Sónia Matos, presidente da Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas, AMUCIP, a primeira em Portugal, fundada em 2000, fala-nos do seu trabalho, mas também da importância de reconhecer que a união faz a força, pensando na experiência africana e cigana.
As fundadoras da associação conheceram-se num curso de mediadores socioculturais, promovido pelo ACM, Alto Comissariado para as Migrações. Segundo a publicação desta entidade (na altura Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas – ACIME) intitulada Mediação Sociocultural Um Puzzle Em Construção (2005), “em Portugal, a mediação – área de intervenção em contextos multiculturais –, apresenta como referencial temporal para as suas origens a década de 1990. Este acontecimento surge na sequência da entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (atual União Europeia), o que permitiu o acesso a projetos internacionais que deram a conhecer outros contextos e organizações sociais para quem a estratégia da mediação era fundamental. Desde então, a figura do mediador e o conceito de mediação têm vindo a ganhar significado e expressão social no nosso país, com uma maior incidência nos meios escolares, embora de um modo desregulado.” E foi o curso nesta área que deu a conhecer a um grupo de mulheres ciganas, e não só, o que é o associativismo e o que pode ser realizado por essa via. Desde então, Sónia Matos e as mulheres que trabalham na AMUCIP têm desenvolvido diversas atividades para promover a cultura cigana no país a partir da sua sede no Seixal. Estas mulheres identificaram que quando existe um grupo de pessoas com a mesma voz a força do trabalha é muito maior. A sua área de intervenção por excelência é a educação através da figura do mediador sociocultural. Carla Fernandes traz-nos mais detalhes através da entrevista realizada com Sónia Matos.
Carla Fernandes [CF]: Qual é o papel do mediador ou da mediadora sociocultural?
Sónia Matos [SM]: No ano 2000, estavam a realizar os primeiros cursos dos mediadores socioculturais. Já existiam alguns mediadores formados, mas eram homens, porque as entidades que promoviam os cursos de mediadores socioculturais achavam que seria um papel difícil para uma mulher cigana desempenhar. Portanto, que seria só o homem a conseguir assumir este papel de mediação. A mediação surge na necessidade de se poder chegar às culturas que são diferenciadas. Foi assim que nasceu o mediador sociocultural. No fundo, o mediador é a voz da família e tenta que as necessidades que existem na escola, relativamente aos seus educandos… o mediador faz um bocadinho isso, o acompanhamento que as famílias deveriam fazer, mas que não conseguem fazer, porque existe uma baixa escolaridade muito grande na comunidade cigana. Então os pais destas crianças têm muita dificuldade em ajudá-los neste processo e neste caminho de educação escolar. Portanto, o mediador existe por essa necessidade.
CF: Então o mediador sociocultural foi pensado mesmo para contextos escolares?
SM: Contextos escolares, sim. De início, o primeiro grande impacto, digamos assim, que a comunidade cigana consegue provocar na sociedade majoritária é esse. Ou seja, como é que é possível eles ainda viverem em pleno século XXI analfabetos? E, portanto, essa é a grande preocupação dentro da comunidade cigana. Enquanto eles não tiverem uma escolaridade maior, as possibilidades de terem uma vida melhor também são menores.
CF: Que progressos é que se verificaram depois de se ter criado esta figura do mediador sociocultural, que vocês possam ter identificado nas comunidades ciganas, principalmente?
SM: Sim. Nas comunidades ciganas, nós, através do Alto Comissariado, temos uma recolha de dados, e, portanto, houve uma mudança muito, muito grande relativamente à escola dentro da comunidade cigana, a partir do momento em que passaram a existir os mediadores socioculturais. Houve muito mais percurso escolar da parte dos jovens, ou seja, na primária, temos um número muito elevado; depois já começamos a ver um grande número na secundária, que era impossível há 20 anos, porque foi quando eu comecei. Na minha altura, as meninas ciganas saíam todas na quarta classe, ou seja, quando terminavam o primeiro ciclo. Já sabiam ler e escrever, não precisavam de mais. Portanto, a seguir passavam para aquilo que é chamada a universidade cigana, que é aquilo que se espera de uma mulher cigana, que é ser mãe, esposa e dona de casa. Depois, logo assim que saímos da escola, quando já sabemos ler e escrever para desenrascar, que é esse o pensamento, já não precisamos mais de escola, porque a seguir o nosso papel já está padronizado pela própria cultura. É aquilo que se espera e pouco mais do que isso.
