O processo de descolonização com Aurora Almada e Santos

Aurora Almada e Santos é cabo-verdiana, nascida no interior da Ilha de Santiago, no concelho agrícola de Santa Catarina, que é um concelho com muita história em Cabo Verde, segundo a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Os seus avós, tanto do lado materno como paterno, eram agricultores e os seus pais eram funcionários públicos. Viveu em Cabo Verde até 1998, altura em que se mudou para Portugal para terminar os estudos secundários e depois ingressar na universidade. Licenciou-se em História na Universidade Nova de Lisboa, fez um curso de especialização na área de arquivo e começou a trabalhar no arquivo da Câmara Municipal de Lisboa. Depois seguiu-se o mestrado, doutoramento e acabou por ficar em Portugal a trabalhar na academia. A sua área de especialização é a dimensão internacional da descolonização portuguesa. Em entrevista, Aurora Almada e Santos fala das nuances da colonização e descolonização portuguesa.

 

Carla Fernandes (CF): A sua área de estudos é a dimensão internacional da descolonização portuguesa e tem se falado muito de descolonização nestes últimos anos. Mas eu gostaria de começar por falar pela colonização portuguesa. 

Aurora Almada Santos (AAS): A colonização portuguesa tem a característica de, apesar de Portugal ter sido dos primeiros países a entrar em contacto com África, ter se desenrolado ao mesmo tempo que as outras potências europeias, como é o caso da França ou do Reino Unido. Porque até finais do século XIX, Portugal tinha uma presença muito pequena, no fundo, no continente africano, praticamente, se limitando às zonas costeiras. E foi, então, no contexto da chamada corrida a África, após a Conferência de Berlim, no final do século XIX, que Portugal começou uma penetração para o interior e uma população efetiva. E em seguida não diferenciou tanto do que aconteceu com as outras potências europeias, sendo que temos que ver que Portugal tinha menos recursos, tanto materiais como humanos, para fazer essa colonização. A colonização portuguesa no fundo por uma certa transplantação para o continente africano daquilo que eram algumas das características do estado português, nomeadamente, a nível de administração, do exército, da regulamentação da vida social.

 

CF: Centra-se aqui essencialmente em África, mas trabalha também o território brasileiro?

AAS: No meu caso, não trabalho o Brasil, sendo que a colonização portuguesa no Brasil foi um bocadinho anterior à africana e teve características próprias, nomeadamente, a questão do tráfico transatlântico de escravos, em que houve um número maciço de pessoas que foram levadas de África para o continente americano. E tem também a característica o facto de o Brasil ter se tornado independente logo no início do século XIX, na onda das vagas de independência que aconteceram no continente americano, começando pelos EUA e depois propagando-se. Portanto, no meu caso, centro-me mesmo mais especificamente na descolonização dos territórios africanos não tanto no Brasil.

 

CF: Então é aí que nos vamos centrar. A História tem sempre zonas cinzentas. Qual é a maior zona cinzenta, a seu ver, relativamente à colonização portuguesa, ou algumas crenças sobre a colonização portuguesa? Uma zona em que haja pouca clareza relativamente ao tipo de intervenção portuguesa ou mesmo resistência ou resposta da parte dos territórios ocupados por Portugal?

