Mind the Gap

Eu estou a viver em Londres há mais de seis anos e uma das mais icónicas imagens de Londres é o sinal de “mind the gap”, que pode ser traduzido com cuidado com a lacuna o “espaço vazio entre”.  Sendo este o meu último texto para a Afrolis, eu quero focar-me na outra face do meu primeiro tema: A oportunidade de uma história plural e a focar-me na gap/lacuna criada por histórias singulares.

No mundo das notícias, vidas negras ocupam o lugar do suspeito, do criminoso, do pobre destituído a viver em barracas, dos povos em guerras tribais com crianças soldado e crianças de barriga cheia de ar. A narrativa está tão entranhada na visão de grandes e pequenos que quando temos de aparecer noutros contextos, somos editados. Nós somos ativistas e não deputados ou sociólogos, nós recebemos apoio, logo nunca poderíamos fazer parte de uma missão humanitária para ajudar outros. 

É preciso começar a ouvir outras fontes de notícias, desligar a televisão, ler mais livros escritos por mulheres, ler clássicos orientais, estudar a primeira e a segunda guerra mundial, ler sobre as lutas de libertação africanas e ler a versão Russa da segunda guerra mundial ou ver a versão australiana do mapa do mundo e “mind the gap”! 

Pausar e pensar, e se…?

Voltando ás histórias singulares, a Oprah vai produzir uma nova versão da Côr Púrpura, uma obra icónica de Alice Walker, que trata de temas sensíveis de violência doméstica, racismo, homossexualidade e trauma geracional. A primeira versão foi dirigida pelo Spielberg, um homem de extrema sensibilidade que, a meu ver, criou um uma obra de arte. Um mestre em despertar emoções, ele claramente conta uma história com imagem, sons e ângulos fotográficos que complementam a palavra escrita.  Este filme mexe comigo sempre que o vejo, nem que seja um excerto, por menor que seja. Não me lembro de ter chorado, pausado, respirado tanto em filme nenhum. E mesmo ao contar algumas cenas, sinto-me overwhelmed pela emoção.  

E aquela não é a minha história, mas é a história de gente como eu, tem duas irmãs que brincam o jogo das mãos como eu jogava com a minha irmã, gente que vai à igreja ao domingo, como eu cresci a ir, gente que lutou e perdeu, gente que venceu muito tarde, gente que desistiu, mas tudo gente como eu. E pode ser muito difícil reconciliar esse reconhecimento com a nossa realidade. Muitos boicotaram o filme por isso mesmo, por mostrar uma realidade nua e crua de uma família Negra, num espaço e num tempo finito, é verdade, mas que estava perto demais de nós.  Uma realidade que parecia crua demais, nua demais, uma realidade que doía demais. 

O livro foi banido das escolas americanas dois anos depois da sua publicação, desde 1984. E recebeu revisões mistas, mas uma coisa curiosa foi ver pessoas negras a se sentiram expostos pelo livro, não pessoalmente, mas como um coletivo, uma comunidade, como se violência doméstica, abuso sexual, trauma geracional e homossexualidade fossem coisas “nossas” que deviam ser mantidas fora do olhar alheio. E esta é a lacuna que as histórias singulares criam em nós. Num tempo em que poucas histórias no cinema se centravam em vidas negras, um filme tão repleto de emoções, e que trata de temas complexos, pode ser interpretado como a única realidade dessas vidas. 

Porquê uma nova versão do filme? Como será a versão da Oprah? 

Eu sinto que será uma versão mais composta, mais bonita, mais musical, mais engraçada e com menos sentimento. Essa gap é maior, mais insidioso, e mais importante do que nós imaginamos. Essa gap entre a realidade e a verão do que nós podemos suportar e o que nos é permitido expressar. Como seria recebido o filme Seven, se o Morgan Freeman e não o Brad Pitt fosse o polícia a executar o serial killer? Quem tem direito à ira e à vingança? Quem incorpora os pecados mortais nas histórias e estórias? De quem é a preguiça, senão dos povos escravizados e forçados a trabalhar sem recompensa? E a luxúria não é pecado do violador, mas de quem é explorado e ao ponto de acreditar que só tem um corpo para vender. A ganância, por ser pecado dos poderosos que controlam a narrativa, é um pecado menor, quase virtude se criar empregos e pagar 1% de impostos.  Milhares de filmes americanos representam personagens racializadas a perdoar e dar a outra face, lutarem pacificamente, quando confrontadas com as maiores barbaridades enquanto a ameaça da violação de uma filha justifica a destruição de uma comunidade em Taken

Não existem comportamentos ou reações exclusivos a nenhum grupo de pessoas, mas as estórias são editadas para prescreverem respostas que negam parte das emoções humanas a mais de metade da população mundial. Cabe a nós preenchermos essa lacuna ao contarmos estórias onde usamos toda a palete de emoções disponíveis ao ser humano quando criamos e reportamos a nossa realidade. 

A gap é insidioso na edição e divulgação de formas de arte reconhecidas como negra e apresentadas por artistas negros. Pois quando existem escritores, cantores, dançarinos, coreógrafos, fotógrafos, modelos… negros, a edição e divulgação não são negras e o resultado é uma versão ocidental de tudo o que é nosso, desde o funge á kizomba – a arte, a dança e a moda urbana, ou seja, negra. Uma subcategoria que denuncia a origem e o valor intrínseco dela. A gap é importante no perpetuar de identidades estáticas e fragmentadas, baseadas na repetição do mesmo protótipo de ser. E quando nos sentamos para criar, somos guiados por um sentido mais ou menos consciente do que é criar while black, como uma pessoa negra. Seguindo um editor invisível que dita as cores e padrões de um artista plástico, os sons e o género de uma cantora, os temas e as palete de emoções disponíveis para as personagens de um escritor. 

Música do mundo, escritores lusófonos, o sul global, arte urbana, são gavetas criadas para classificar a arte criada por gente racializada, que limitam expressão artística, ao criarem critérios de pertença. E um verdadeiro artista tem de escolher entre a sua verdade e a gaveta onde o crítico o encaixará. E a gap está aí mesmo, entre a verdade e a gaveta. As gavetas são dos críticos, os tais que não terão estátuas erguidas em sua honra. 

Mind the Gap! Foquemo-nos nesse espaço entre a verdade e a gaveta, porque é aí que encontramos não a lacuna que nos separa, mas a verdade que une a condição humana. A Toni Morrison, não se sentiu forçada a mudar a etnia dos seus protagonistas só porque ganhou o prémio Nobel da literatura. A mana Sara, escolheu ser Sara Tavares e não simplesmente a Whitney Houston portuguesa. A Buika é uma cantora espanhola negra que canta flamenco e jazz, e o público reconhece-se na verdadeira expressão das suas artes. 

Neste meu último texto eu apelo a que todos os criadores se libertem das gavetas e mergulhem nessa gap. Criemos novas narrativas, novas melodias, novas arquiteturas, novas danças onde a nossa verdade é mais poderosa do que a gaveta que a quer conter.  A Afrolis como meio de comunicação, tem-se focado nessa lacuna com a visão de demonstrar que Lisboa não está cheio de negros excepcionais, mas que nós somos a norma. Pessoas interessantes e interessadas em fazer com que a sua vida toque e transforme outras vidas.  

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