CF: Mas, na altura, os rapazes prosseguiam ou iam para o secundário, por exemplo?
SM: Nessa altura, havia muito poucos, a verdade é essa. O número era muito, muito pequenino. Tanto nos homens como nas mulheres, notou-se uma grande evolução no segundo ciclo, mas chegamos ali ao 9º ano, e eles desaparecem.
CF: Tanto rapazes como raparigas?
SM: Tanto rapazes como raparigas. “Porquê?” Porque dentro da comunidade cigana, os pais, desde muito cedo, começam logo a trabalhar nos filhos a lei da sobrevivência. “Porquê?” Porque eles, quando crescem, não têm resposta na sociedade. É muito difícil tu conseguires um emprego sendo da comunidade cigana. Todos os jovens que se formaram, como eu, hoje são ativistas e estão a trabalhar em associações que formaram.
CF: Ou seja, aquela ideia, que muitas vezes tem, que a comunidade cigana não está interessada na educação, está também relacionada com a resposta que a própria sociedade não conseguem oferecer, quando eles realmente prosseguem o caminho educacional.
SM: Aliás, o comportamento da sociedade, quando ouve uma pessoa como eu a falar da comunidade cigana, a primeira reação da sociedade é: “Tu és cigana, mas és diferente. Tu já não contas.”
Eu acho que a comunidade cigana age consoante aquilo que a sociedade espera dela. Portanto, nós nascemos e é-nos incutido esse pensamento e esse sentimento, porque é isso que a sociedade nos transmite. Ou seja, resposta lá fora não há, não existe. Porque eu já tive várias situações na associação em que encaminhava mulheres para entrevistas [de trabalho] e quando lá chegavam e viam a sua imagem, o cabelo muito comprido e notavam que eram mulheres [ciganas] a vaga já estava preenchida. E, portanto, essa situação passa-se tanto na empregabilidade com a comunidade cigana, nos dias de hoje, assim como também se passa relativamente à habitação. Pessoas da comunidade cigana que tenham algumas capacidades e algumas formas de se desenrascar na vida e ter uma vida melhor não conseguem viver sem ser num bairro social, porque é muito complicado conseguirem alugar uma casa.
A AMUCIP tem essa experiência e é uma associação. Nós precisávamos de um espaço para desenvolver os projetos, hoje já não. Hoje já temos uma sede nossa que foi cedida pela Câmara Municipal do Seixal no ano passado, portanto, é recente, é muito nova. Mas foram precisos 22 anos de trabalho neste concelho e a trazer projetos a nível europeu para a região. E, portanto, aí agora, ao fim de 22 anos, a autarquia já percebeu que o nosso trabalho é necessário e que mais ninguém o consegue fazer e apostaram no nosso trabalho, que são 22 anos. Já provámos por A mais B que sabemos trabalhar, desenvolver o trabalho e dar continuidade ao percurso das mulheres ciganas, porque o nosso foco são as mulheres e as crianças. Mas, enquanto associação, para desenvolver os projetos nós necessitávamos de um espaço e então, sempre que saíamos para ver lojas para algo dar espaço, eu, como não tenho aquela imagem que é incutida dentro da sociedade — não sou morena, tenho a pele muito clara — normalmente, não se nota que sou da comunidade cigana. Portanto, estava tudo bem quando ia ver os espaços, mas assim que eu apresentava os estatutos da associação — associação para o desenvolvimento das mulheres ciganas portuguesas — os espaços já estavam ocupados. E foram mais de sete lojas que eu vi. E só consegui alugar um espaço ao Centro Paroquial da Arrentela, que tem várias lojas, que era a minha entidade patronal há 18 anos, e que já me conheciam, e sabiam quem eu era, e, portanto, alugaram-nos uma loja para desenvolvermos o projeto.
O que eu gostaria de aqui deixar claro é, se uma associação não consegue alugar um espaço, e trabalha das nove às seis e meia da tarde — o horário das associações —, não consegue alugar um espaço, imagina uma família cigana. Eu sei e sinto isso.
