O livro de Toni Morrison O Olhar Mais Azul é um dos mais banidos das salas de aula e bibliotecas nos EUA. Publicado em 1970, o primeiro livro da autora afro-americana continua a incomodar quem o lê por trazer temáticas como abuso sexual, incesto e racismo. No entanto, mais incómodo ainda é o facto de o livro trazer complexidade à experiência negra, algo a que a primeira mulher negra a receber o Prémio Nobel da Literatura (1993), nos habituou nas suas diversas obras e que foi a sua visão enquanto escritora e editora. É um desafio escrever a experiência negra enquanto pessoa negra. A falta de acesso a referências na literatura a essa experiência livre do “white gaze”, ou seja, do olhar branco, como Morrison chamava à caracterização limitada e tipifica em moldes estereotipados dessas vivências, é um dos grandes obstáculos apontados pela autora para o exercício de uma escrita centrada puramente no universo da realidade de pessoas negras, que não exclui, mas não coloca o branco numa posição central.
A presença do “olhar branco” reflete-se também na produção literária de pessoas negras que ao escrever parecem falar para uma audiência branca, ora na tentativa de educá-la, ora na tentativa de desfazer esses estereótipos engajando-se num exercício de desfazer algo que não existe “o negro típico”, sucumbindo à distração proposta pelo racismo, que é o abandono da reflexão sobre a nossa própria realidade.
Maame Blue, uma das entrevistadas do Afrolis Videocast, é uma escritora londrina ganesa que vivenciou a dificuldade de escrever em “primeira pele”. O seu romance de estreia Bad Love (2021) trata o tema do amor nas suas mais variadas formas e desloca-o para diferentes geografias. O livro foi a sua primeira publicação e foi contemplado pela iniciativa da editora Jacaranda Books “Jacaranda’s Twenty in 2020” que visava publicar 20 autores negros no ano de 2020. Mas, para Maame Blue, o processo de encontrar a voz de pessoas negras nem sempre foi fácil. Confessou ter-se distraído ao escrever uma personagem que acabou por identificar branca quando a sua intenção era escrevê-la negra. Referiu que o hábito de ler livros que descrevem a experiência branca a desviou inconscientemente do seu objetivo. Quantos autores e autoras negros e negras não passaram por isso? Será que se apercebem disso? Para Maame Blue, foi um choque, aperceber-se deste fenómeno, e relacionou-o à falta de acesso a obras que a representam. A palavra-chave aqui é o acesso e não tanto a falta de existência dessas obras. A primeira obra em que se reviu foi Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Adichie que na sua aclamada Ted Talk de 2010, “O Perigo de uma história única”, levanta a questão do fenómeno da auto-representação alienada. Os perigos de uma história única, vão desde a ignorância sobre, o desinteresse por ou a obliteração de realidades múltiplas. Reconhecer que a nossa realidade real (é mesmo isso, real!) também é digna de ser registada é uma forma de desapredizagem pela qual muitos escritores negros acabam por ter de passar ao abraçarem o caminho da auto-representação na literatura.
Maame Blue ficou espantada ao ler Americanah e, apesar de não se identificar com muitos aspetos do que era relatado, reconhece que muitas das possibilidades de existência ali apresentadas lhe eram familiares. “Isto também nos é permitido? Estar em histórias?”, concluiu ao ler Americanah. É certo que existem outras referências de pessoas negras que escrevem e há muito, a própria Maame referiu isso. O difícil é ter acesso a essas obras. Será que a causa é apenas o facto de o mercado não as entender relevantes? Será que é por estarmos rodeados de referências da literatura ocidental branca e serem essas as consideradas para avaliar o nosso grau de cultural geral/universal/académica/popular (até mesmo no continente africano), que nos distraímos das nossas?
Nos últimos anos, em Portugal, vê-se uma tendência para o investimento na tradução de obras clássicas de autores e autoras negras, sendo alguns exemplos Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola, de Maya Angelou (2017), Não Serei Eu Mulher, de bell hook (2018), Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis (2023), O Olhar Mais Azul, de Toni Morrison (2023). Este último foi traduzido para o português, pela editora Presença, tendo chegado às livrarias em março passado, mais de 50 anos após a sua publicação.
Pensando na produção de autoria negra portuguesa, mais contemporânea, podemos dar o exemplo da edição em português do livro de Grada Kilomba Memórias da Plantação. Episódios de Racismo quotidiano – “uma compilação de episódios quotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas.” O livro foi escrito originalmente em inglês e publicado na Alemanha, país onde a autora e artista interdisciplinar vive desde 2008. Com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, Grada Kilomba viu o seu trabalho reconhecido internacionalmente antes de ser acolhido em Portugal e, recentemente, acabou por ser distinguida com o título de Doutora Honoris Causa pelo ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, em Lisboa, instituição onde se formou em Psicologia Clínica e Psicanálise. Foram precisos 10 anos para que tivéssemos acesso ao seu trabalho que chegou a Portugal em 2017.
Como interpretar esta dinâmica de aproximação e afastamento de narrativas relacionadas com pessoas negras?
A Cor Púrpura (1982) da afro-americana, Alice Walker, foi simultaneamente aclamada e rejeitada. O romance epistolar conta a história de Celie, uma jovem de catorze anos que é abusada sexualmente pelo pai e acaba por ter dois filhos que lhe são retirados por ele e é obrigada a casar. Fala também de amizade, amor, patriarcado, racismo e igualdade de género. As cartas de Celie destinadas a Deus e à sua irmã Nettie, nunca foram enviadas para nenhum deles, mas a quem chegaram não deixaram indiferentes. Apesar de ter recebido o Prémio Pulitzer um ano após a publicação do livro (1983), a obra recebeu várias críticas pelos temas que abordava. Da parte da comunidade negra houve também uma reação visceral. Incesto, alcoolismo, auto-ódio, homossexualidade, traição, pobreza, iliteracia, estes são temas feios que revelam os nossos “segredos”.
Imagino que parte desse sentimento de ultraje venha de pensamentos como: “Será que queremos que eles (o olhar branco que nos impede de ser autênticos) saibam tudo sobre nós?; Precisamos de heróis!; Chega de sofrimento e desgraça!” Mas por outro lado, pergunto-me se o facto de a nossa “desgraça” ser retratada por nós mesmo não lhe oferecerá contornos acompanhados por generosas doses compaixão e dignidade? Porque afinal de contas a experiência completa de humanidade envolve inevitavelmente momentos de ausência de graça.