Um Momento de Escuta e Partilha no Teatro do Bairro Alto

Na quinta-feira passada, dia 6 de abril, o Teatro do Bairro Alto recebeu o primeiro da série de três episódios intitulada “Ritual de Escuta”, produzida pela Afrolis e gravada nos estúdios do Hangar – Centro de Investigação Artística. O primeiro episódio, com o título  “A Conversa”, é um audiodrama da autoria de Lara Mesquita, atriz e dramaturga, baseado na preparação da conversa em que os pais de filhos criados em relações inter-raciais terão de ter um dia sobre questões raciais.

O enredo gira em torno das dúvidas, esperanças, determinação e incertezas do casal inter-racial, interpretado pelos atores Daniel Moutinho e Manuela Paula, que procuram um caminho para essa conversa inevitável, seja por iniciativa própria ou por pressão da sociedade. O episódio tem cerca de 20 minutos de duração e leva o ouvinte a um mundo de reflexão sobre o tema, apresentando as dificuldades que os pais enfrentam para iniciar a discussão e lidar com as emoções que surgem.

O evento contou com a participação de aproximadamente 30 pessoas, que estiveram presentes na Sala Manuela Porto do Teatro do Bairro Alto, num ritual de escuta para ouvir o episódio e, posteriormente, compartilhar suas experiências pessoais e inquietações sociais.

Durante a conversa, uma das intervenientes descreveu a dificuldade em viver como uma pessoa negra sob o olhar de pessoas brancas, um desconforto que diz ter sentido durante os anos em que viveu no Porto. Também da audiência se ouviu o testemunho de uma das participantes que, com lágrimas nos olhos, partilhava momentos emocionalmente dolorosos acerca “desse olhar”. Um olhar difícil de descrever em palavras, menciona, mas que a fazia sentir pequena e desconfortável, como se não pertencesse, e não devesse estar no lugar que ocupava. A participante dizia que esse sentimento sempre foi reprimido e normalizado, algo que não deveria ocorrer. Mas neste momento de escuta e partilha, esta pessoa conseguiu, pela primeira vez, explicar o incómodo que terá sempre sentido em espaços onde era a única pessoa negra.

Para uma das mães presente na audiência, algo que mais a magoou foi quando a sua filha, fruto de um relacionamento inter-racial, disse: “mãe já percebi o que é isto do olhar”. Já pequena, esta criança percebia o olhar sobre o corpo negro quando este entra em espaços maioritariamente brancos. E a pergunta ainda se mantém — como se fala e quando é que se deve falar com uma criança, independentemente da sua etnia, sobre racismo?

Uma mãe branca  participante neste ritual de escuta e conversa também partilhou que é difícil introduzir uma educação antirracista em ambiente escolar. É desde cedo, como contou esta mãe, que as crianças já começam a discriminação entre os seus pares. Mas quando os pais manifestam esse desconforto nas escolas — como foi o seu caso — é sugerido pela direcção que os pais sejam responsáveis por esta acção. O que, para a participante, não é a solução. É necessário algo que envolva a instituição, a associação dos encarregados de educação e uma intervenção mais concertada. Mas como podem os casais de uma relação inter-racial resolver os conflitos de discriminação racial que acontecem frequentemente dentro do meio escolar, entre alunos? Uma das mulheres da audiência, que nasceu numa família inter-racial, falou-nos da sua experiência dentro da escola. Partilhando que sendo a sua mãe branca e o seu pai negro, as relações de poder eram diferentes, ou seja, facilmente ouviam a sua mãe mais do que o pai. Uma experiência que contrasta com a de uma das outras intervenientes, uma mãe negra, que quando reclamava na escola de diversas situações de racismo sofridas pela  filha, as pessoas olhavam para ela como se fosse uma angry black woman, tal como mencionou. Por essa razão, teve de recorrer sempre ao pai branco para que as suas reivindicações fossem ouvidas, tal como aquilo que se poderá ouvir no primeiro episódio “A Conversa” do audiodrama da Afrolis.

A série “Ritual de Escuta” terá mais dois episódios, que serão publicados ao longo de 2023 e levados a espaços públicos para um Ritual de Escuta e Conversa, em que o público poderá ouvir os comentários dos atores, da diretora artística e da argumentista. A série pretende promover a reflexão e o diálogo sobre questões relacionadas com a mulher negra de forma a incentivar a compreensão e a aceitação da diversidade cultural.

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