Eu aluguei a casa de minha mãe há pouco tempo. A minha mãe tem 74 anos e vive com meu irmão de 54, e eu aluguei uma casa em Paio Pires. Como digo, mais uma vez, a minha tez, a minha pele, não diz que eu sou da comunidade cigana, portanto, consegui alugar a casa. Depois quando lá levei a minha mãe para ver a casa, porque já estava tudo alugado, a vizinha do lado viu a minha mãe chegar e a primeira coisa que fez foi ligar para o dono da casa a dizer, “Você alugou a casa a uma cigana”. E, portanto, quando acabam os contratos de arrendamento, normalmente, eles dizem que precisam das casas e temos que sair.
CF: Que mitos sobre as comunidades ciganas é que vocês identificam nessas interações? Porque a ideia de que a comunidade cigana não se quer estabelecer, não quer viver em prédios, também é motivada pelo que acontece. Ou seja, quando vão para lá também são obrigados a ter uma vida nómada, viver de contrato em contrato.
SM: Sim, porque, à partida, a gente já sabe [que vai sair], e é uma sensação de vulnerabilidade. Ou seja, tu não te consegues livrar de um problema que não é identificado, porque, para todos os efeitos, não vivemos num país racista; porque não se contam minorias; porque não se identifica a minoria, e, portanto, a imagem que nós queremos passar para fora é que não existe racismo. O que existe é uma comunidade que gosta de viver à parte e de viver desta maneira, portanto, essa é a imagem que foi concebida pela sociedade, porque é mais fácil lidar com a situação dessa forma do que dizer “Não, eles não se integram, porque são obrigados a viver à parte e à margem, porque assim a sociedade exige.” E, portanto, é muito complicado.
Depois as professoras sentem alguma dificuldade em conseguir que essas crianças se sintam integradas. Porquê? Porque a gente vive isso todos os dias. A gente consegue sentir isso na pele. E, enquanto menina cigana, quando andava na escola primária, eu lembro da minha professora andar comigo pela mão e apresentar-me às colegas e dizer, “Olha lá a minha ciganita. É tão bonita, tão educada, que nem parece cigana”. Portanto, eu ia para casa a pensar, para ser bonita e educada não posso parecer cigana. São nestas pequenas coisas que a própria sociedade te vai moldando e te vai formatando. E tu nasces com este pensamento e depois é muito difícil dares a volta a esta situação.
Agora, depois de 20 anos de RSI [Rendimento Social de Inserção], porque para mim foi isso que promoveu a integração, a pequena integração que existe, foi o RSI que promoveu essa grande diferença.
CF: Como funciona o RSI?
SM: O RSI é uma medida para pessoas carenciadas com algumas dificuldades financeiras e o objetivo principal é… assinas um contrato de inserção e esse contrato de inserção faz com que a assistente social possa procurar um caminho juntamente com o utente para dar esse salto de integração na sociedade que é a própria assistente a iniciar com aquela família e assim se começa o processo. Nos primeiros anos de RSI havia muito, como identificado, o ensino recorrente para adultos — deixou de existir já — e muita gente da comunidade cigana passou a frequentar a escola. Pessoas que já não pegavam num lápis, se calhar desde o 3º ano ou do 2º ano [escolar] e já eram pessoas com quarenta e tal anos que voltaram a pegar numa caneta.
CF: E também interessa frisar, porque a Sónia falou num contrato, não é? Porque há muita ideia de que com o RSI as pessoas recebem dinheiro sem compromissos, sem fazer nada. Mas, há aqui um compromisso da parte que recebe esse valor. E se não cumprir, o que é que acontece?
SM: Para já, dizer que o apoio que é dado pelo RSI é irrisório, ponto um. Porque eles estão a dar aos adultos 120€ por adulto e 150€ por criança. Este é o pagamento do RSI mensal. Ninguém vive com 120€ por mês.
Pronto, agora é assim, a assistente social vê os pais e vê as crianças. As crianças estão na base da escola, assim que as crianças começam a ter faltas, a escola é obrigada a informar a assistente social. A assistente social chama os pais e fala com eles. Se se mantiver aquela situação o RSI é cortado. Há um compromisso de ambas as partes. E foi esse compromisso que obrigou as pessoas da comunidade cigana a mexerem-se. Ou seja, eles foram obrigados a ir para a escola, ou se fazerem cursos, que, na altura, foi o que me aconteceu a mim. Portanto, eu recebi, eu estive a receber essa prestação [durante] três meses e entrei logo num curso de mediadora, que tinha uma bolsa de 450€. É evidente que eu larguei logo o RSI e fui para o curso. O curso durou ano e meio e, portanto, depois desse salto e dessa oportunidade que me deram, eu nunca mais larguei. Eu já desconto para o estado há 22 anos. Portanto, acho que os meus três meses, que investiram em mim, valeu a pena a contrapartida. No fundo, quando esse acompanhamento é feito na realidade e com qualidade, o RSI é uma grande medida para comunidades que precisam de dar o salto. Eu costumo dizer que o RSI foi muito mais importante, porque obrigou a sociedade majoritária a olhar para esta comunidade, que até então viveu sempre à margem, e a desenhar um processo de integração para a mesma.
