O passaporte na pele

O mundo é enorme e eu tenho a sorte de ter um passaporte português, que se encontra no sexto lugar dos passaportes que permitem maior liberdade para viajar sem restrições, para 188 países. Sim existe realmente um índice que classifica os passaportes pela liberdade que estes permitem aos seus portadores. O índice avalia o poder dos passaportes, e é interessante ver a lista liderada pelo Japão e a posição relativa que os passaportes assumem, o que só pode ser entendida com uma abordagem histórica, económica e cultural.  O melhor passaporte do mundo é o japonês com entrada livre ou praticamente livre em 193 países; e pior, é o do Afeganistão onde só 27 países permitem entrada sem visto ou com visto à chegada.  O passaporte russo é aceite em 118 (mesmo com o embargo depois da guerra da Ucrânia), angolano em 50 países, o americano em 187 países e o chinês em 81 países.  

Não sei bem quando é que começamos com passaportes e vistos, mas a Bíblia Hebraica menciona “safe passage” o equivalente ao salvo conduto, em 450 AC. Cartas emitidas com a aprovação do rei, permitindo que o portador passe em segurança pelo território. Agora temos o produto mais refinado do passaporte, um documento oficial com a nossa identidade e fotografia, mas um documento que assume diferentes funções consoante o país onde é emitido. O mundo é acessível de acordo com o passaporte que transportamos, mas a nossa experiência do mundo expande ou retrai com a nossa pele.  

Lembro-me de um exercício que fizemos numa formação de segurança para corporate travelers, o formador perguntou ao grupo quais eram os países mais seguros do mundo. Uma colega americana respondeu sem hesitar – Estados Unidos.  Estávamos em 2019 com notícias semanais a reportarem negros a serem mortos pela polícia por simplesmente respirarem, uns meses antes da morte George Floyd. E eu respondi que, como mulher negra, eu não me sentia particularmente segura nos Estados Unidos. A Nina Simone cantou em I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free, como ela gostaria de saber como seria ser livre… gravado pela primeira vez em 1963, foi um dos temas da luta pelos direitos civis americanos. 

Eu sinto-me livre e para ser honesta eu sempre tive um grande sentido de liberdade pessoal. Sempre caminhei inconsciente, das fronteiras invisíveis levantadas contra a minha pele ou o meu género. Mas há sempre alguém que faz questão de me relembrar que as fronteiras existem. No Iraque eu poderia ser do Sudão ou americana, não havia espaço no mundo do nosso motorista da Jordânia, para uma negra afro-lisboeta. E o jornalista do Correio da Manhã, partilhava dessa visão do mundo, onde uma mulher negra não pode fazer sentido numa foto da missão portuguesa no Iraque, logo a minha imagem negra apagada por Photoshop, porque sim, porque causaria ruído visual. Em Timor-Leste tive uma colega com uma pele constantemente bronzeada, a explicar aos timorenses, que só consideravam nacionais e estrangeiros, que nem todos estrangeiros eram iguais… que existiam malae metan (estrangeiro negro) enquanto ela seria simplesmente malae. 

Faz tempo que quero visitar a Rússia, São Petersburgo, em particular, pelo ballet, mas o Putin decidiu invadir a Ucrânia.  Do Médio Oriente, estive no Iraque, mas não vi a Bagdad, a segunda maior capital da região, porque o Bush tinha decidido que Sadam estava no eixo do mal. Quero visitar o Irão, estive quase para ir, com a carta de chamada alinhavada e tudo, mas o Trump e o Boris estavam no poder, e os vistos ficaram mais difíceis.

Agora já não viajo tanto, mesmo tendo muitos países por visitar neste mundo maravilhoso, ainda ando como quem sabe para onde vai, mas aborrece-me cada vez mais os polícias fronteiriços, formais e informais. Recuso-me a visitar os Estados Unidos, porque o pessoal é simplesmente grosseiro e instrusive, tratando a todos como se fossemos potenciais imigrantes ilegais. 

