Vocês sabem o que é isso?

Era o dia da votação que aprovou o PL 490¹ no Congresso Nacional Brasileiro e a deputada federal indígena Célia Xakriabá profere as seguintes palavras em seu discurso contra o projeto:

“O 490 pretende matar a mulher mais velha da humanidade, que é a mãe terra e quando ataca a terra, todas nós mulheres indígenas e mulheres aqui nesse plenário, nos alevantamos com muita força. (…) todos os territórios indígenas no Brasil que eu conheço só foram demarcados depois da morte de alguma liderança indígena, vocês sabem o que que é isso?”.

Decidi atravessar a pergunta para o lado de cá do Atlântico no texto inaugural desta coluna, porque – além de ela ser retórica em muitos sentidos – a resposta está inscrita no meu corpo-território. Por isso, para além da bio que vai fornecer algumas informações sobre o que ando a fazer neste continente, considero importante para a apresentação dizer que sou um corpo indígena da diáspora e imigrada em Portugal há pouco mais de dois anos. Um corpo que não vê a si e aos seus representados em nenhum lugar pelo país, nenhuma memória, nenhum discurso, nada. É como se o genocídio e o etnocídio iniciados pelo processo colonizatório português nunca tivessem existido. Imaginem o constrangimento em caminhar por este país e constatar que o colonialismo é glorificado e inscrito na memória nacional como um passado heroico. Vocês sabem o que é isso? 

O desconhecimento (ou negação) sobre o presente e a memória do genocídio indígena não me é estranho. Desde que cheguei a este país, tenho frequentemente pensado sobre o porquê de uma lacuna abissal de desinformação, essencialismo e generalização sobre povos indígenas. Ainda tenho muitas perguntas. Mas desconfio que a recusa em debater ideias como o mito da democracia racial e o “bom colonizador” tenham nos relegado ao status de devidamente estudados, catalogados, descritos como miscigenados, extintos ou em vias de extinção. Em função desses discursos, na esfera pública portuguesa, só existimos enquanto personagens históricos estereotipados, como miseráveis ou como salvadores místicos (devido às preocupações com a crise climática e a própria crise de sentido fabricada por este tempo). Parece-me que só existimos aqui por meio de uma distância muito segura que nos mantém presos aos séculos que o colonialismo dedicou à nossa extinção. “Vocês sabem o que é isso?”

O filósofo camaronês Achille Mmbembe nos lembra de que as ausências, a falta de memorialização no espaço público só presentificam os corpos vitimados na mente dos sujeitos colonizados, saturando e assombrando nosso imaginário. De tanto me sentir assombrada (e, ao mesmo tempo, sentir-me como um fantasma, sobretudo quando estou em espaços públicos reivindicando memória e presente), tenho aceitado o lugar de assombração, todavia não a assombração dos filmes de terror. Para muitas culturas indígenas, a assombração, os seres e as visajes são importantes canais para que entendamos nosso lugar no mundo e na natureza. Vocês sabem o que é isso? Talvez não. No entanto, sinto-me grata pelo espaço e confiança da Afrolis por meio deste convite. E, a partir daqui, pensando atualidade, política, arte, cultura e literatura indígena, começo a vos contar.


¹ O projeto de lei 490,  hoje no Senado Federal PL2903, é uma tese jurídica popularmente conhecida como “Marco Temporal” que resumidamente defende alterar a política de demarcação de terras indígenas no Brasil inviabilizando a regulamentação e demarcação de territórios indígenas que não estiveram ocupados (ou judicialmente requeridos) no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988. A tese é inconstitucional e, se aprovada, representa, segundo lideranças indígenas, um novo genocídio contra povos tradicionais um “genocídio legislado”.  

 

 

Ellen Lima Wassu é poeta, professora, escritora e pesquisadora indígena pertencente ao povo Wassu Cocal. É Mestra em Artes e doutoranda em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho (PT) como investigadora bolsista da Fundação para Ciência e Tecnologia em Portugal. Publicou em 2021 “Ixé ygara voltando pra ’y’kûá”, livro de poesias escrito em língua portuguesa e tupi antigo, e integra, entre revistas literárias e outras coletâneas, a obra “Volta pra tua terra”, uma antologia de poetas antifascistas e antirracistas em Portugal. Atua nas áreas de arte, cultura e literatura indígena e sua prática relaciona arte, poesia, curadoria, estudos contracoloniais e escritas ensaísticas.

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