CF: Agora voltando aqui ao trabalho da AMUCIP, vocês já têm elencados alguns sucessos. Eu gostava que nos falasse de alguns projetos.
SM: [O trabalho d]a associação, nos primeiros anos, foi muito dar a conhecer a cultura cigana. Nós temos uma formação que foi criada e elaborada, pela primeira vez, pela comunidade cigana, porque nós tirámos logo o curso de formadoras, junto do IEFP. Isto na altura, quando estávamos a fazer, já tínhamos a associação. Achámos que seria uma mais-valia tirarmos esta formação para depois podermos dar a formação da cultura cigana. Portanto, nos primeiros dez anos, foi muito para dar formação a nível nacional a escolas, à autarquia, aos hospitais, aos centros de saúde, e dávamos a conhecer aos técnicos a cultura cigana — é uma formação de dois dias. Portanto, o nosso primeiro trabalho foi muito dar a conhecer. Com a comunidade cigana não trabalhámos logo diretamente, porque a própria comunidade, as mulheres ainda não estavam preparadas para essa realidade. Era uma realidade muito distinta, nós viemos desestabilizar tudo daquilo que é esperado de uma mulher. Nos primeiros anos nós tivemos a associação com o objetivo de dar a conhecer à sociedade quem é esta população, que vive em Portugal há mais de 500 anos. Foi o primeiro passo da Associação. Depois, ao longo dos anos, fomos todas trabalhando por conta de outrem, porque cada uma de nós foi trabalhar com entidades diferentes, duas foram para Lisboa, duas ficaram no Seixal, uma ficou na Arrentela. As cinco fundadoras ficaram a trabalhar, porque o serviço, a Organização da Segurança Social, quando nós estávamos a ser formadas enquanto mediadoras, assumiu esse compromisso, porque éramos as primeiras mulheres ciganas, de nos arranjar colocação de trabalho a cada uma de nós, e foi isso que aconteceu quando acabou o curso.
Eu fui muito beber à experiência de um infantário, de um ATL. Eu queria tentar perceber como é que havia aquele choque com os miúdos ciganos e o meu trabalho deu-me essa visão, porque eu pude perceber que os meninos, ao entrarem numa pré, fazem um desenvolvimento superior, muito superior, aos meninos ciganos. E quando entram na escola, eles já vão preparados. Os meninos ciganos, quando chegam à escola, partem logo de uma meta muito distante, relativamente às outras crianças. E, depois, é aí que começa o primeiro choque. “Ah, eles são ciganos, eles não querem saber disto.”; “Ah, ele nem olha para mim, ele nem me responde.” Muitas vezes, ela [a educadora] nem se dá ao trabalho de saber porquê que ele não responde. Porque, normalmente, na comunidade, há sempre um nome que não é aceite no registo e depois [o menino] é conhecido dentro da comunidade por esse nome, porque elas adoram nomes estrangeiros. Mas o que é que a sociedade diz? “Ah, eles usam dois nomes para a gente não saber quem eles são”. Já me disseram isso muitas vezes. E, portanto, isso é um mito. Isso é um dos mitos que eu me deparei logo de início.
Depois destes anos a trabalhar, e sempre a trabalhar na associação em regime de voluntariado, porque nós todas trabalhávamos, mas dávamos o pouco tempo que tínhamos à associação, para desenvolver estas ações que eu estive a dizer durante dez anos.