E o mundo expande e contrai com o ritmo da história, a Segunda Guerra Mundial acabou, as colónias ganharam liberdade, o muro de Berlim caiu, a União Soviética caiu, a Comunidade Europeia nasceu, as guerras no Médio Oriente, as torres gémeas, Obama foi presidente, o Trump sempre construir o muro…  e o mundo mudou criando um movimento inesperado de pessoas, ideias e novos passaportes.  E os passaportes já não fazem muito sentido, porque o herói nacional pode muito bem encaixar na descrição dos suspeitos do costume, no futebol, no judo, nos Jogos Olímpicos ou em missão.  

Agora vivo em Londres, onde uma das características mais mencionadas por nacionais e estrangeiros, é a possibilidade de encontrar comida de todo o mundo. Eu também gosto de um bom Sunday Roast… mas eles saíram da Europa, porque queriam controle sobre as suas fronteiras, agora eles precisamos todos de passaporte para viajar. E depois do Brexit, faltam ovos, tomate e azeite italiano, vinho francês e pão alentejano. Também faltam as pessoas, aqueles jovens que servem à mesa com um sorriso nos lábios, porque sabem que é por um verão. Ficaram as fronteiras e as políticas mais ou menos acolhedoras.

Ontem fui assistir a um concerto de blues no centro de Londres, numa das zonas que sofreu gentrificação. Fui com um grupo de amigos e voltei de metro com um deles. Sentámo-nos em frente um do outro estávamos a conversar, quando de repente as pessoas que estavam sentadas na nossa seção, levantaram-se e mudaram para a secção ao lado, o meu amigo ficou tenso, e parou de falar. Foi quando reparei que um jovem negro, que aparentava estar bêbado ou medicado, tinha entrado na carruagem. Eu mantive-me no meu lugar num gesto mais de solidariedade do que de coragem. Revoltam-me os movimentos de exclusão e alienação que levam os nossos jovens a comportamentos antissociais, e quando eles se encontram perdidos, nós fugimos e recusamos a sequer olhar para eles.  

Eu tenho momentos destes, e senti que seria uma falta de humanidade condená-lo à ostracização, e por um momento olhei para ele, not very wise. Ele olhou de volta, um jovem com vinte anos no máximo, dentes perdidos à má nutrição e olhos sem muita expressão. Balbuciou algo sobre trabalhar para o governo e fixou-se o olhar em mim. O meu amigo tenso e calado, o resto da carruagem expectante pelo momento em que valeria a pena pegar no telemóvel para filmar a situação. O meu amigo ficou preocupado porque ia sair numa paragem antes da minha, mas eu disse que ficaria bem, que era só uma paragem. Quando o meu amigo saiu, um homem apareceu do fundo da carruagem e sentou-se a minha frente e olhou nos olhos do jovem negro e assumiu uma posição de alerta. O senhor não falou comigo, não olhou para mim, só olhou para o jovem que se manteve calado. Quando saí na paragem seguinte, eu virei-me para o senhor e agradeci, thank you so much, ao que ele respondeu que também ele estava a trabalhar para o governo… 

Fui a correr para apanhar a ligação para casa e tinha de esperar mais dez minutos. Deixei-me estar a jogar no telemóvel ao som de afrobeats, quando olhei para o lado para ver quantos minutos faltavam, lá estava ele, em plena estação de metro de Earl’s Court às 12:27am de joelhos, a rezar e sorri, ao aperceber-me que o meu herói inesperado era muçulmano. Not your usual suspect. 

Eu ainda gosto de viajar, mas já me passou a sede de viajar, a vontade de visitar um lugar só porque nunca fui, só porque todos já foram ou porque todos querem ir. Sempre tive reverência por lugares sagrados e nem sempre  me atrevo a visitá-los, quando fui a Istambul não entrei na Mesquita Azul e só entro em igrejas se não há missa ativa. Simplesmente porque respeito o tempo de louvor que a meu ver não deve ser perturbado por turistas. 

 Ainda não me decidi onde vou passar o verão, quero visitar mais países africanos, porque sim, Quénia, Mali, Nigéria, só para nomear alguns países. Quero a história, a comida, os cheiros, a energia presente. Quero ir à China pelo mindset de uma cultura que sempre se adapta e se molda à realidade, sem nunca se perder. No Japão quero entender o conceito de Kaizen, de como pequenas mudanças podem ter impacto na qualidade de vida. O mundo continua a valer a pena.

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