinco pessoas negras foram mortas por dia em intervenções policiais.  Senti-me culpada, porque poderia ser meu filho e porque era uma criança negra, que poderia ter desaparecido efetivamente, e não apenas perante a minha ameaça de chamar o policial.

A culpa é um substantivo feminino, seja pela pressão social, seja pela internalização desse sentimento por razões históricas ou religiosas. Ela, a culpa, expande-se por sermos mulheres, e vai acompanhar-nos sempre. Aprender a lidar com ela, consciente de que a superação desse sentimento através da afirmação coletiva do direito das mulheres a uma vida plena e livre de uma culpa endémica deve ser uma constante, é o compromisso.

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