AAS: Eu acho que existem muitas. Infelizmente, aqui em Portugal, as pessoas que estudam tanto a colonização como a descolonização portuguesa é um número muito limitado. Existem várias razões que explicam isso, e uma das quais é, obviamente, os constrangimentos aos quais a academia portuguesa tem estado sujeita. Mas eu acho que um dos temas que ainda falta desconstruir é que ainda há muito na mentalidade das pessoas, não tanto dos investigadores, mas de pessoas que não são especializadas na área de História que acreditam que a colonização portuguesa foi algo benéfico.  Essa ideia ainda perdura na sociedade portuguesa e é necessário desconstruí-la. E é necessário desconstruí-la de estudos, por exemplo, dos inúmeros massacres que foram perpetrados contra os povos africanos, que aqui em Portugal praticamente não se fala. Há cerca de um ano, o primeiro-ministro, António Costa, pediu desculpa pela questão de Wiriamu [Moçambique], mas este foi simplesmente um, entre muitos outros massacres que aconteceram, sendo que Wiriamu teve lugar já na parte final do colonialismo português, já em [19]73. Mas anteriormente houve inúmeros outros. E falta ainda estudarmos, por exemplo, e ver o impacto que tiveram nas populações africanas. Sobretudo ver que tipo de ideias é que levaram a esses massacres. Porque, claramente, se os portugueses considerassem os africanos como estando no mesmo patamar de igualdade como seres humanos como eles, obviamente que não massacrariam ou, pelo menos, não o fariam na dimensão que o fizeram. Portanto, por trás desses massacres está um conjunto de ideias racistas e nós temos que as estudar. Eu acho que, se calhar, essa desconstrução do mito de que a colonização portuguesa foi algo benéfico, acho que é algo que ainda temos que trabalhar na sociedade portuguesa.

 

CF: Esse é realmente um ponto recorrente do mito do bom colonizador relativamente a Portugal. E uma das formas, acredito que se poderia trabalhar a desconstrução desse mito, seria um maior investimento na educação sobre o que foi a colonização. E já mencionou aqui os estudos sobre massacres os quais não temos muita informação. Falou também da falta de recursos das universidades e que outras lacunas podem apontar para a resistência no desvendar de áreas cinzentas sobre a colonização?

AAS: Eu acho que essa questão dos constrangimentos económicos é algo transversal por toda a academia portuguesa, mas, no caso da colonização/descolonização portuguesa, eu acho que há muito pouca gente interessada em estudar. Não sei porquê. É algo estrutural na sociedade portuguesa no século XIX e quase até aos finais do século XX, mas é um tema que não tem atraído muita investigação. Pelo menos, posso falar no caso da Universidade Nova de Lisboa, no Instituto de História Contemporânea, onde estou inserida, há muito pouca gente a estudar o século XIX português e, sobretudo, a colonização em África. Portanto, eu acho que é um tema que as pessoas não têm visto como apelativo na história portuguesa. Enquanto, por exemplo, o período da expansão, os séculos anteriores XV, XVI, XVII e XVIII têm muito mais pessoas a dedicarem-se a esses estudos. Acho que também falta aqui da parte dos professores e investigadores tentarem fazer um trabalho de mobilização junto aos alunos e tentar chamar-lhes a atenção para temas que podem ainda ser estudados. Depois, quanto à sociedade em geral, desconstruir esses mitos que ainda existem na mente das pessoas, acho que falta mais divulgação; o mudo académico fazer a ponte com a sociedade civil, nomeadamente através da imprensa, da televisão, ou de sessões em comunidades, em grupos associativos. O conhecimento está muito limitado à academia e depois não passa para as pessoas. E uma última vertente que gostaria de passar é a educação. O conhecimento que é produzido pela academia, depois de ser traduzido nos manuais escolares e a forma como os professores ensinam nas escolas. E aí é o primeiro passo para a descolonização, para a forma como a descolonização portuguesa é vista na sociedade. Acho que nesse aspeto o ensino poderia fazer mais, porque uma pessoa, uma cidadã portuguesa que não vá para a universidade estudar História, os conhecimentos que tem sobre o passado colonial português são aquilo que aprendeu no secundário e um pouco aquilo que vai através das suas leituras, dos seus interesses.  E, nesse aspeto, o ensino secundário é algo fundamental para estruturar o pensamento que as pessoas têm sobre esses tempos. E acho que se poderia fazer mais nos currículos escolares.

 

CF: Outro motivo que muitas vezes se apresenta relativamente ao interesse em fazer pesquisar ou trabalhar temáticas que tenham a ver com a colonização mais para o final do século XIX e início do XX, tem de ver com o facto de ser um passado muito recente e de alguns dos intervenientes e seus parentes diretos ainda estarem vivos, e terem estado envolvidos em alguns dos processos da colonização. E a Aurora falava de massacres que houve, por exemplo. Algumas pessoas acreditam que tem de ver com este fenómeno. Qual a sua opinião relativamente a esta possibilidade?