O meu percurso pessoal, porque as minhas colegas também tiveram o percurso delas, foi sempre em escolas e sempre virado para a educação. E, portanto, é dessa experiência que nasce a ferramenta que foi criada, que é o kit pedagógico. Um kit com quatro pilares composto, elaborado e baseado na formação da cultura cigana. Esse kit pedagógico foi um desafio que os próprios professores nos deixaram depois das ações de formação. Eles pediam que a associação criasse ferramentas que eles pudessem aplicar em sala de aula, porque não existe nos livros, porque não existe na história do nosso país, porque nós fomos apagados desta história. Porque sim, nós fomos os primeiros. Não foi a comunidade africana os primeiros a serem os escravos [aqui], foram os ciganos. Porque quem ia nos barcos e nas galés, cá embaixo, eram os homens [ciganos]. Foram divididos das suas famílias para colonizar o Brasil, os homens e as mulheres foram separados e eles foram nos barcos, portanto os primeiros escravos fomos nós, mas nem esse direito temos. Assim como no holocausto, morreram milhões e uma boa parte desses milhões está lá a comunidade cigana, também não conta, só conta aos judeus. Nós nem temos o mesmo direito de reconhecer o que foi feito com outras populações, foram reconhecidas e foram pedidos desculpas, atos visíveis. A comunidade cigana não. Não teve direito a isso, sequer. Quando o nosso país esteve em guerra, muitos da comunidade cigana morreram na guerra, a defender este país, porque não temos outro. Mas, no entanto, nós não fazemos parte deste país. São os ciganos que vivem ali, à margem, vendem umas coisinhas na feira, que até dá jeito de comprar porque são baratinhas. Mais que isto, não. Esta era a ligação que existia. E, portanto, a associação, vendo esta necessidade e sentindo que havia esta necessidade por parte dos professores e este desconhecimento, agarrámos esse desafio. Esse kit foi validado pelo Ministério da Educação em 2017, foi reconhecido e validado como uma ferramenta a ser aplicada em sala de aula.
A nossa ideia era que este kit servisse um bocadinho o papel do mediador, porque ali a professora podia pesquisar, analisar, saber algumas curiosidades. Há um dos pilares que é sobre as curiosidades, nós falamos do casamento, falamos da nossa gastronomia, falamos das leis de apaziguamento, falamos do luto e, portanto, ali acaba por ser uma pesquisa das curiosidades acerca da comunidade cigana. Ao longo destes anos, a Associação tem vindo a desenvolver ações em várias escolas, que já aplicaram o kit, e o fato de o terem aplicado durante um ano, já surgiram novas ferramentas criadas pelos próprios professores e alunos. Eu tenho uma escola no Seixal que criou um jogo, o Jogo da Glória, baseado no kit pedagógico e tem sido um sucesso estrondoso na aplicação em sala de aula. E outro pilar muito importante que o kit pedagógico tem é a língua romanon, a língua que nós já aprendemos.
Infelizmente os espanhóis e portugueses são os únicos que já não conseguem falar no seu dialeto, porque os restantes da Europa falam fluentemente esta língua. Devido à ditadura, tanto os espanhóis como os portugueses, ao deixarem de praticar, a língua perdeu-se, porque nós não a temos escrita, passamos oralmente esta língua aos familiares. E então, nós fizemos agarrar as poucas palavras que ainda existiam e pensámos como é que podíamos pegar nisso para não se perder. Agarrámos a roda dos alimentos e através dela conseguimos preencher uma roda dos alimentos com língua romanon e língua portuguesa para que os meninos pudessem também saber que um dia tiveram uma língua. E, pronto, o kit pedagógico acaba por ser um bocadinho isso. E, como disse, nós pensámos no kit para ser trabalhado por todas as escolas e daí termos colocado o kit on-line onde as pessoas podem descarregar e ele está disponível para qualquer professor utilizar. A única coisa que eles fazem é pedir autorização para descarregar, porque nós queríamos ter noção de quantas pessoas estariam a usar o kit. E eu posso dizer que este ano já fiz mais de 500 partilhas. Portanto, vários professores a nível nacional já utilizam o kit em sala de aula.
CF: Muito bom. Então esse é mais um sucesso também do trabalho que têm vindo a desenvolver.
