Bom dia, boa tarde ou boa noite, jovem leitor (a),
A mãe de Said, Kadima, não tem remédio para o filho. Sentada no sofá da sua casa, acompanhada de três amigas, revela que tem vergonha do filho e que não sabe em que momento da educação dele, ela e o marido Abdullah, falharam. As três amigas não têm muito o que lhe dizer. Apesar de tudo, elas gostam de Said, ele e os seus filhos cresceram juntos.
Numa manhã ensolarada, beirando os 43 ºC, uma multidão de mais de cem mil pessoas, suadas, desidratadas, de diferentes naturalidades, natural — idades, seguram faixas, cartazes, acenam para as câmaras dos smartphones, para as câmeras televisivas e gritam euforicamente diante da casa de um Presidente, localizada num país imaginário. Said é candidato à Presidência nas próximas eleições, vislumbra brevemente adentrar por àquela casa e estando ao alto, em cima de um palanque, com um microfone em mãos, brada aos quatro ventos:
– … nós somos resistência! O tráfico negreiro nunca existiu. Não podemos continuar a propagar ideias sensacionalistas. O que é a história? A história nada mais é o que fazemos dela. O racismo? É uma falácia completa. Não existe isto que falam por aí das cores. O que interessa se a minha pele é cor de café? Eu não estou aqui? Estou aqui, não estou? ”
As muitas vozes presentes no local ecoam ondas e mais ondas de “vivas”. Intermináveis.
A mãe de Said sente náuseas. Busca com todas as suas forças dar continuidade as palavras que parecem não querer mais sair de dentro dela. Kadima tem medo, muito medo de Said. Muito medo por Said. Com um coração grande de mãe que colocou cinco filhos tornados homens no mundo, busca entender onde está o filho caçula, o seu menino, visto que já há muito que não lhe reconhece.
Talvez os manuais escolares que Said leu na sala de aula da escola primária em que frequentou, não tivesse histórias que fossem suficientemente capazes de descrever como as pessoas africanas foram destituídas de humanidade, quando começaram a ser capturadas pelos europeus, no século XV, como até hoje pessoas são discriminadas com base na sua pertença étnico-racial, com base na sua nacionalidade, com base na cor da pele, pensa Kadima.
Talvez nós lá em casa não tenhamos tido o tempo suficiente… tínhamos o dever de acompanhar Said, era nossa obrigação, meu Deus, era o nosso dever, era nossa obrigação… os pensamentos de Kadima começam como que a atropelar uns aos outros e num tom de desalento, de pedido de socorro, Kadima grita.
As três amigas estão espantadas. Kadima está petrificada: não escutou o som da sua própria voz. Onde está Abdullah, meu Deus? Pensa. Observa ao redor, procura por Abdullah e a sua procura é em vão. Abdullah? Abdullah?
As três amigas aflitas, correm para ela. Kadima luta, tenta desgarrar-se dos seus corpos, de um abraço que tende a ser fraterno. Talvez se Said tivesse conhecido um pouco melhor Abdullah, se tivesse convivido com os seus avós maternos e paternos, se não tivéssemos enviado Said para frequentar a creche tão cedo, com quatro meses e meio! Subitamente a palavra Deus sai sonoramente de dentro de Kadima e ela volta a si. Suas três amigas, param.
Said está cada vez mais firme no seu ato performativo em frente à casa do Presidente:
– Vivaaaaa! Com a ajuda de cada um de nós aqui hoje e muitos mais, eu serei o próximo Presidente! E quando eu for o Presidente, deste país imaginário, não me renderei às histórias que não estão na História!
Um grupo de pessoas toca gaita-de-foles, outro grupo toca tambores e outro grupo, instrumentos de sopro. Um grupo de pessoas canta. Outro, bate palmas. Brincam sonoramente com perguntas e respostas. Uma grande maioria de pessoas gritam palavras ininteligíveis.
Kadima relembra que não trabalhou fora de casa, enquanto Abdullah teve vida, ao contrário de muitas mulheres que quando se tornam mães, trabalham fora de casa, para ajudar os maridos a sustentar as suas casas quando vivem no estrangeiro.
Abdullah trabalhou afincadamente na mercearia familiar, das 5h da manhã às 23h da noite, todos os dias, sem folgas, nem nos feriados, abastecendo as casas das gentes de dentro e de fora do país imaginário.
Abdullah gostava de contar histórias para Said, sobre tudo um pouco: de como as pedras das pirâmides do Egito foram matematicamente colocadas umas em cima das outras, de como Atlântida se afundou ou se de facto existiu, de como a Lua não poderia ser feita de queijo, só se Said assim quisesse. De como grandes civilizações anteriores à Grécia, foram tornadas invisíveis. De como a biblioteca de Alexandria pegou fogo. Dos mundos dos sonhos… de que deveriam cultivar a bondade, a alegria, a amizade…
Quando Abdullah voltou às estrelas, tinha 50 anos de idade. Said, tinha 7. Abdullah e Kadima já tinham filhos crescidos o suficiente para tocar com a mercearia familiar para frente.
Os irmãos de Said, mesmo os mais crescidos, jogavam a bola com ele e com os amigos em frente à mercearia. Quando viam os carros, eles paravam. Quando já lá iam os carros, eles recomeçavam. Kadima fazia questão de todos os anos no verão, levar Said com os amigos, os filhos das três amigas dela, à praia.
Os irmãos mais velhos ficavam a tomar conta da mercearia. Said teve acesso à tudo o que as crianças devem ter, tal como os adultos do país imaginário acham que as crianças devem ter: casa, escola, médicos, amigos das mesma idade, parques, jardins, brinquedos, bicicleta, calçados, roupas, livros, jogos eletrónicos, televisão, computador, internet, smartphones… comida sempre na mesa. As escolas foram sempre perto de casa. Também frequentou atividades de enriquecimento curricular.
Kadima compreende que Said em algum momento se perdeu e que ninguém se deu conta, ninguém chegou a tempo… como alguém aprende a se esquecer da sua história? Se interroga Kadima. Das histórias dos seus povos? Das histórias contadas pelos mais velhos? Kadima definha dia após dia, de desgosto. E as perguntas não cessam da sua mente. Que destino terá Said? Pensa. E se vier a se tornar Presidente? Ensinará a todos a se esquecerem de si próprios e dos seus?
Jovem leitor (a), neste mundo tecnológico em que vivemos atualmente, onde pessoas crianças, jovens e/ou adultas influenciam outras pessoas crianças, jovens e/ou adultas, através de informações que muitas vezes não possuem fontes fidedignas, onde pessoas crianças, jovens e/ou adultas têm acesso a Inteligência Artificial para descobrirem mundos e executarem tarefas formacionais… onde pessoas crianças, jovens e/ou adultas se encontram em salas virtuais para jogar jogos e partilhar informações… como podes estar seguro (a) sobre os conhecimentos que acessas por estes meios?