AAS: Eu acho que essa questão de termos ainda pessoas vivas têm vantagens e desvantagens. Uma das grandes vantagens é o facto de nos permitir esclarecer muitos aspetos que não estão documentados, porque nem tudo foi escrito. Portanto há questões que nós só sabemos através de pessoas que intervieram nesses processos. Nesse aspeto, haver pessoas vivas, eu acho que é uma grande vantagem porque nos permite esclarecer algumas questões. Uma desvantagem é o facto de poder ferir algumas sensibilidades. Ainda existem pessoas vivas, mas isso é uma questão que nós temos que saber trabalhar. Há um conjunto de regras éticas a aplicar, por exemplo, quando fazemos entrevistas, como devem ser conduzidas e a forma como devem ser tratados os dados, que podem ser aplicadas para minimizar essas desvantagens. 

Acho que nos próximos tempos, nos próximos anos, vamos ter um grande desafio na História Contemporânea, que é o facto de que a geração que interveio no processo da descolonização que vai desaparecer. E eu acho que temos aqui um desafio para datar as memórias dessas pessoas. E eu acho que nos próximos anos se deveriam fazer projetos em torno dessa questão, da preservação dessas memórias. 

 

CF: Que posicionamento tem assumido Portugal relativamente à descolonização ao longo dos anos? 

AAS: Após a independência das colónias, houve um período um pouco mais complexo por causa da questão da guerra civil, por exemplo em Angola, depois houve a questão da guerra civil em Moçambique. E após a normalização das relações, da criação da CPLP, acho que a perspetiva aqui em Portugal… são várias. Acho que a nível político, foi um processo sofrido, do ponto de vista português, conseguir entre aspas livrar-se das colónias, o que lhe permitiu também virar-se para a Europa, depois a adesão à União Europeia

Depois pessoas, os chamados retornados que vieram de Angola, Moçambique vêm com uma perda dos seus bens, das suas vidas. Muitos nem sequer conheciam Portugal, praticamente não tinham relações com o território português. Depois há um grupo na sociedade portuguesa que considera que Angola, Moçambique, Guiné ou Cabo Verde estariam muito melhor se tivessem continuado ligados a Portugal. Portanto, há aqui muitas visões e depende dos valores da sociedade portuguesa de que estamos a falar. 

 

CF: Em termos políticos, como é que o setor político se tem posicionado? Quando pensamos em descolonização, não é apenas sair fisicamente do território, o que devemos considerar quando falamos em descolonização?

AAS: Essa questão do conceito de descolonização é uma questão importante. Até na época, os países africanos, as organizações africanas anti-coloniais frisavam que não era só a questão da independência política, devia haver uma independência económica, de realmente os países africanos independentes passarem a ter uma soberania sobre os seus próprios recursos naturais e, na maior parte dos casos, não aconteceu. Muitos países conseguiram a independência formal, mas os recursos naturais continuaram nas mãos das antigas metrópoles e de empresas internacionais. E isso é uma situação que ainda hoje muitos países africanos não conseguiram ultrapassar o estatuto de fornecedores de matérias-primas para os países do norte global. Essa questão da independência, do conceito de independência, de que tipo de independência que, nomeadamente, alguns países africanos conseguiram ganhar nos anos [19]60 é algo bastante pertinente. Relativamente a Portugal, acho que não tem havido muita reflexão sobre esse passado, sobre o que foi a descolonização portuguesa, os impactos… Como o facto de países como Angola ou Moçambique terem enveredado para a guerra civil. Eu acho que essa reflexão não existe. E não estou a ver nos próximos tempos a sociedade portuguesa, as pessoas a estarem em torno desses eventos.

 

CF: E que tipo de resistências se verificam em torno de vários processos e áreas de intervenção no compromisso com a descolonização? Nós verificámos que o tema da descolonização que coloca o foco sobre, por exemplo, descolonização de museus, na devolução de peças que foram retiradas dos territórios ocupados e em diversas áreas nas quais se tem de intervir quando pensamos em descolonização. Identifica alguma na qual se note mais resistência? Falar talvez de áreas de intervenção em que haja alguma permeabilidade e áreas em que se verifique alguma resistência.