SM: Só queria dizer que esse kit também, além de ser aplicado nas escolas, nós pegámos num desafio. Nós, da AMUCUP, pensamos que íamos aplicar este kit a um grupo de mulheres adultas ciganas e ver como é que isto resultava. E, durante um ano e meio, houve um trabalho aprofundado dentro do kit com este grupo de mulheres e depois, ao final desta formação, decidiram que queriam continuar os seus estudos para aumentar a escolaridade e querem enveredar naquele caminho. Depois a associação encaminha para as instituições onde elas podem fazer o resto do seu percurso. Então, em parceria com a Escola da Amora, a ESA, o Centro [de emprego] Qualifica, nós temos um processo com os professores e tudo pensado de forma que funcione, com horários viáveis, com dias mais favoráveis. Tudo foi pensado em conjunto com a associação. Eu, hoje tenho mulheres a terminar o 12º, o 9º ano, o 6º ano, a tirar o 4º ano. Portanto, há de tudo um pouco para tentar aumentar a escolaridade, porque elas sabem que é por ali que querem ir. Elas querem ser auxiliares de ação educativa e para isso precisam de ter mais escolaridade. Desse grupo nasce também uma facilitadora. Não é mediadora, porque o curso não é um curso de mediação, mas de facilitação. Essa facilitadora é uma mulher viúva com 49 anos. Ela também está na ESA a terminar a sua escolaridade, está a tirar o 6º ano, já terminou, aliás, passou, e vou pelo 6º já, mas ela diz que vai dar continuidade.
E, entretanto, a Câmara Municipal de Seixal apostou nesse trabalho durante 10 meses e a verdade é que ela fez um trabalho extraordinário numa escola secundária, porque as mães, ao verem uma mulher viúva, mais velha numa escola secundária, abre as perspetivas para as meninas ciganas, porque os pais olhando para a Vitória sabem que ela dá um olho por elas e toma conta delas enquanto estiveram na escola. E, portanto, acho que esse foi o nosso maior trabalho, foi mostrar à comunidade que, sim, é possível, e, sim, há respostas, quando a gente acredita nelas verdadeiramente. Esse foi o maior triunfo da associação, foi o kit pedagógico, e agora a integração desta facilitadora que desenvolveu um trabalho extraordinário, porque ela é muito boa naquilo que faz.
Agora foi o final desse projeto, em que o próprio presidente da Câmara do Municipal do Seixal e a Comissária para a Igualdade, a doutora Isabel [Almeida Rodrigues], anuíram publicamente que este trabalho é para dar continuidade e que não vai parar. Em setembro eles vão arranjar forma da dona Vitória ficar integrada nas escolas, porque a verdadeira solução para a integração é não pararmos o percurso.
CF: Sim, continuidade é a verdadeira chave. Não queria deixar de trazer aqui um ponto, que é que as comunidades negras também são ostracizadas. Na realidade, aqui em Portugal somos provavelmente as duas mais discriminadas. Que lições é que poderiam tanto as comunidades ciganas e as comunidades negras aprender umas das outras?
SM: Eu acho que nós só tínhamos a ganhar se nos juntássemos, porque infelizmente, nós fazemos aquilo que mais uma vez a sociedade nos incute: o racismo e a discriminação. E, portanto, a comunidade cigana e a comunidade africana vivem lado a lado, com os mesmos problemas, em patamares diferenciados, porque eu isso sei ver.
Porquê? Porque vocês já vingaram, vocês estudaram, e há pessoas da comunidade africana em qualquer profissão. Quebraram essa barreira. Eu sei que se houver um emprego e tiverem cinco africanos e um branco, fica o branco. Mas, quando deixa de haver brancos, eles são obrigados a meter africanos também. E, portanto, é aí que vocês deram o salto. Mas o que eu acho é que a comunidade africana e a comunidade cigana, se juntassem as forças, relativamente às dificuldades que vivem, que nós tivemos aqui a partilhar, nós tínhamos muito a ganhar. Eu consegui perceber isso quando estive no curso de mediadora sociocultural. O curso foi de ano e meio, mas ali quando chegámos aos oito meses o curso dividiu-se, ou seja, porque eram doze africanas, cinco ciganas, e a primeira fase do curso eram as mesmas disciplinas. Elas iam para geriatria, para pessoas mais velhas, e nós íamos para as escolas enquanto mediadoras, portanto, as primeiras disciplinas foram em conjunto. E o que nós aprendemos umas com as outras foi o mais rico do curso, porque depois a gente tem medo do desconhecido e quando nos relacionamos, identificamo-nos muito. Temos valores muito comuns que são a família, família alargada, porque quando dizemos família não é família, pai, mães e filhos é alargada, são os tios, os primos, os avós. Temos um viver e a vida nos ensinou assim, a desfrutar ao máximo hoje, porque a gente não sabe se tem o amanhã. O pensamento é saúde, comer, família e viver. Então eu acho que nós, a comunidade africana e a comunidade cigana, é só juntar-se. Tínhamos tudo para ganhar.