Marcha das Mulheres Indígenas: uma outra enunciação da primavera

É setembro: enquanto, neste hemisfério, o outono se aproxima; no Brasil, a primavera começa a apontar os dias mais quentes. Ambas as estações, cada uma à sua maneira, anunciam aspectos de movimento, passagem e transformação. Com a licença desses gestos da terra, começamos nossa conversa por aqui.

As flores que anunciam a primavera, no Brasil, são humanas. São mulheres indígenas de mais 300 etnias que se preparam para dar as mãos, ritualizar, politizar, reconectar, reivindicar, semear e esperançar uma primavera para o mundo. Prevista para acontecer nos dias 11, 12 e 13 de setembro em Brasília, uma das formas de gestação desta primavera é a III Marcha das Mulheres Indígenas, cuja temática é “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade através das raízes ancestrais”.

Começamos a pensar a primavera pelo corpo das mulheres indígenas porque a relação entre corpo e território, na maior parte das cosmopercepções originárias, é indissociável. Essa noção, que se origina nas lutas e movimentos anti-extrativistas de mulheres indígenas e de comunidades tradicionais do centro e do sul de Abyayala (conhecida como América Latina), refletem a rejeição do projeto colonial que sempre operou na lógica da exploração da terra.

Um dos pilares que sustenta a continuidade desse projeto de violência e silenciamento contra diversos corpos humanos e não humanos é o roubo de territórios indígenas. Como dito, para nossos povos, o território não significa propriedade, mas corpo. E aqui uma pergunta que, quando respondida, pode revelar ao leitor o sentido prático e essencial desse conceito: É possível pensar um corpo saudável se este for repartido ou envenenado? Vai aqui uma pista para essa reposta, inscrita no documento final da primeira marcha divulgado pela ANMIGA – Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade:

“Nós estamos fincadas na terra, pois é nela que buscamos nossos ancestrais e por ela que alimentamos nossa vida. O território para nós não é um bem que pode ser vendido, trocado, explorado. O território é nossa própria vida, nosso corpo, nosso espírito. Lutar pelos direitos de nossos territórios é lutar pelo nosso direito à vida. A vida e o território são a mesma coisa.” (MARCHA DAS MULHERES INDÍGENAS, 2019)

É, pois, precisamente o que está em jogo no Brasil e, por consequência, devido à crise ambiental, o que coloca em risco o mundo todo. A tese do Marco Temporal, cujo objetivo é alterar a já frágil e complexa política de demarcação de territórios indígenas, é capitaneada no Congresso Nacional pela chamada “bancada ruralista”. Radicalmente oposta à compreensão indígena, o agronegócio, no Brasil, entende a terra como objeto de exploração, impondo a ela uma série de violências como mineração e monocultura.  Considero importante apontar que o grupo político representante desses interesses é composto, em grande parte, por herdeiros diretos das políticas coloniais de divisão territorial do Brasil. Portanto, a tese do Marco Temporal, a qual juristas e ativistas indígenas têm chamado de “genocídio legislado”, representa o maior ataque aos direitos territoriais indígenas pós Constituição de 1988. Isso demonstra o anseio dessa classe pela continuidade do projeto colonial.

Nesse sentido, estamos em busca não apenas dos diretos básicos e fundamentais para a manutenção da vida, mas também interromper o avanço da colonialidade e suas políticas extrativistas sobre nossos corpos e territórios. Reflorestar mentes para transformações que, como as estações mencionadas no começo desse texto, são fundamentais para a saúde do planeta.  

Por fim, relembro que para os povos indígenas a terra é um ser vivo, inteligente, sensível e sagrado. Devemos a ela reverência, gratidão e cuidado. Que esse movimento da primavera de reaquecer, colorir e reflorestar inspire o apoio e a ação de parceiros nesse outono que se aproxima, que nossos esforços para derrotar o marco temporal seja o anúncio de uma primavera não só para nós, mas para o mundo.  

 

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