 AAS: Muita da resistência que existe na sociedade portuguesa à questão da descolonização é, no fundo, uma falta de debate. Porque, no fundo, não há um debate aprofundado sobre esse tema.

De vez em quando, nós vemos que há pico, há momentos em que, nomeadamente, na comunicação social estas questões entram, mas eu tenho a sensação que é muito por influência daquilo que se passa lá fora. Por exemplo, a questão das estátuas e dos espaços públicos, eu acho que foi um bocado consequência do debate que se passa lá fora e depois foi trazido para cá. Essa questão também da descolonização dos museus aqui, no fundo, na sociedade portuguesa. Não é que eu seja contra aquilo que se passa lá fora e depois tenha um impacto aqui. Não é isso. Aquilo o que estou a dizer é que não há, de origem, de génese portuguesa um debate sobre o tema. Eu acho que essa é uma das principais questões que tem gerado resistência à descolonização. Porque se houvesse debate seria possível identificar onde se deve intervir. Essa questão dos manuais é fundamental; a questão dos museus também. Tanto quanto sei, há alguns projetos de investigação nesta área e acho que também há iniciativas de fazer o levantamento nos museus portugueses; a questão das estátuas no espaço público. Lá está uma questão bastante relevante e temos que falar, mas há outras que nós não falamos, como a própria descolonização da língua portuguesa. A língua portuguesa tem muitas expressões racistas, que são utilizadas cotidianamente pelas pessoas sem pensarem, sem refletirem sobre esse tema. Depois temos de ver também a questão das redes sociais. O que as pessoas escrevem também transmite muito daquilo que são as ideias racistas e as ideias por trás da colonização que ainda perduram na sociedade portuguesa. Acho que no geral falta aqui debate, mais consciência de que esse debate é necessário.

 

CF: A sua área de estudo é a dimensão internacional da descolonização portuguesa. Qual foi o papel dos países ocupados e das suas diásporas na sua descolonização?

AAS: A descolonização portuguesa aconteceu mais tarde que as outras colonizações, como por exemplo, a do Reino Unido, a da França, da Bélgica ou da Holanda que teve como característica o facto de terem seguido um pouco o exemplo da Argélia, que para além da intervenção militar contra a França também desenvolveu uma ampla campanha diplomática internacional contra o governo francês. E seguindo um bocadinho esse exemplo, os movimentos de libertação, nomeadamente, PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde], o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], a FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique] ou a FNLA [Frente Nacional de Libertação de Angola] tentaram internacionalizar a questão colonial portuguesa. Isso aconteceu de inúmeras formas; uma das formas de internacionalização foi contactos diretos com países através dos quais poderiam contar para a luta e alguns países foram, por exemplo, os países do bloco soviético, China, Cuba, os chamados países socialistas da época. Com os países ocidentais também mantiveram bastantes contactos, nomeadamente, com grupos da sociedade civil, como organizações que foram sendo criadas ao longo do tempo e apoiaram a luta dos movimentos de libertação. Essas organizações surgiram em vários países, nomeadamente, França, Reino Unido, EUA, Canadá. Por outro lado, os movimentos de libertação, nomeadamente os seus líderes, como é o caso de Amílcar Cabral, estiveram presentes em inúmeras conferências internacionais, como é o caso da [Conferência] Tricontinental de Havana, em 1966, que á muito conhecida, mas também em várias outras pequenas conferências que foram realizadas em diversos países e que permitiram dar visibilidade à luta pela independência das colónias portuguesas. E uma última dimensão desta internacionalização da luta pela independência esteve ligada com a relação que estes países criaram com relações internacionais, nomeadamente, a Organização das Nações Unidas, ou com a Organização da Unidade Africana que lhes deu então grande apoio a nível internacional. Esse apoio nem sempre foi de encontro àquilo que os movimentos de libertação queriam, mas ao longo do tempo, aproximando-se da década de [19]70, nomeadamente, através das Nações Unidas, esses movimentos conseguiram novo apoio diplomático e moral para a sua luta. 

 

 

 

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