Questões de memória

A memória não é o que se lembra, é algo que se faz presente de forma voluntária ou involuntária e que se poderá passar de geração em geração. Esta transmissão dependerá do material disponível para que ela se concretize e dos meios que determinarão a sua propagação. No caso de grupos com maior poder dentro das sociedades, seja por estruturas como o patriarcado, o capitalismo ou a supremacia branca, esse material está constantemente a ser produzido e fortalecido e esses grupos terão vários recursos para criar e preservar as suas memórias coletivas e consequentemente individuais.  

Grupos historicamente oprimidos, pessoas racializadas, mulheres, pessoas dos grupos LGBTQIA+, por exemplo, têm menos material disponível para constituir as suas memórias, enquanto coletivas, e menos recursos para preservá-las e afirmá-las. Estão sujeitos, por isso, ao apagamento e silenciamento sistemático de vários dos seus contributos e relegadas a um sentimento de isolamento nas suas experiências que, por vezes, consideram individuais, quando na realidade são coletivas.

Se considerarmos que a memória coletiva informa, reforça e legitima as memórias individuais, tanto indivíduos dos grupos mencionados, como os seus próprios grupos veem-se excluídos do projeto de construção de memórias coletivas de diferentes sociedades.   

Foi pensando nestes constrangimentos que, em 2014, iniciei um podcast, dedicado a pessoas de comunidades negras a viver em Lisboa, chamado Rádio Afrolis. A minha intenção era inserir essas memórias num espaço concreto, a cidade de Lisboa, e contribuir para a expansão do material disponível, ou seja, recursos, para que, nós como afrodescendentes, pudéssemos reconhecer as nossas memórias compartilhadas e, consequentemente, legitimar as nossas memórias individuais.  

Nunca estamos seguros de ataques, nem mesmo ocupando uma cadeira no Parlamento – relembrando a deputada Romualda Fernandes, que foi alvo de um ataque racista nos meios de comunicação aqui em Portugal. Assim como as ex-deputadas Beatriz Gomes Dias e, a um extremo, Joacine Katar Moreira. Todas elas mulheres negras no parlamento, e brutalizadas em espaço público. 

Perante este cenário, a ideia de criar um espaço em que a nossa resposta é contraintuitiva é refrescante. É uma espécie de antídoto para o gaslighting a que temos sido expostas – essa forma de abuso psicológico em que informações são distorcidas e seletivamente omitidas para favorecer o abusador/opressor, ou intencionalmente inventadas para fazer a vítima duvidar de sua própria memória e perceção da realidade. É isto que o racismo faz. E a pergunta – poderei alguma vez afirmar-me português ou portuguesa? Não para de nos perseguir.

Mas afirmar que a nossa presença neste território tem sido uma constante poderia retratar este equívoco. Saber, por exemplo, que nos séculos XV e XVI tínhamos uma população negra de cerca de 10% na cidade de Lisboa, é completamente diferente de se dizer que chegámos nos finais dos anos 1970 inícios dos anos 1980, após as independências. Esta informação permite-nos reivindicar mais espaço na história do país e contestar inverdades. Saber que muitos dos africanos vieram escravizados, mas que houve irmãos e irmãs nossos que os libertaram através do esforço de membros de confrarias religiosas. Saber que houve negros e negras portugueses e livres, que se destacaram em diferentes áreas como Virgínia Quaresma, primeira mulher a formar-se como jornalista em Portugal ou a pianista, musicóloga, e ativista, Georgina Ribas. Saber que houve uma impressa negra, como o recentemente reeditado Jornal o Negro (2021), que teve o seu primeiro número em 1911. Saber que tivemos deputados negros na primeira República 

É essencial para expandir a nossa consciência histórica. Sobre esta publicação os impulsionadores desta iniciativa, nomeadamente a socióloga Cristina Roldão, o historiador José Pereira e o antropólogo, Pedro Varela diziam: “este jornal é uma ferramenta imprescindível para questionar o silenciamento da multissecular presença negra em solo português. 

A iniciativa da associação de afrodescendentes, Djass, que se candidatou ao orçamento participativo (2017) da cidade de Lisboa e conseguiu que fosse aprovado o projeto para a construção de um MEMORIAL DE HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DA ESCRAVATURA, apesar de, em 2023, ainda não se ter materializado, dá-nos esperança para um posicionamento no espaço público da cidade. Foi um marco importante para nos vermos refletidos nesse espaço e iniciar novas discussões sobre estes processos. 

A placa em homenagem a Alcindo Monteiro na Rua Garrett, onde foi assassinado há mais de 25 anos, num crime de ódio racial. Mas também os murais de homenagem a pessoas que foram vítimas de violência racial, ou que contribuíram com mudanças significativas em bairros como a Cova da Moura. Porque não é apenas no centro da cidade que a nossa memória deve ser inscrita no espaço público. Muitos de nós vivem em bairros periféricos e pouco acesso têm ao centro. A nossa memória deve estar onde estão os nossos contributos, as nossas vivências, onde está a nossa história. E porque, apesares dos pesares, devemos continuar a memorializar-nos deixo-vos com um poema do autor brasileiro, José Carlos Limeira, nascido em 1951, na Bahia, e que faleceu em março de 2016. 

 

“Notícias”

Por menos que conte a história

não te esqueço meu povo

se Palmares não vive mais

faremos Palmares de novo

Ontem um distinto senhor me disse:

– Filho não pense nessas coisas

(naturalmente mandei-o à m@%&!!)

 

Os poemas de José Carlos Limeira trabalham a negritude, os seus aspetos identitários e históricos.

 

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